Colégio Rosário: André Giusti

Ilustração: Michael Flippo

Eu estava corrigindo as provas do quarto bimestre, separando quem faria prova final de quem já estaria de férias na próxima semana. Absorto no cálculo das médias dos alunos do segundo ano,  não reparei que havia anoitecido nem que ela já deveria estar há algum tempo encostada na porta da sala me olhando. Se houvesse notado ela sorrindo, aguardando que eu me desse conta do mundo, teria ido até lá com olhos eufóricos, rosto iluminado de alegria e surpresa, mas com o esforço irremediável de ser discreto em sua
presença. Mãos geladas, coração em bumbo, larguei de meus envelopes e disse olá cuidando em não parecer deslumbrado.

“Olá, professor”, e ela se aproximou sorrindo, passo a passo com a rotação da Terra (ou o girar dos astros?). Agora também sorriam as paredes sisudas da sala, as janelas escuras de madeira, eu inteiro sem me conter – mas apenas por dentro.
Havia algazarra nos jardins do colégio, corre-corre, ensaio de dança. Ela olhou pra fora, franziu alegre a testa, estranhando tanto frenezi.

“É a festa da primavera, vai ser amanhã e domingo”, me antecipei à pergunta que ela fazia com a expressão do rosto.

“Ué, quase em dezembro? Daqui a pouco é verão…” e riu, fez muxoxo de carinho, balançou a cabeça dizendo sem dizer “só no Colégio Rosário mesmo”, e havia naquele desdém tão doce a saudade dos melhores dias de sua vida até então.

“É que em setembro estourou um cano no pátio, alagou tudo, fizeram obra, demorou muito. Aí vieram as provas e resolveram fazer agora, pra encerrar o ano.”

Eu tinha 38 anos e há dez lecionava história no Rosário. Ela pertencera à terceira leva de alunos para quem dei aulas no ensino fundamental. Passara para a Unb há quase um ano. Desde o vestibular eu não a via. Foi ao colégio finalmente buscar o diploma.

“Passei pra história”, ela disse, e notei que testava minha reação.

“Mas não era geografia?” Não controlei o espanto.
“Era”, e ela riu, “ou melhor, acho que nunca foi. Quero entender esse país, e aí só estudando o passado. “

Pretensiosamente, achei que nas entrelinhas confessava: fiz pra história por sua causa.

“Quero pesquisar o século 18 no centro-oeste, mapear como viviam, o que faziam as pessoas por aqui nessa época da Colônia”, e saiu contando, a mão esquerda fincada no bolso da calça jeans, a direita riscando o ar em gestos leves de entusiasmo. Parecia certa de seus quereres. Quando aluna, nunca fora vacilante, indecisa, apesar da troca de opção no vestibular quase na última hora, pelo que pude entender. Algo, no entanto, nas frases e nos olhos era mais convincente. E visível. Estava inegavelmente bela, madura como as mangas em janeiro. Começara a galgar o primeiro degrau da plenitude de ser jovem, terminara por completo a escalada de ser menina.

“Quando me formar, faço também concurso para a Fundação Educacional”, acrescentou, “pra não ficar só na mão de colégio particular, garantir o final do mês”, e arregalou rápido os olhos fazendo cara de quem diz “você sabe como é, né?”, buscando a aquiescência de meus anos de magistério, as semanas de um lado a outro da cidade, dando aulas em três, quatro colégios e cursinhos.

Ora, vejam só, minha bela pequena preocupada com o final do mês! Mas é claro que não disse isso, imagine se me permito esses ímpetos. Ficou só na cabeça, girando como tudo ao redor por causa do deslumbramento em vê-la. Apenas murmurei um banal e sem graça “é isso aí, você tá certa”.

Ficou em silêncio, olhando a sala em volta, quem sabe procurando o que dizer diante do parvo professor bestalhão que não conseguia prosseguir diálogo com uma ex-aluna que resolveu estudar a mesma coisa a que ele dedicou a vida inteira.

Lá fora continuava o banzé, as professoras do primário se esgoelando para pôr ordem no ensaio. Dentro da sala, meus olhos incendiados acompanhavam a imagem plácida que se deslocava girando o pescoço, cantarolando melodia inventada na ausência de assunto.
De repente parou, apontou um canto à minha esquerda e abriu ainda mais o riso, agora de espanto. “Que isso? De que museu saiu isso?”
Voltei-me para onde ela apontava. Logo reconheci a geringonça.

“É um aparelho de som 3 em 1, e da marca Gradiente”, expliquei quando cheguei mais perto. “É da virada dos anos 70 para os anos 80, eu mesmo tive um na adolescência.
Escutei muito Beatles, Led, U2 num desses.”

Prendeu de leve o polegar entre os dentes. Em seu rosto, o estranhamento se divertia não com a aparelhagem, mas com minha intimidade com algo de quase trinta anos.

“É um aparelho de som, as pessoas escutavam música nele, só isso, nada mais, sem mistério”, completei, também com pitada de divertimento.

Fez cara de “sei” quando se aproximou. “Não tirava fotos, não baixava vídeos, não mandava mensagens?” E devolveu a ironia com um sorriso que desejei engolir.

“Nunca tentei”, respondi no mesmo tom, em outra invigilância de minha timidez.

Admitiu que se lembrava de um troço parecido com aquele. “Na casa de um vizinho acho que vi um uma vez, mas era mais moderno, certamente.” Voltou a prender o polegar entre os dentes.

“Esses modelos foram evoluindo, viraram os micro systens de hoje, desses que só faltam voar”, expliquei, já permitindo a ousadia de piadas. Mas ela não riu, não prestou atenção.

De repente curvou-se para pegar alguma coisa que estava entre o som e a parede. Tirou de lá a capa de um disco de vinil e me mostrou, divertindo-se.

“Era com isso que as pessoas dançavam nas festas na década de 80?”

Tocou (como se soubesse) no assunto que remetia ao nascimento de minha fantasia inconfessada. No burburinho da hora da chamada, perguntaram lá no fundo da sala onde seria a festa da fulana. “Que festa? Quem vai? É amanhã?” E a turma toda desembestou querendo saber. Percebi que a aula virara comício e perguntei, para recuperar as rédeas da turma, como se dançava nas festas de hoje. “Ah, professor, a galera fica assim”, e o que perguntou primeiro jogava os braços e os ombros, “putz putz putz putz” imitando a batida eletrônica da modernidade. Arrancou risos, “garoto palhaço”, as meninas disseram.

Apagando o quadro contei que nos anos 80 as pessoas dançavam juntas, de rosto colado nas festas. Então, começaram a murmurar aqui e ali na sala, abismados como se eu houvesse falado de um ritual da antiguidade. “É, de rosto colado”, e me virei imitando o movimento. Provoquei outros risos, às vezes a timidez me esquecia.

“Depois que a gente dançava as bem agitadas, o cara do som mandava umas lentinhas, e aí a gente chegava na menina que olhamos a noite toda”, continuei, quase empolgado. E a sala se encheu daquelas vozes irrequietas, como a sarjeta no temporal. Risinhos, cochichos, pé de ouvido. “Como era? Faziam de que jeito? Mas já chegavam beijando?”

“E quem era esse cara do som, professor?” Perguntaram, jeito de quem raciocina lento.

“O DJ né, ô quadrupede!” outro explicou, lá do canto.

“Tem gente casada até hoje depois que dançou junto”, e virei outra vez de costas, fazendo cara de “se querem saber”.

Comecei a pôr matéria no quadro, embora do burburinho já estivessem fazendo balbúrdia.

“Professor, agora é todo mundo pulando perto, e se o cara ou a garota interessa, aí a gente pula mais perto ainda, quase junto, mas sem essa de colar rosto, cola é tudo logo, professsor, pegação mesmo.” E explodiu na sala o riso mole do escárnio, esse talento adolescente. “Pegação, pegação!”, repetiam, mas o que queriam era dizer “que coisa mais otária essa de pegar a mina e ficar dançando de rosto colado”, e esfregar na minha cara que o legal era o tempo deles, que o passado do professor trintão velhote não prestava mais nem para lembrar. Mas como ao longo do meu tempo de magistério os nervos solidificaram-se indiferentes a isso, prossegui no quadro negro com meus tópicos sobre República Velha.

Mas me virei de novo quando a voz dela sobrepôs o falatório.
“Quer saber? No tempo do professor deveria ser bem mais bacana, os caras deveriam sem bem mais interessantes.” E foi firme como quem dá uma sentença, apoiada na autoridade de representante de turma.

Dividiu a classe. E entre apoio e vaia, pousou em mim os olhos sorridentes e assim os deixou, como se quisesse experimentar até onde encabulado eu resistiria também com os meus em cima dela, antes de fugir enfiando a cara no quadro negro.

Desde esse dia passei a procurá-la em meu passado, querer resgatá-la, como se fosse possível, em algum ponto de minha adolescência, e salvar qualquer noite em que eu tenha voltado para casa me sentindo vazio depois da festa que não deu em nada. Houvesse existido ocasião para isso, fosse eu sujeito que primasse pelo ímpeto, teria indagado: “Escuta, por que meu tempo deve ter sido mais bacana? Seria, talvez, porque se dançava de rosto colado, ou porque se vivêssemos na mesma época eu estaria a teu alcance, mais interessante do que os que te desejam nas baladas da contemporaneidade?” E da mesma maneira que minha imaginação voltava com ela para os anos de minha juventude, pensava nela me trazendo deles para, jovem outra vez, regar as flores dos jardins de seus dias modernos de trance e comunidades. Mas a fantasia era estupidamente interrompida quando me dava conta da impossibilidade prática colocada por dezoito anos de diferença entre um professor e uma aluna.

“Hein, professor, as pessoas dançavam ouvindo isso?” E ela insistia me mostrando a capa do LP, pondo-me outra vez o chão debaixo dos pés.

Respondi aéreo, voltando de meus pensamentos, “Sim, era com isso que se dançava”, e peguei o disco, uma coletânea de sucessos de época. Hits do verão – 1980, as letras resistiram coloridas ao tempo. A capa era uma garota bronzeada em cima de uma prancha de windsurf.

“Essa aí já deve ser avó, hein?” e riu vendo meu olhar nostálgico para a foto. Não pensou que a mulher deveria ter a minha idade.

Virou-se outra vez para o som. “Será que ainda funciona?” Olhou em volta e descobriu uma tomada. As luzes vermelhas e verdes do velho painel se acenderam assim que ela ligou, os ponteiros de modulação de graves e agudos reagiram.

“Me ensina a mexer nisso”, e me puxou para junto do aparelho. Senti sua mão firme em meu pulso, quase pedi que não largasse. Que nunca mais largasse.

Tirei o bolachão da capa. Havia nele uns pequenos riscos, alguns fiapos de poeira. Levantei a tampa de acrílico marrom, encaixei o disco na haste de metal. “Nem lembro a última vez que fiz isso”, deixei escapar, e com o canto dos olhos vi que me observava, mas dando pouca atenção ao que eu fazia, onde mexia. Parecia interessada nas expressões de meu rosto, talvez embarcar na minha viagem de pílulas concentradas de nostalgia.

O disco caiu de leve sobre o prato e começou a girar, aguardando que se completasse o movimento sincronizado do braço de alumínio levando a agulha a tocar o vinil preto. Um balé analógico, nenhum prenúncio do mundo digital.

À música antecederam alguns estalidos, próprios dos discos muito tocados.

“Mato queimando”, falei.

“Hã?” Inclinou de leve o pescoço, e o movimento desarmou sobre a testa a franja castanho-escura.

“Mato queimando. É esse barulhinho da agulha no vinil”, e tentei imitar prensando a língua contra os dentes, mas a música havia começado.

“Don`t walk away”, reconheci logo. “Electric Light Orchestra”, expliquei sem ela ter me perguntado. “Tocava muito no rádio.”

Ficamos calados, ouvindo. Até que ela arriscou.

“Você dançava muito essa?”
Entortei os lábios, fiz “huuuuum”, virei os olhos para o alto como se eles pudessem enxergar minha memória. “Talvez tenha dançado alguma vez, agora não lembro.”

“Vai ver que dançou, e com várias garotas, e agora fica escondendo o jogo”. Riu divertida.

Pensei que fosse me chamar de professor, mas não. Ficou me olhando calada, enquanto a música engolia o final de sua frase. Estava inesquecivelmente bela.

“Põe de novo”, e apontou o som.

“Como?” E voltei a mim, despencando de seu rosto.

“A música, põe de novo.”

“Mas não acabou…”

“Então! Recomeça, vai de novo.”

Outra vez movi o braço com a agulha de volta ao início da faixa. Foi o tempo de me virar para ela e vê-la, com a mão esperta, encontrando o interruptor e apagando a luz. Antes
que eu perguntasse o que era aquilo – como se aquela fração de segundo não bastasse para que eu entendesse tudo -, me pegou pelos braços, me levou ao centro da sala.

“Como era?”

“Que se dançava?”

Fez que sim com a cabeça, e nem sei o que me deu para segurar suas mãos com decisão e desejo, para trazê-la de uma fantasia absurda do passado. Logo eu, o professor recatado que sempre disfarçou na frente da aluna, capaz agora de gesto tão improvável quanto uma aparelhagem de som de quase trinta anos ter sido esquecida com disco e tudo em uma sala de aula em plena era virtual.

Mais alto do que ela cerca de um palmo, toquei o queixo no meio de sua testa e seu rosto encontrou abrigo no espaço aberto da camisa que não abotoei até o final. Senti ali, no peito, sua respiração um pouco mais rápida. Meus braços a enlaçaram na cintura, minhas mãos se fecharam em torno dela acima de seus quadris. Pousou as mãos em meus ombros e balançamos juntos vagarosamente, quase sem sair do lugar, porque sempre naquele jeito de dançar o objetivo era grudar os corpos, pouca importância se dava aos movimentos.

“Era assim, assim que dançávamos”, e contei afastando-a apenas o suficiente para vê-la sorrir tranquila da embalagem tiozão de minhas palavras.

A música alcançou os acordes mais altos, despertando de vez o homem sozinho, solitário depois de um casamento desfeito, a caminho dos quarenta sem pretender fortuna, posição, poder, precisando mesmo apenas daquela pequena acolhedora vida de Fundação Educacional, colégios lá e acolá ao longo da semana, filhas andando de bicicleta nos pilotis do prédio domingo de manhã.

“Você parece as meninas bonitas das festas, que tinham vinte anos em 1980”, e disse o que me pareceu cabível àquela hora. Ela riu e mordiscou o lábio, acho que entendeu o absurdo que só encontrava lugar na minha cabeça.

Afundei o queixo em seus cabelos e o tempo lá fora só voltou a passar quando a música terminou, e percebemos encabulados a coordenadora na porta me perguntando “professor, o que é isso, professor?”, e na janela os moleques do segundo ano rindo e gritando “aêêêêê, professor!”

de  A Maturidade Angustiada (Editora Penalux)


André Giusti nasceu em maio de 1968 na cidade do Rio de Janeiro. Tem oito livros publicados. Além de contos, também escreve poemas e crônicas e, atualmente, se arrisca em seu primeiro romance, com o título provisório de Só Vale a Pena se Houver Encanto. Entre outros livros de contos publicou pela Penalux em 2017  A Maturidade Angustiada, também de contos. Mora em Brasília, onde trabalha como jornalista.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *