
Ficava com um nó na garganta e uma extraordinária impressão
de lucidez e de força. Sorriu. Ia abrir uma excepção aos seus
princípios; pela primeira vez, o interesse seria o móbil do
roubo. Dentro de meia hora, o mais tardar, possuiria aquela
joia, aquele tesouro indispensável. «Aquele thesaurus!»,
murmurou, pois gostava da palavra thesaurus, que lhe
lembrava a Idade Média, Abelardo, um herbário, Fausto e os
cintos de castidade do Museu de Cluny. «Será meu, poderei
consultá-lo a qualquer hora do dia ou da noite»
Boris Sergine, em A Idade da Razão, de Jean-Paul Sartre.
O ensaio de estreia, da coluna “Assim Penso”, a qual assino desde o mês passado, maio, gerou diversos comentários e reações outras. Aos que teceram generosas considerações no campo para comentários desta conceituada revista ou por via outras, sobre o que escrevi, mais uma vez manifesto minha sincera gratidão.
Entre os comentários, alguns chamaram a atenção pelo fato de se referirem a um trecho do escrito, no qual revelo que já fui um bibliogatuno ou bibliomeliante, vale dizer, furtei livros. Causou-me espécie, confesso. Pois a menção é breve, em meio aos demais tantos dados.
Então, a refletir cá com meus botões, decidi ser um pouco mais prolixo, pondo-me a narrar alguns eventos de natureza, digamos, moralmente reprovável, nos quais este já aposentado e sexagenário protagonizou o que um amigo poeta e capoeirista denominava “expropriações”.
Até os quatorze para quinze anos, fui leitor e detentor de livros avulsos ou pertencentes a coleções, adquiridos de maneira honesta. Mantinha, escrupulosamente, minha reputação ilibada. Seguia a vida mediante prisma idealista e cordato, qual aquele insípido e ingênuo personagem de Voltaire.
Foi, então, que, numa modorrenta tarde, fui ter com um colega de escola na casa deste, e o delinquente plot twist intelecto-existencial aconteceu…
Sim, compreensivo leitor, o primeiro livro furtado é como sutiã Valisere sem bojo, ninguém esquece. Eis-me na sala de estar da acolhedora residência. Hudson, o capatázio, estava a organizar, sobre a mesa de escura e lustrosa madeira, com seis cadeiras de assento e encosto de palhinha cor creme claro, os cadernos, meus e dele, mais alguns livros escolares, para que estudássemos, em dupla, rudimentos de Geografia: paisagem, território, região e lugar. Os tais conceitos fundamentais, como eram denominados na época.
Verdade que, assim que adentrei ao ambiente, mesmo de maneira um tanto ligeira, sem que me fixasse no objeto, notara uma bela estante de madeira em tom mais claro do que o das mesas e das cadeiras. Não tão larga, porém quase tão alta quanto uma porta doméstica tamanho padrão.
Sentados à mesa, a bebericar suco de goiaba, escrupulosamente postos sobre uma pequena trilha, oferta gentil da mamãe do Hudson, líamos, em voz alta, trechos dos livros, discutíamos o que, em tese, havíamos compreendido e memorizado, anotávamos nos cadernos marca “Companheiro” e “Recreio”.
Num repente, a portar-se à semelhança dum pequeno e errante corpo celeste capturado pela irresistível gravidade do planeta Júpiter, minha atenção voltou-se, concentrada, para a estante e volumes nela guardados: percebi, mais atento aos detalhes, a enciclopédia “Novo Conhecer”, em capa dura azul-celeste; uma outra, a “Enciclopédia Brasileira Globo”, uma coleção de autores portugueses e brasileiros, dentre outros. Hudson finalmente percebeu que eu não estava a ouvir de todo o que ele dizia e pedia que anotasse. Seguiu minha linha de visada e entendeu o motivo da distração.
Decidiu por um breve intervalo e me levou até os livros. Abriu as portas e teceu o seguinte comentário: “eu quase não pego nesses livros. Meus pais, principalmente minha mãe, lê de vez em quando. Mas ela mesma disse que precisa anotar todos os livros que estão aqui. Ela não lembra nem da metade, eu acho”.
No mesmo instante, sem que eu percebesse de imediato, algo de rapinice instalou-se em meu coração. Mas, ainda, sem seleção. Apenas a oportunidade pairava, mesfistofélica, acima do meu claudicante e kantiano juízo moral.
Examinei alguns volumes, enquanto Hudson se distraía mexendo no seu relógio de pulso. Era digital, novidade. Pulseira de couro, caixa de aço dourada, números a saltarem coloridamente em resposta a um leve toque dos dedos. Coisa de menino rico, como costumávamos, nós, garotos de classe média para baixo, dizer.
Voltei os olhos para as coleções, para os livros solitários… Aqueles correram lombadas até estacarem sobre um livro de pequenas dimensões. Agucei a vista e li o título: “Marujo Intrépidos”, de Rudyard Kipling.
Eu vivia a sonhar com este livro. Até então nunca o lera. Porém, tinha lido sobre ele em coleções dedicadas à história da Literatura, em jornais e revistas.
E por que sonhara tanto com o livro sob alça de mira? Já lera, uns dois anos antes, “O Livro da Selva”, publicado pela primeira vez em 1894. Este, infantojuvenil, mediante o qual conheci os divertidos e aventureiros Mogli, Baguera e Baloo.
Voltemos ao impulso de gatunagem: com algum esforço, cessei de olhar fixamente o objeto de desejo. Afastei-me um pouco da estante e simulei estar a lançar um olhar panorâmico sobre a massa de papel, cola e tinta que se exibia sequiosa por mãos que soubessem tocá-la, manejá-la…
Fascinado, cativado, busquei disfarçar ao máximo. O que parece ter funcionado, pois, Hudson não deu sinais de perceber alguma coisa. Como me afastei, ele levou as mãos às portas. Neste momento, eu, tomado de silencioso desespero, perguntei se poderia beber mais um copo de suco ou de água.
Passei a mão de forma dramática pela garganta, a dar a entender que estava com sede. Apostei num fato que percebi, quando a mãe dele trouxe os copos com suco: a cozinha ficava um tanto distante, a
julgar pelo som prolongado dos passos dela. Sabia que ela voltara para a cozinha porque ela mesma o disse. Avisando que iria fazer sopa.
Prontamente meu amigo e colega interrompeu o gesto de fechar as portas da estante. Disse que iria até a cozinha pegar um copo de água. Na verdade chegou a me chamar para ir com ele. Simulei timidez, receio, estampando na cara a clássica expressão “estou abusando”. Hudson esboçou leve sorriso de compreensão e desapareceu pelo corredor.
Fez-se a oportunidade! Um tanto trêmulo, peguei o livro. Os volumes que estavam à direita e à esquerda do objeto furtado não se mexeram. Ficou, então, um espaço denunciador. Consegui ter a frieza de pegar um dos livros que estavam deitados em cima da fileira, “As Três Irmãs”, de Anton Tchekhov, peça em quatro atos. Ainda que meio folgado, deu para disfarçar. Pelo menos eu apostava nisto. O mais rápido possível o enfiei na pasta. O fiz meio desajeitadamente, o que causou uma dobra na ponta inferior da contracapa. Mas o livro estava para ser quase meu. Alguns segundos após, o anfitrião estava de volta. Copo com água na mão. Bebi de forma solene, aplicada. Estava a necessitar mesmo de um copo com água para aquietar o espírito. Levamos a efeito mais algumas leituras e anotações. Estávamos preparados para a aula de Geografia dali a dois dias. Hudson, após me servir água, sentara imediatamente e retomara o estudo. Quando concluímos, aí sim, ele foi fechar as portas a indagar se eu vira algo de interessante. Respondi que sim, elogiei a biblioteca, citei uma ou outra coleção já minha conhecida.
A tarde findava, as lâmpadas da sala já estavam acesas, todas fixas num lustre antigo, cheio de penduricalhos translúcidos. Na época, apesar do nome me ser familiar, ainda não havia lido Anatole France. O que aconteceu uns seis ou sete anos depois do meu ousado surrupio. Todavia, ao lê-lo em algum momento durante o qual recordei do acontecido, tocou-me, de maneira especial, a descrição do entardecer pelo autor de “O Lírio Vermelho”: “O sol estava se pondo no horizonte; os picos desapareciam, um após o outro, na escuridão, enquanto as nuvens no céu se avolumavam”. Talvez não tenha sido exatamente assim, o entardecer daquele dia, mas preferi, e ainda prefiro, imaginar que foi, sim.
Pus a pasta à tiracolo, apertamo-nos as mãos. Ele me acompanhou até a saída. Na rua, a caminhar, em direção ao ponto de ônibus, fui acossado pelo sentimento de culpa e pelo de satisfação. Sentado na cadeira do coletivo, não resisti e busquei o precioso fruto do meu labor criminoso. Desajeitado, embalado pelo sacolejar nervoso do veículo, abri o livro de forma meio que aleatória. Creio, sem muita certeza, de que era uma página do terceiro capítulo. E não estou com o livro em mãos, agora, enquanto escrevo. Todavia lembro bem da sentença que li: “Eles esvaziaram uma grande travessa de lata com suculentos pedaços de peixe”.
Inté a próxima, se próxima houver.

Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, pós-graduado em Educação, autor do livro de poemas Sob a Régua do Expediente. Publicou, ao longo de dois anos, textos críticos no portal Só Sergipe. Durante os anos 80 e 90 participou de algumas antologias poéticas. Cultiva com ardorosa paixão o ritual de beber, diariamente, bons vinhos e de cozinhar para a Imperatriz Absoluta do Seu Coração.
Leitor contínuo dos Classicos da Literatura e, do mesmo modo, ouvinte mesmerizado da música erudita, do jazz e do blues.Também exerce, há quatro décadas, a função de redator publicitário e diagramador (incluindo composição jingles), é carioca de nascença e mora em Aracaju.
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Nobre Léo, feliz que tenha desenvolvido o tema, trazendo aquele gostinho de infância transgressora. Meus primeiros furtos foram de brinquedos, mas fui descoberto e meu pai me fez devolver, depois foram laranjas do caminhão de frutas, minha mãe me mandou devolver. Isso ainda se repetiu algumas vezes, o que me desestimulou minha inclinação ao crime. Já os livros, usando de abordagem mais sutil, eu emprestava e não devolvia.
Aguardo o seu próximo texto. 🍷🍷🍷
Não tive uma infância, nem uma adolescência cercadas de livros e de adultos leitores. Fui um menino sem Monteiro Lobato, sem José de Vasconcelos, sem K. Rowling. Enfim, não conto com lembranças loas dos que anexam em prolixa biografia um repertório subsequente. E, no meu feliz mais – que – perfeito, curiosamente bem antes de cursar Letras – Português, eu já rabiscava historinhas e as escondia dos amigos e dos professores daquelas escolas públicas muito precárias. As décadas eram de 80 e 90, numa pequenina Água Branca quase rural. Esconder tornou-se roubar o que era meu, como em “A imitação da rosa”, de Clarice Lispector, a qual eu conhecia, como outros autores, de nome. Ausente de “Marcelo, Marmelo, Martelo”, de “O Pequeno Príncipe”, escrevia desenfreadas narrativas de super – heróis que eu não via na TV (Globo e no SBT no bombril tentando sinal com a antena interna). Demoradas e secretas criações minhas. Lembro – me do meu A “floresta gigante”, uma narrativa sem fim em que um pai saía na madrugada mata a dentro à procura de seu filho que o visitava em sonhos. Este pai emendava sonho com realidade e então já não sabia em que esfera da vida estava ele e seu filho. A criança sempre o chamando, sempre por perto, sempre narrando. No fundo, profundamente empírico, sentia eu que o pai roubava as próprias invenções objetivando mentir para si mesmo. Contudo, não me recordo que específica crise existencial aquele homem alimentava na justa procura pelo filho sozinho e abandonado. Era mais ou menos esta a trama em um português inventado por um G. Monteiro que literalmente desconhecia o comportamento verbal de uma gramática e os fenômenos literários quais fossem. Nesta época, roubei da escola um pequeno dicionário Aurélio (o “livro dos burros”, como chamavam) e me chocava quando lia “tormento”, “tortura” para o vocábulo “trabalho”. Retido nesse significado arcaico e sem conhecimento nenhum mas já de posse de um dicionário de bolso, continuava escrevendo histórias e escondendo aquela vida a mais. Devo acrescentar que fui gatuno dos “Cavaleiros do Zodíaco”, dos “Fidgets Toys” e dos “Cavaleiros das trevas”, e não me recordo dos subtraídos. A frustração era não ter como “pegar sem avisar” os autoramas dos coleguinhas mais abastados. Eu os roubava com meu olhar nervoso de nunca pedir partilha. Seria esta biblioteca de coisa alheia móvel uma inconsciente força para escrever aqueles textos medíocres e intensos? Que Deus perdoe o pequeno gatuno; as causas eram justas, e eu não sabia o que fazia. (…) Somente a partir da faculdade, conheci os clássicos da leitura obrigatória e não devolvia alguns livros emprestados. Voltando ao menino forjando horizontes, latente era minha maneira de querer ver o mundo a partir de uma ficção de que eu já desconfiava mesmo sem me haver recursos. O humano em matéria bruta. Em “Reminiscências de um bibliogatuno – Quase um estudo de caso”, fica registrado o Léo Mittaraquis desde jovenzinho com mais oportunidades para a bibliogatunaria. Afinal, cada um com suas raízes e percursos. Aguardamos a próxima publicação para ricos motivos de resenhas neste jogo de roubarmos, furtarmos nós mesmos através da inimputável escrita. Para me frear, a boa leitura agora em Drummond: ” Crimes da terra, como perdoá-los?/Tomei parte em muitos, outros escondi./ Alguns achei belos, foram publicados. / Crimes suaves, que ajudam a viver.”.