
Estava numa das muitas filiais de uma grande farmácia na Praça Saens Peña, na Tijuca, velho e superpovoado bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Era domingo de sol a pino. O relógio digital da praça registrava 38 graus. Calor infernal. Até parecia que andava pela Av. Frei Serafim, em Teresina no meio-dia de verão brabo.
Dentro da farmácia, com ar-condicionado, aquele calor insuportável. Desde criança, quando com mamãe ia ao Mercado Velho, na Teresina da primeira metade dos anos cinquenta do século passado, me queixava do “calor danado.”
“Que caiô danado”! – repetia quase virando um estribilho pra mamãe que nem estava ali para o meu desabafo de criança irritante. O verão carioca semelha, na temperatura, ao calor infernal de Teresina. Só de uma coisa gosto do calor: ele me permite tomar um banho de chuveiro demorado, gostoso, refrescante, animador e sem ter que ligar a água quente.
Enquanto Elza e Alexandre compravam remédios enfrentando duas filas, uma para ser atendidos e outra para aguardar a chamada da vez no caixa, eu olhava tudo ao meu redor; pessoas, prateleiras de remédios bem arrumados. As molduras nas fotografias em tamanho médio perspectivando instantâneos de diversas décadas do século passado mostrando como era a Praça Saens Peña.
E como era diferente em tudo: nos prédios, hoje desaparecidos, no coreto que lá havia em décadas passadas, nas linhas de trilhos de bondes que cortavam ruas tão tijucanas como a Conde de Bonfim, a Barão de Mesquita, a Avenida Maracanã, os prédios onde se localizavam cinemas. Os bondes cheios de gente de roupas de épocas atrás, algumas sentadas, outras em pé nos estribos dos bondes, uma multidão de anônimos hoje talvez “dormindo profundamente” como no belo poema de Manuel Bandeira. Com um olhar apurado, procurava divisar alguma pessoa em particular, a fim de poder tirar alguma impressão do olhar dele ou dela. Nas ruas daqueles tempos passados, viam-se outras pessoas como se delas quisesse eu também extrair alguma informação do que pensavam no momento em que eram fotografadas sem serem notadas. Anônimos seres que jamais conhecemos, de quem nunca saberemos o que foram, o que fizeram, como viveram aquelas épocas, o que fizeram de bom ou errado, o que pensavam da vida e do futuro. Jamais saberemos.
Entretanto, sinto uma grande e misteriosa atração por esses anônimos de anos passados: 1910, 1915, 1927 (Papai, neste ano ainda estava no Rio de Janeiro), 1950, 1970. Casas, contornos das ruas, formas de vida, sociabilidades diversas, modas, estilos diferentes de música, de dança, de teatros, de filmes. Tudo passou, ou melhor, quase tudo passou, pois ainda alguns traços de alguma coisa do passado teimam em sobreviver no presente.
Inopinadamente, meu pensamento suspendeu-se e comecei a olhar para uma moça pequena, clarinha, de cabelos em estilo daquelas atrizes dos anos vinte do cinema americano (aquelas atrizes da era do cinema mudo, dos primeiros filmes de Chaplin), por sua vez, copiado pelas brasileiras da mesma época. É só olharmos para novas avós, claro, da minha geração pelo menos.
Aquela moça mignon, parecida com uma francesinha da “Geração Perdida,” ali entrava na farmácia. Mas, entrava com um arzinho desconfiado, alheado de tudo e de todos. O mais curioso que nela observei foi que andava com os olhos grudados num livro pequeno e aberto pela metade. Caminhava com passo leves, e não deixava de ler parágrafos do livro. Acredito que era um romance, ou um livro de contos. Pela disposição que mal avistei das páginas abertas, não era poesia, nem tampouco poesia concreta. Era um livro que segurava com muita atenção e com muito cuidado.
Seu vestido era fino, bem discreto, multicolorido e lhe caía bem no corpinho frágil. Ao reparar no seus olhos, vi que não era tão novinha e tinha olhos cansados e meio arregalados, o que lhe tirava um pouco de sua meiguice geral. O diabo era que ela não dava bola pra ninguém, mesmo quando eu tentei fixar meus olhos nos seus. Ela fingiu que não me viu, ou talvez não me viu mesmo. Não obstante, continuei seguindo-lhe os passos e ela prosseguia lendo o livro e andando por boa parte da farmácia, que, por sinal, é ampla e elegante. Passou pela fila de compra, pela de pagamento, mas sempre lendo o livro absorta, alheia a tudo. Parecia aquelas menininhas vidradas nos livros de Harry Porter que não o largam enquanto não terminam de ler a última página.

Francisco da Cunha e Silva Filho é Pós-Doutor em Literatura Comparada (UFRJ) e Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira, UFRJ) e possui uma vasta experiência na literatura e na educação. Ensaísta, crítico literário, cronista, tradutor. Colaborador de jornais e revistas. Autor, dentre outros, de Da Costa e Silva: uma leitura da saudade (1996); Breve introdução ao curso de Letras: uma orientação (2009); As ideias no tempo (2010) e Apenas memórias (2016). Cunha é um intelectual multifacetado, com uma vasta trajetória acadêmica e profissional, que o credencia como uma voz importante no cenário cultural brasileiro.
Uma resposta
Crônica que anuncia uma temática, logo no título, mas que parece deixá-la secundarizada, já que afloram outros eventos em parte mais considerável da crônica. Porém, estes ‘núcleos’ não passam de subtemas porque são adensados para majoritarizar aquela moça absorta. Este recurso estrutural e estético acontece em ‘A moça do livro’, de Cunha e Silva Filho, pois o espaço físico e as reminiscências da infância e da juventude parecem insistentes e isolados do interesse centralizante, justamente para uma entrega, uma hipervalorização da personagem. Sim, ela se torna heroína quando todo um pretérito do narrador se enfatiza com o efeito de mostrar o quanto a moça é decisiva e recepcionada quando todo as sequências anteriores são ‘apagadas’, a ponto de se juntar todas as novas peças para exclusivisá-la na trama. Por isso é preciso rever uma intensa vida anterior, uma sustentação da psique com o fito de tentar compreendê-la, ousá-la em sua inacessibilidade de leitora. Cunha tem esta destreza de, antes do prédio, não esquecer o terreno e o alicerce.