![]() |
Ilustração: Kendra Kay |
A:
Eu sei que esta carta já está incorrigivelmente atrasada, tão atrasada que o tempo das cartas já passou e agora ela não só está atrasada no seu envio, mas também se tornou inócua na sua forma, porém eu peço desculpas, uma das muitas desculpas que eu preciso pedir, pois ainda que o tempo das cartas já tenha passado e ainda que o mundo tenha se tornado mais próximo na comunicação, tudo a mim parece extremamente distante. Não parece assim para você? Não parece que tudo está apartado por uma distância invencível, que nada tem de física? Tudo está lá longe. Parece que se eu disser o que eu preciso dizer em bits, em 0 e em 1, essas palavras codificadas irão se perder na rede que nos conecta e que nos separa e, ao chegarem até você, já terão se despido totalmente do significado original e, no fim, será como se eu não tivesse dito nada. Pois ainda que o tempo em si tenha passado, eu não passei, isto é, eu estou aqui, não estou?
Estou atrasado. Prometi voltar logo quando saí pela porta, e eu tinha toda a intenção do mundo de manter a minha promessa, pois a mim minhas palavras valem muito, talvez mais do que qualquer outra coisa, você sabe. Eu digo cada palavra de caso pensado. E por isso, quando eu prometi voltar logo, a minha intenção não era outra, senão voltar logo, mesmo que logo seja uma unidade temporal relativa. Não utilizarei de subterfúgios para dizer que, se considerarmos as variáveis, no fim das contas eu acabei por manter a minha promessa — eu não sou assim. Eu digo por querer dizer, e se o que eu disse vem a se tornar um problema para mim, pelas minhas próprias ações, a mim cabem as consequências. Ponto. Estou atrasado e quanto a isso não existem dúvidas. O que eu peço é só a oportunidade de explicar — que em nada se confunde com justificar — a razão de ser do meu atraso. Quando saí, prometi voltar. E o que é voltar, senão fazer o caminho de volta? E o que é voltar, senão traçar um caminho impossível? Eu descobri isso depois de prometer, o que não me exime da promessa. Eu fiz uma promessa cuja concretização não é humana. Eu quis voltar. Mas depois que eu parti e depois que o tempo passou, eu olhei para trás e não encontrei o ponto de partida. Eu já não reconhecia nada, não reconhecia o caminho, não reconhecia sequer as pegadas que estavam no chão (as minhas pegadas, as minhas!). E o que é voltar, senão tentar reconstruir um castelo desmoronado? Eu quis voltar, mas eu não podia. E eu não posso. Eu posso trilhar o caminho que um dia eu trilhei, agora no sentido inverso, mas é certo que não se trata mais do mesmo caminho. E eu posso chegar no local de onde um dia eu saí, mas é certo que não se trata do mesmo lugar de onde eu saí. Se eu te deixei com a promessa de voltar, eu também parti prometendo a mesma coisa ao meu coração. É o primeiro a ser convencido, o primeiro que precisa ser convencido, o coração. Se eu pus os pés para fora e caminhei, trêmulo e assustado, foi sustentado pela coragem que nasceu da certeza da volta — vou, mas volto, e se sei que volto, nada pode acontecer de mal.
É que eu saí para encontrar. Encontrar, sem sujeito. O verbo sozinho, solitário, infinito. Eu saí para encontrar as coisas todas. Eu saí para me encontrar. Eu saí para me perder de mim mesmo e depois reajuntar os pedaços e ver no que é que dava. Eu saí para encontrar o outro, e nesse outro enxergar um pouco de mim. Eu saí para encontrar a beleza. Eu saí para encarar a feiura e achá-la bonita. Eu saí foi para isso e para aquilo. Eu saí para olhar por fora o cubículo em que eu estava, e vendo por fora o cubículo em que eu estava ele em nada se parecia com a parte interna. Também por isso eu não pude voltar. Eu descobri que as coisas parecem muitas outras, e eu descobri que olhar de dentro para fora e olhar de fora para dentro, ainda que se olhe para a mesma coisa, faz toda, toda toda toda a diferença. É claro que eu não poderia saber disso antes, só descobri olhando. Eu saí para encontrar e eu encontrei, mesmo que não saiba bem o quê. Mesmo que saiba que há muito por encontrar.
Quando eu segurei suas mãos e você chorou e eu chorei, era verdade. As lágrimas. O calor nas mãos e nos dedos e nos braços. A saudade premeditada. A dor da separação iminente. Tudo era verdade. Tudo é verdade, tudo o que acontece é verdade. A promessa era verdade. Eu era verdade, você era verdade, as paredes e o céu e o canto dos pássaros de manhãzinha, tudo verdade.
É só que a verdade se reveste de várias faces e nós não conhecemos todas elas, e o não conhecimento é apelidado de mentira por ignorância ou por má-fé, e distinguir um do outro é missão sagrada e dificílima. Você sabe, não sabe? Que distinguir isso daquilo parece óbvio, mas não é? Nunca é.
Agora eu estou longe, seja onde for. Posso estar aí do lado. Posso chegar amanhã. Mas estou longe. Os passos que dei não podem ser desdados. A gente, bicho humano, caminha no mesmo sentido do tempo. O sentido não faz meia-volta, nunca. Os passos que eu dei, que você deu, que meus pais deram, esses passos vão é para frente, e se nós desejamos voltar (agora já sei, voltar para um lugar que não existem mais), nós não fazemos o caminho contrário: nós fazemos outro caminho, um caminho novo, e os passos se somam, não se anulam. É tudo um crescimento só, contínuo.
Queria ter entendido meus pais antes, mais cedo. Entro às vezes assim de supetão de um assunto no outro, mas quero que essa carta diga tudo o que preciso dizer, sabendo de antemão que dizer tudo é impossível. Agora eu entendi: minhas causas são sempre essas. Impossíveis em si. Queria ter entendido meus pais antes, mais cedo, e esta é outra causa impossível, a causa dos filhos. Queria ter entendido meus pais ainda na meninice, olhar para eles e entender que são gente, que sofrem e que sangram. Mas como? Na meninice o que se vê é a partir da meninice, e olhar de fora para dentro e de dentro para fora faz toda a diferença. Agora, tendo caminhado tanto, eu entendo o que eu não entendia antes, e isso faz toda a diferença.
Queria ter entendido a minha mãe, porque ela precisava desesperadamente ser entendida. Queria ter entendido o meu pai, porque ele precisava desesperadamente ser entendido. E por qual razão? Porque nós todos precisamos, eu vou descobrindo. Essa é outra resposta que eu encontrei. Se a minha mãe fosse entendida, tudo seria diferente. E se meu pai fosse entendido, talvez eu nem existisse, talvez o mundo fosse outro, melhor, pior, mais bonito ou mais feio. Queria ter entendido meus pais antes, para que eles também pudessem me entender.
Não ser entendido é a raiz de muita dor que há dentro de mim. Muita dor. Não ser entendido por fora, e, por consequência, não me entender por dentro — quando nada fora de você te entende, mesmo que você se entenda e compreenda seus próprios sinais, você passa a questionar sua própria visão sobre si, e então o entendimento se esvai por completo. Eu gostaria de ser entendido e entender os outros. Eu gostaria de ver uma massa uniforme e me juntar a ela, pelo menos uma vez, sem ser um corpo estranho, só para pertencer temporariamente. Só para pertencer e, pertencendo, ser compreendido. Eu estou me fazendo entender? É importante que eu esteja, você sabe bem. Eu quero ser claro e cristalino. Eu não quero deixar dúvida. Eu não quero ambiguidades.
Eu quero ser reto. Quero ser transparente. Quero ser sólido. Quero não querer ser, apenas sendo. Abandonar o querer todo.
Eu quero desvendar o impossível.
Eu não quero dizer adeus, não outra vez. Você já percebeu, não é? Você que me conhece tão bem, ou que me conhecia tão bem, e agora não me conhece de maneira alguma. Você que sempre me entendeu. Talvez por isso eu tenha fugido. Talvez por isso eu tenha saído pela porta. Porque você me entendeu, pela primeira vez, e ser entendido dá medo. Porque você me entendeu e eu tive medo do que você entendeu, e tive medo de não haver mais nada. Você entendeu que quando eu compreendo um momento de felicidade, eu de imediato fico triste. Uma tristeza filha da alegria. Eu fico triste ao perceber que sou feliz, porque eu sei que ser feliz não dura muito, e eu me agarro nesses intervalos com tanta força que eu fico exausto. Eu fico triste por saber que o fim da felicidade é próximo. Eu caminho com Freud pelos campos e me lamento da transitoriedade e não ouço uma palavra do que ele fala sobre a beleza da flor. Que flor? Que me importa a flor? Você entende que eu não me acostumei com ser feliz. Você entende que eu puxo a corda da alegria até o limite, até ela estourar, que é o que eu estou fazendo agora, evitando dizer adeus.
Mas eu estou em paz. Eu me perdi no pedido desculpas e por um instante me esqueci de dizer o que eu queria dizer desde o começo. Foi o que você me pediu, não foi? Para não demorar. Ou para ao menos dar notícias, para que você soubesse que eu estava em paz.
Ou isso ou aquilo. Eu não cumpri a promessa, mas cumpro com seu pedido: escrevo para dizer que estou em paz, e são essas notícias que eu te envio. Amanhã logo pela manhã tenho um encontro já marcado. Sei que é importante, não sei ainda sobre o que será. Como aqui já é tarde (que horas são aí?), e como meu pulso dói, ainda dói, o mesmo pulso, eu terei que economizar nas próximas palavras. Mas eu estou em paz, sim. Eu estou em paz.
Acredito que esta carta encontrará o caminho até você. Este sou eu, agora, nesse momento (passa da meia-noite). Quando você estiver lendo, quem sabe o que eu serei? É excitante não saber. É terrível não saber.
Não começarei outra vez.
Sinto saudades sua, sinto saudades da minha mãe, sinto saudades do meu pai e sinto saudades de mim.
É impossível não sentir saudade.
Um beijo grande,

Gabriel Schincariol Cavalcante nasceu na cidade de Boituva, no interior de São Paulo. Estudou na Escola Preparatória de Cadetes-do-Ar, em Barbacena, onde começou a escrever com maior frequência, como contraponto ao restrito regime militar. É formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi premiado na 4ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa com o artigo “O passado que não passou”, e venceu o concurso Nascente 2019, maior concurso cultural da USP, com a coletânea de contos “A história dos homens”. É autor do livro Um mundo em que existem baleias, pela Editora Patuá. // www.gschincariol.com