Círculo do sentir rabiscado pelo coração humano: Fernando Rocha

Ilustração: Sabine Van Erp
Enrico, meu filho, eu não esperava viver tanto tempo, muitos que chegam na velhice assim como eu, ao contrário da fragilidade da pele, se vestem com a armadura da moral, oferecendo a cada ano de vida a dádiva do esquecimento, apagando das suas biografias os erros que constituem a vida humana. Em cada uma dessas rugas que você vê, em cada variz, em cada um desses cabelos brancos há uma infinidade de tatuagens emocionais, histórias tristes, alegrias, contentamentos, decepções, o círculo do sentir rabiscado pelo coração humano. Antes de brigar com os meus desejos contando com a mão de Deus para me ajudar nessa travessia, fui dona das minhas vontades. Uma velha é quase um anjo, sem sexo, sem desejo, dedicando-se a vida de filhos e netos, esquecemos de nós, esquecem do que fomos antes do nosso estado atual.


Desde menina eu sentia que havia um mar de amor no meu peito, eu olhava para o mundo prestando atenção em olhares, esperando que um deles encontrasse o meu, causando a explosão que faria com que eu perdesse o meu nome, minhas certezas e me entregasse como naquelas cenas de cinema, onde a personagem salta de um penhasco para dentro da infinidade do mar. 

O problema é que todos os homens que encontrava só conseguiam botar as pontas dos dedos na superfície de uma poça, jurando que estavam submersos pelas águas marítimas. Eu tinha sede, mas meus olhos estavam secos, o ato da procura arranca do corpo a energia, diminui o brilho dos olhos. 

A vida é um labirinto e quando menos esperamos, as curvas e descaminhos se transformam em linha reta, ponte que nos leva ao outro. Há tanta gente no mundo e a gente sofre porque não encontra quem é o nosso par, o parceiro da sinfonia do tempo, aquele que nos ajuda a compreender os gritos, sussurros e o que há escondido no silêncio, o colo de quando a cabeça pesa e o mundo parece nos esmagar, nos nina espantando a descrença no depois e depois e depois… Esculpindo um sorriso onde só havia um semblante tristonho. 

Juan, este é o nome do seu pai, não sei porquê guardei este segredo por tanto tempo, você ficou ilhado na metade de antes da sua vida que sou eu, olhando para um espaço em branco misterioso, aguardando que dele surgisse as questões da outra metade: a parte do seu pai. O homem mais fantástico que conheci em minha vida, depois dele, tudo me pareceu um esboço, sombra do sentir. Sabe quando um astronauta volta de uma missão espacial e sente a gravidade ao bota os pés na terra? Do espaço ele via tudo sem filtro, por isso sabe que o céu da terra é só o ensaio do espetáculo, aquele par de retinas humanas foi capaz de registrar o real. É isto que sinto quando penso no seu pai em comparação aos outros homens que tive, meu filho. O homem mais fantástico que conheci em minha vida, depois dele, tudo me pareceu um esboço, sombra do sentir. Sabe quando um astronauta volta de uma missão espacial e sente a gravidade ao bota os pés na terra? Do espaço ele via tudo sem filtro, por isso sabe que o céu da terra é só o ensaio do espetáculo, aquele par de retinas humanas foi capaz de registrar o real. É isto que sinto quando penso no seu pai em comparação aos outros homens que tive, meu filho.

Trabalhei anos como vendedora no bairro do Brás, a oferta de empregos próximos às nossas casas era bem menor do que hoje, tínhamos que ir ao centro da cidade para encontrar a civilização, embora estivéssemos vivendo na maior cidade da América do Sul, estávamos localizados numa de suas margens. As coisas que veem os que vivem fora daqui acontecem no centro, ao contrário do nosso corpo, pois quem nos vê, olha para os nossos rostos, nossos quadris, mas quantos têm a coragem de olhar no fundo dos nossos olhos? Ousar ingressar em nossos corações?

Num período de desemprego, me recordei da minha infância e adolescência, na qual minha mãe me ensinou a arte da costura, a qual ela tinha aprendido com minha avó, a colonização da força de trabalho transmitida hereditariamente, assim me candidatei a uma vaga numa confecção, onde trabalhavam alguns imigrantes bolivianos, seu pai era um deles, agora você sabe porque ouço tantas canções em espanhol, ao contrário do que muitos dizem apontando para o Francês, para mim este é o idioma do amor, não o Espanhol, o Castelhano, como o meu Juan gostava de dizer. 

Eu chegava de manhã para trabalhar, após duas horas dentro de um ônibus, o famoso Jardim Nazaré 2626, era como se viajasse para outro município diariamente, por exemplo, uma viagem até Tatuí, leva uma hora do terminal rodoviário Tietê até lá. Mesmo cansada e irritada, um dia eu vi os olhos daquele homem de cerca de um metro e oitenta, mirando não o meu corpo, mas os meus olhos, fiquei assustada, me pareceu a materialização daquele olhar pelo qual tinha ansiado por toda a minha vida. 

Sou teimosa como você bem sabe, não dei o meu braço a torcer facilmente, mas isso era o que minha cabeça dizia, mentindo para mim, construindo uma verdade paralela, porque os meus olhos tinham feito aquilo que nenhuma mulher deve fazer no momento de uma conquista: Oferecer a certeza para um homem. Esta é uma das armas mais poderosas do feminino no campo de batalha do flerte, homens são inseguros, tentam captar na gente a certeza de que têm alguma chance por meio de algum gesto ou palavra que emitimos, eu abri minha guarda, eu me abri inteira para que aquele homem pudesse vasculhar o meu interior. 

Costumávamos almoçar juntos e o tempo parecia nunca ser o suficiente, nele cabia o prazer de partilhar a mesma corrida particular do relógio, que sempre era mais ligeiro que o nosso desejo de permanecermos grudados, de dizermos coisas sérias, bobagens, dividirmos silêncios, frustrações, felicidades e tristezas. O mundo todo dos sentimentos caminhava com naturalidade dentro dos nossos diálogos. Me bastava olhar para o rosto do seu pai, saber que ele existia, para ter um motivo que me fizesse querer continuar vivendo, sentir o coração pulsando, eu enxergava renascido um brilho nos meu olhos antes opacos, como me disse minha amiga Mercedes naquela época, eu era uma fotografia triste em preto e branco, Juan veio como um desses artistas que intervém sobre imagens existentes, me coloriu, botou um sorriso real na minha cara, reacendeu minha chama de vida. Eu era dele e ele era meu, tinha caído por terra toda a conversa bonitinha de que num amor real não cabe posse, não representava infelicidade ser de alguém, era um grito de alegria cada momento unidos que vivíamos. 

O dia de trabalho terminava, estávamos cansados, mas não queríamos nos distanciar, ficar longe um do outro era como ficar longe da vida e a vida é como planta se não cuidamos, regamos, botamos para tomar um solzinho, ela definha e morre. A ideia de morrer pelas minhas próprias mãos tinha me acompanhado por anos, estava na minha mente de maneira natural como respirar ou sentir fome. 

Dentro de nós, cada som da voz era um gesto de carinho, uma maneira de dizer para o outro: Olha, você existir é importante pra mim, eu sou feliz pela maravilha deste fato, eu te olho e vejo a abertura do mar vermelho, a queda do muro de Berlim, o encantamento de Narciso ao mirar o reflexo da sua imagem no rio, me sinto acolhido como bebê que chora e é acalentado pelo colo materno e o seu ninar. 

Sabe quando alguém é especial pra você, meu filho? Quando ao pensar nesse alguém o sorriso floresce no seu rosto e o arrepio faz morada constante dentro dos seus poros, quando este alguém tatua uma corrente elétrica que percorre sem parar no lado de dentro da gente? 

O susto do nascimento ressuscitado nas experiências das sensações primárias, o gosto pelas coisas simples, porque elas são só cenários que perdem a importância diante de um sorriso que jorra e nos inunda.  Eu me recordo de Juan tomando uma bebida no balcão de uma padaria, muito charmoso, a ponta da sua língua tocava o canudo, antes de iniciar o ato de beber, uma obra de arte que só os meu olhos captaram. 

No ano passado fui ao Brás com Dona Antônia, nossa vizinha, que precisava fazer umas compras, há um mapa só meu e de seu pai, um mapa contornado com afetos, no qual cada cantinho por mais simples que pareça foi preenchido com o nosso imenso e urgente amor. Ficávamos no ponto de ônibus, entrávamos num trem, sem nos preocuparmos para onde aquele veículo nos levaria. Sabe aquele papo de que o mais importante é o caminho, não o ponto de chegada. Pude viver e sentir isso com Juan. 

Às vezes seu pai se escondia num silêncio, deitava no meu colo, deixando algumas lágrimas escaparem, mas não me dizia nada, eu lhe oferecia minha companhia, nunca nos sentíamos sozinhos, quando estávamos um com o outro. Não houve tristeza mais feliz do que aquelas que visitaram o meu peito, quando estive com o meu Juan. 

Juan assim como vários imigrantes, sofreu com jornadas desumanas, de quase vinte horas, teve que deixar para trás família, sua terra, seus objetos preenchidos por seus afetos, é triste ter que se mover do seu lugar de origem para preservar a carcaça, futuro cadáver, a gente morre sozinho, mas não se vive de maneira solitária, aprendi no ginásio que o homem é um ser social, uma das poucas verdades que ouvi nos poucos anos que frequentei a escola.  

Eu sentia Juan inteiro comigo, mas havia algo que pesava em seu peito, ele tinha deixado Amália e Pablo na Bolívia, isso lhe causava sofrimento.  Em janeiro de 1992, após o Natal e o ano novo mais felizes da minha vida adulta, Juan acordou, segurou forte em minha mão e me disse com lágrimas nos olhos que teria que voltar para sua pátria, não podia mais viver sem saber de seu filho, havia fome em seu país. 

Eu ainda sem saber que te carregava no ventre, embora triste em carne e viva, vi o ato de nobreza daquele homem, ao abrir mão da nossa história de amor, pelo amor supremo de quem procria. Sem dizer uma só palavra, seguimos de mãos dadas até a rodoviária, viajar de avião era pra quem tinha muito dinheiro, nos beijamos, o beijo mais doce e intenso de toda a minha vida, Juan me abraçou e seguiu como nas histórias antigas, sem olhar para trás, eu sabia que ele chorava, porque esfregava os olhos com as mãos. 

Em fevereiro minha menstruação não veio, era você, Meu Enrico em você pude ver materializado todo aquele amor, não foi fácil, ser mulher é batalhar todo dia pra não ser tragada, mas ver meu ventre crescendo, me deu a força que eu nem sabia que tinha em meu interior. Estamos aqui vivos e fortes, sobreviventes contentes pertencemos à grande história humana.



Fotografia de Fernando Rocha:  Maria Luiza Viana Patrício



Fernando Rocha é paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, professor  na rede municipal de São Paulo, autor do livro de contos Sujeito sem verbo(Confraria do vento), da novela Os laços da fita (Penalux) e Afetos (Penalux). Tem um conto na antologiaDescontos de fadas (Alink) e Pouca Pele (Alink). Possui textos publicados nos portais: Mallarmagens, Amaité Poesias & Cia, Diversos e afins, Revista Gueto, Incomunidade, Letras Inacabadas e Letras et Cetera. 

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