CIDADE ANTIGA: Leopoldo Comitti

Ilustração: deviantART

1.

A retórica muda do casario

se faz ouvir pelas frestas

de janelas e balaústres.

A cidade sussurra em portas

empenadas, empenas adernadas

e telhas de argila velha.

Cansada do dia tagarela,

oscila,

recosta a fronte na serra.

No vale descansa.

Com balbucio quase sopro

silencia e adormece.



2.

Noite abúlica.

Só o passado devora

o presente, correndo

rodas pelos ásperos

paralelepípedos.

Mais uma vez o barro

desfaz a vereda

algo triste ou lírica

de um ribeirão serpente

que entorno em largos

jorros, pelos muros e lajedos.

A cidade derrete

quando a nuvem desce

e se dissolve em gotas,

labirintos de água

em bandos de respingos forros.

Longo e chuvoso manto,

talvez mortalha,

aos poucos, mansamente

e triste,

enfim tece.

Pela janela em plenilúnio

decepou-se o topo da montanha.

A guilhotina quadriculada

em madeira e vidro

lança verniz sobre a luz baça.

Laqueada, a cidade brinca

em seu estojo de cedro e cinzas.

Fria, sob o sereno, espera.

Sépia ou sombra, sempre espera.

Um cupim devora o anjo,

diligente como a taipa

que esfarela em poeira inútil.

Ainda a cidade espera;

talvez uma possível

e imóvel eternidade.

4.

As mudas de bromélia

aguardam o pendão arisco

sobre o solo duro. Ásperas

e exóticas na delicadeza

sutil das folhas (ou talos?)

rústicas, aguardam frias

a perfeição estranha da flor

na pedra. Da flor não flor

que se ergue de espinho

e pétala.

As bromélias crescem lentas

no papel do solo árido

de brilhos de minério e pó.

Enrugam o jardim da casa

que desliza macia para a sombra

na última linha do papel pautado.

5.

Um cão uiva pelos séculos, lá fora.

Alguém bate na janela velha,

coberta de teias de aranha e poeira

dos tempos. Outro alguém responde

na quebra do espanto inaudível.

De novo o silêncio do cão

que ladra.

De novo o silêncio da voz

que quebra.

Finalmente se abre a janela

e dela sai um espectro claro.

Cresce ainda a lua no céu,

mas não vê cão, contorno

ou sombra. Espia por espiar

a paisagem sempre imóvel

dos segundos. Nem a teia,

ou a negra aranha vê. Registra

simplesmente a passagem

dos mesmos elos seculares.

LEOPOLDO COMITTI 

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