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Ilustração: Ismael Nery |
Sim, ela era alta, a metrificação de escala e esconderijo, confirmava. Talvez não fosse suficientemente graciosa, delicada, mas, tinha pra si mesma, que antes o meigo rosto, o vagar muito delineado de suas sombras sobranceiras coloriam a alma de quem a visse. Respirava naqueles tempos um odor de pequenas satisfações, róseas, azedas, fumaças sem quimeras, conquistas arregaçadas.
Não era deus, por algum motivo ele se transferira para vontades ácidas, afirmativas, ela diria masculinas, ainda que fossem meninas. Mas, um dia seria, imponente, astuta, governante, alçada ao ponto e à luz do pedestal de uma diva ou estrela ou sereia. Mas, seria, era inevitável, se dizia. Não pedia muito, apenas um centro, uma visibilidade tão grande que esmagasse a vileza, tão torpe, dos que a ignoravam, esses muitos, esses diversos, esses infinitos, esses nadas.
– Burralda… a mãe madrasta, aquela segunda, aquela terceira, aquela invasora, cuspira-lhe todos os dias, meses, anos, sequelas, segundos, com muita satisfação. Ela sabia que a palavra tão invasora, machucadora, inexprimível, era para ela. Via nos olhos daquela monstra a satisfação, a vitória, mulher execrável, doentia, perversa. Afinal ela era bela e, como todos sabem, o arredondamento dos traços e das naves assegura direitos muitos, deveres, apenas alguns. Assim o mundo era feito, assim as mulheres foram conduzidas por séculos e arcanjos, acima dos feitores e dos ditadores.
O doutor balançava a cabeça, ele não saberia fazer outra coisa? Não poderia ser mais amigo, ciente dessas prerrogativas que não se explicam e que, se violadas, violam deus, deusa, anjos e todas as perfumarias conquistadas, instaladas para impedir o letal avanço de ideias e seres definidos e metálicos, aquela madrasta…
– Era tua mãe… ele afirmava, parecia não temer, não entender. Um covarde, grupo de 8, terapias, sedação, por que a provocava? Não , não era, aquela era a rival, a maltratadora, a infeliz possuidora das chaves do paraíso.
– Era teu pai…
O paraíso, o abismo, a cerca cercando os frutos desejados, o poder, o deus, a proteção, a parafernália da instituição, aqueles risos mornos na casa de estranhos, aquele movimento social para esses seres deficientes. Ela vestia os azuis e os brancos que lhe deixavam no armário, não os melhores, claro, nunca, sedas baratas, perfumes inodoros, pulseiras sem pingentes. Desde que aquela desgraçada nascera, aquele serzinho errante, gorducho, gracioso, sempre o centro das atenções, que graça aquela maldita tinha? Não era bonita como ela e, se era, não resplandecia, teria o amor de alguns homens, de sua mãe, de seu pai, do mundo organizado, da porra toda, mas não tinha essas linhas e esse frescor e o calor…
Mas ela cresceria, também ficaria uma moça bonita, se casaria, provavelmente com algum pai, e se transformaria naquela madrasta insolente, estúpida, dona dos códigos e da conduta dos deuses, aquela alimentadora de egos, ela mesma um ego, um muro, uma insolência. Insolvente, a vida sem solução, amarga, doída, a depressão, a profundidade de deus? Era o diabo, não ela, aquele ódio, que chamavam de inveja, não, não era ela. Estava ali nos olhos daquela menina entrando na puberdade. Adiantaria continuar a rasgar as roupas dela, esconder os brinquedos, aponta-la para seus amigos como difusa e corrupta….
– Mas, é uma criança…
Criança má, tirara-lhe a vida, compreendem? Já sentiram essa amargura, essa cela de muitas pontas, esse ódio crescente e rebolativo no centro da alma, na vertigem do dia, na descoloração de deus? Já ficaram sem deus, sem piedade, sem sussurros, sem motivação? Como, então, poderiam ler nos olhos do pequeno ser a alma da madrasta, a continuação do inferno, a repetição do calvário, da humilhação…
– Burralda…
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Quando foi, enfim, conduzida, para a cela física (que lhe importava? Já estava encerrada na da alma, na do ciúme, na do ódio) começava o movimento para o enterro da irmã. Um dia reconheceriam a sua valia, a sua coragem, a extrema lucidez. O mal não tem idade ou tamanho ou questão. Cabe ao designado a eliminação. Sempre injustiçada, os sorrisos e as lágrimas para a outra. Preferia assim, viver entre aqueles a quem se destinou tão pouco, tão nada, a quem se quebrou, pelos laços culturais, pela biologia, pelo deus/diabo. Era o seu lugar, não se importava. Se deus não te reconhece, pois bem, o diabo todos entendem. Correria o rio e o limo, o esquecimento.
JANDIRA ZANCHI