Coluna Guido Viaro: Grand Tour/Capítulo 2

Ilustração: Christian Schloevery


Avançamos alguns quilômetros, Cunningham gritava com os cavalos e estalava o chicote, Waterfall estava mergulhado na leitura de um livro volumoso, eu contemplava a paisagem esverdeada que entrava pela janela junto com a poeira e os odores quase selvagens. A cabine, decorada em vermelho e riscada por ornamentos douradas, aparentava ser confortável, caso a carruagem estivesse parada, porque os solavancos do percurso consumiam muita energia, tanto que após alguns minutos meu preceptor desistiu de sua leitura.   

Então foi minha vez de desistir, pedi para que Cunningham parasse pois estava enjoado. Contrariado, ele deteve os cavalos e me disse que até ali havíamos viajado por uma estrada ótima, e que me preparasse para dificuldades muito maiores. Assim que pisei em terra firme vomitei. Imediatamente me coloquei na pele de meus dois companheiros de viajem, principalmente de Cunningham, o que deveria pensar de mim? Um frágil e mimado ser incapaz de resistir a qualquer mínima adversidade física. Precisava provar o contrário, minha determinação e força, minhas vontades e desejos de descoberta, não que isso contasse algo para eles, mas pelo menos emprestaria algum significado a um esforço tão grande que apenas começávamos a empreender.  
                                                                                  
Comecei pedindo desculpas aos dois, Cunningham apenas piscou um dos olhos e se manteve em silêncio. Waterfall disse que isso era normal e que em uma semana meu estômago estaria perfeitamente adaptado à viagem em carruagem. Decidimos aproveitar a parada para fazer um lanche. Havia uma grande macieira e posicionamos os cavalos em sua sombra. Comi dois sanduíches de queijo e bebi água, meia hora depois sentia-me bem melhor. A árvore estava carregada de frutos e exalava odores agradáveis que se misturavam com os das margaridas que circundavam o tronco. Cunningham apanhou um galho caído, sacou de seu canivete e começou a esculpi-lo. Aos poucos percebi nascerem os contornos de uma mulher. Waterfall, depois da refeição, voltou à paz de seu livro. 
                                   
Sem que nenhum deles percebesse decidi escalar a árvore. Não sei o que queria provar, talvez do topo conseguisse enxergar algo interessante, ou então apenas tentava demonstrar para mim mesmo uma força que compensaria a fraqueza que demonstrei aos outros. Os primeiros galhos estavam carregados de maçãs, mas decidi colhê-las apenas na volta. Atravessei a primeira camada de galhos e com muita agilidade saltei em silêncio para o segundo andar. Os galhos eram mais finos, mas fortes o suficiente para suportar meu peso. Meu ponto de vista se ampliou, e descobri dois casebres com fumaça que saía pela chaminé atrás de uma pequena colina. Com cuidado redobrado ascendi mais um nível, percebi a relatividade dos tamanhos e como outras realidades brotavam onde parecia nada haver. Vi campos arados e juntas de boi molhando o chão com seu suor. Os galhos finos balançavam com o movimento de meu corpo, mas pareciam solidários, não iriam me abandonar. O sol lançava seus suspiros amarelados por entre as folhas, e manchava o vermelho das maçãs com seus calores. Encostei uma delas em meu rosto e experimentei a temperatura, a sensação foi de acolhimento, mas havia também o cheiro de madeira verde misturando prazeres e revelações. Nesse instante tive tantas certezas, o mundo conspirava e eu havia descoberto suas intenções secretas. Era o único que conseguia navegar sobre essas águas, sentir seus sabores e atravessar as fronteiras entre as muitas substâncias. E esse talvez seja o momento de maior juventude a que alguém possa ambicionar.    
                                   
Mas ele acabou. Como acabam todos os tipos de instantes. Fui traído por um galho frágil, talvez descontente por não poder participar da conspiração. Minha mão perdeu-se no vazio eu me desequilibrei e caí do alto da macieira. O impacto surdo não causou dor, mas o realmente importante foi o que se seguiu. Durante algum tempo, que não consigo mesurar, tudo o que aconteceu pertencia a uma outra ordem de acontecimentos. Acho que acontecimentos é uma palavra mal usada, pois se refere ao mundo que conhecia antes da queda. Nesse novo mundo que descobri, nada acontece, pois tudo o que pode existir, já parece estar presente. Ao mesmo tempo em que não há novidades, não existem ausências. Algo como um pintor que consegue representar em sua tela todas as pessoas e objetos que existem, retrata também todas as ideias e sentimentos que existiram, e nos espaços em branco entre as figuras, simboliza aquilo que nunca existirá, mas que também, à sua maneira, pertence ao espectro da existência. 
                                                                                
O que vi foi um mundo que caminhava devagar, com cores muito vivas. As gramíneas ao meu lado possuíam o vigor de grandes pinheiros lutando contra uma tempestade de vento, mas o verde de suas folhas parecia não caber naqueles corpos, espalhava-se como ondas energéticas contaminando o marrom da terra e fundindo-se com os raios perpendiculares de sol. A mistura formava uma sensação difícil de definir, mas cuja palavra mais próxima que conheço para nominá-la é: música. Uma música que também era dança, e que espalhava lentos odores vindos de todas as origens possíveis. As grandes ondas do existir fundiam suas cores, gritavam ritmos que se transformavam em danças que, eventualmente ocorriam em absoluto silêncio e sem qualquer movimento.   
                                                                              
A macieira pulsava como uma inflamação, cada uma das maçãs brilhava seus interiores, e parecia declamar sua declaração de existir, enquanto isso, as réstias azuis entre os frutos, exibiam seus intestinos, o azul claro era escuro, negro, polvilhado por corpos celestes, e também dançava, cantando sem música, desistindo de sua eternidade, encolhendo-se de maneira a caber dentro de um pé de grama. Fazendo com que a luz emanada, no instante em que o eterno se comprime dentro do finito, incendeie todas as retinas que conseguirem contemplar a cena. Mas, afortunadamente, eu não assisti àquilo com meus olhos, nesse mundo que descobri após a queda, eles são ferramentas quase sem eficácia.     
       
Flutuei por céus que englobavam pessoas, igrejas e riachos, o sol em todos seus estados de fúria e descanso, e a palidez lunar refletida em águas noturnas. Mas quando digo que flutuei, talvez ainda seja a parte de mim anterior à queda quem esteja falando, porque possivelmente, quem tenha flutuado, fosse exatamente quem não sou eu, todo o resto, e minha individualidade, a ilusão de ser algo separado do todo, pode não passar de algum reflexo aleatório entre a miríade colorida e musical que desfilou.  
                                                                                                                     
Não sei se estou vazio ou cheio, nem se a experiência acabou com os meus espaços vagos, ou pelo contrário, inflou tudo aquilo que em mim não era substância. Descrente e mergulhado em mar incandescente de dúvidas, prossigo na descrição daquilo que pode não existir ou ser mais sólido que a rocha.   
                       
Flutuei por céus que englobavam pessoas, igrejas e riachos, o sol em todos seus estados de fúria e descanso, e a palidez lunar refletida em águas noturnas. Mas quando digo que flutuei, talvez ainda seja a parte de mim anterior à queda quem esteja falando, porque possivelmente, quem tenha flutuado, fosse exatamente quem não sou eu, todo o resto, e minha individualidade, a ilusão de ser algo separado do todo, pode não passar de algum reflexo aleatório entre a miríade colorida e musical que desfilou.
                                                                                               
Antes de continuar a descrição, que talvez se pareça mais com um raciocínio, abro um parêntesis para uma de muitas possíveis consequências da experiência acontecida após a queda da macieira: pode ser muito perigoso para um jovem de vinte e um anos, duvidar da própria existência. Ainda mais arriscado, e a diferença aqui pode parecer sutil mas é profunda, é desacreditar que se é. Uma existência pode ser destruída apenas pela ausência de uma forma que comporte seu conteúdo, já quando tratamos de não ser, é o conteúdo que desaparece e não importa que consigamos os mais belos e resistentes frascos para abrigarem o ser, se ele não for, eles permanecerão inapelavelmente vazios. Mas foi exatamente o que me aconteceu. Após a experiência, passei a desconfiar de que era. Fato que como consequência eliminava de meu redor todo o resto, e transformava tudo, inclusive meu Grand Tour, em nada.  
                                                                                        
Mas antes de entrar nessa seara, prossigo minha descrição sobre o terremoto de sensações que derrubou aquilo que até ali havia construído e abriu fendas sem fundo onde águas de todas as cores, e seres de todas as constituições prosseguem existindo. Aos poucos as fusões entre cores e cheiros arrastaram também as imagens que enxergava e o meu próprio ponto de vista, que dissolveu-se, transformando-me em muitos, em um primeiro instante, e em seguida, em todo. Eu via o mundo com os olhos de cada átomo, e também dos respectivos conjuntos de átomos que formavam moléculas, células, folhas de grama, árvores e cometas. Fui um homem, que não eu mesmo, e depois fui todos, transformei-me em uma opinião coletiva que ao mesmo tempo era individual. Senti que entre um piscar de olhos, havia lido todos os livros que já foram escritos e também os que ainda serão, e havia adquirido todo o conhecimento neles contidos. Estava também ciente de cada ideia que vagou por cada uma das mentes já e ainda não nascidas, e que não conseguiu ser cristalizada em forma escrita ou de realização.   
                                
Compreendi dores, engoli injustiças, desdenhei de amores, evaporei apegos e aprendi com um oceano de lágrimas secas. Tudo o que era humano, fundido àquilo que não era, nada escapava à minha compreensão, eu era e vivia o objeto e sua sombra, e também a luz interrompida por meu corpo, e todas as tonalidades intermediárias entre qualquer forma de extremos. Fui o ferro ardente pronto para ferir qualquer carne que não fosse a minha, e também um mar morno de compreensão e aceitação do outro. Perdoei mágoas ao mesmo tempo em que assava ódios em chamas voluptuosas, que ergueriam cortinas de fumaça escura, que após serem transformadas em nuvens, choveriam sobre um chão de pedras quentes. As sobras se dissolveriam, escorreriam por canaletas até se misturarem com outros sumos, feitos de substâncias opostas, equilibrando o mundo e pincelando os horizontes com o gosto de eternidade.   
                                                            
Então, assim como veio, o terremoto foi embora. Cunningham e Waterfall correram para me acudir, mas eu simplesmente fiquei em pé, nenhuma dor ou mal estar. Agachei-me, movimentei os braços, sentia-me exatamente como antes da queda. Respondi a algumas perguntas, mas antes de partirmos, pedi para ficar sozinho por alguns minutos. Afastei-me da carruagem, e sentado nos restos de um tronco caído, deixei com que as perguntas chovessem. O temporal inundou tudo ao redor, e quando a violência das águas diminuiu, senti-me mais perdido do que nunca.    
                                                                                                                            
Cunningham veio me chamar, precisávamos partir. Caminhei vagarosamente na direção da carruagem, e foi durante esse curto percurso que tomei uma decisão: iria escrever sobre minhas experiências da viagem. Não propriamente um diário, daria brilho aos meus aprendizados mais importantes. E são exatamente essas folhas que, vocês leitores, têm agora entre as mãos. Mas também decidi que faria isso usando a maneira com que a vida, de fato, funciona, ou seja, aquilo que havia aprendido com a experiência da queda. Agora que sei dos relativismos dos seres, das flexibilidades temporais, das cores ocultas nos âmagos de sombras, e dos vapores sonhados e que perfumam os primeiros minutos daquele que acordou, agora posso avançar, saltar em muitas direções, dizer sem haver pronunciado qualquer palavra, e gritar apenas com o olhar, mesmo que as pálpebras permaneçam fechadas.   
                                                                                                        
E é o que farei, saltemos para o último dia de meu Grand Tour, antes que iniciássemos o retorno para a Inglaterra. Trinta e sete meses e quatro dias após atravessarmos o Canal da Mancha, Roma fervilhava seu verão, um sol que parecia que jamais se cansaria de existir, manchava as fachadas ocre dos casarões, para depois mergulhar nas águas prateadas do Tibre. Da janela de meu quarto cheiro as laranjas quase avermelhadas que tantas vezes adoçaram meus dias, uma última manhã, depois almoçaremos e então o início do retorno. A visão de minha bagagem pronta para ser embarcada, e especialmente das obras de arte adquiridas durante o percurso, são como uma sombra encobrindo a pureza de um dia que acaba de nascer. Desvio os olhos buscando a janela e principalmente a luz que vem de fora, mas uma delas fere minhas retinas com uma substância mais perigosa do que meras sombras.   
                                                                                                                       
É um quadro de grandes dimensões, parcialmente embalado, e que retrata uma ruína romana, algo como um fórum ou templo, que começa a ser encoberto pela força da natureza. Arbustos e relva rastejam o mármore do chão e ramos de hera tentam escalar as sobras de colunas. Ao redor do prédio a natureza construiu uma camada sólida de árvores, que além de exalarem juventude, são como um maxilar sedento para engolir aquilo que não é ela mesma. De dentro dessa mata sai uma figura amarelada com dois luminosos olhos verdes, é uma fera impaciente que mostra suas presas para o pintor, ou então para todos aqueles que, ao longo do tempo, contemplarão esse quadro. Uma ameaça? Não sei, talvez não, a presença da fera não me agride. O que me incomoda é a completa ausência de qualquer ser humano. E mesmo as marcas por eles deixadas, são ruínas prestes a desaparecer. O grande maxilar-natureza, depois de realizar sua missão de destroçar vestígios construídos pelo homem, talvez ele mesmo se torne presa de um outro maxilar, e a sequência prossiga, até um dia em que uma mandíbula especial conseguirá devorar a si mesma e nada mais sobrará.        
                                                                           
Então, esse nada que reinava absoluto, terá seus cantos manchados por uma espécie de ferrugem, que destruirá as certezas e servirá de útero para que novamente, a existência venha à tona. E ela será muitas, de todas as cores e formas, e até sem elas. E esse caminho será longo e lento, até que novamente fóruns e templos precisem ser construídos, quadros pintados, viagens de descoberta vividas, escritas, e depois lidas. Então os espelhos farão sentido, serão compreendidos, o objeto corresponderá à sua imagem, acabarão as ilusões porque todas as equivalências estarão em pleno equilíbrio.      
                                                                      
Mas isso, de fato, já ocorre, são apenas nossos olhos frágeis que nada conseguem enxergar. Nenhum de nossos sentidos possuí raízes sólidas, bem fincadas no chão do real. Por isso precisamos do mito, pai da esperança, que se algum dia conseguisse olhar para um espelho, encontraria ali uma imagem idêntica à sua, mas que atenderia também por um segundo nome: irreal. Então descobriria que atrás da imagem que vê refletida, há outro espelho, que projeta reflexos da mesma imagem, que novamente, mas com um tamanho menor, é reproduzida. Os reflexos diminuem de tamanho mas se projetam até o infinito, carregando consigo todo o peso dos objetos que propagaram sua imagem, a massa física, e também a simbólica, incluída aí todas as consequências advindas desses símbolos. O leopardo amarelo com grandes presas expostas, dançará entre realidades, será semente de raciocínios mas também figura repousando em mundo sem testemunhas, Será fumaça etérea, originada de fogos ausentes e também a realidade de seus amarelos, a cor mergulhada em uma piscina dela mesma, sua essência última. Isso também acontecerá com o vermelho carnívoro de sua boca, que após conhecer a própria realidade, espargirá medo pelas frestas intermináveis dos eternos reflexos, impressionando olhos vadios que estiverem passeando no raio de alcance do sistema reflexivo que se formou a partir da existência do quadro e de meu testemunho de sua existência.    
                                                                                                  
O quadro é levado para dentro da carruagem que ainda demorará algumas horas antes de partir. Despeço-me de Roma, uma longa caminhada até o Foro Romano, novas colunas dilapidadas pelo tempo, o mármore esculpido tentando voltar à sua origem. Em torno a grama aparada pela administração municipal, e ao invés de um leopardo, muitos gatos rajados disputando restos de comida deixados por romanos e turistas. Mas aqui há vida, gente de todo o tipo passeando, se dirigindo ao trabalho, ou então sentados no gramado, esquentando os braços no sol outonal. Um deles suspira, tem olhares vagos que não se contentam com nenhuma direção. Talvez uma dor aguda, ou então a mera ausência de uma bússola que indique que não caminha em círculos.  
                                                                       
Afasto-me dele, pois sei que qualquer troca de olhares pode comprometer a observação. Não quero chegar à conclusões, mas elas me parecem inevitáveis: não importa a origem daquelas dores ou seu tamanho, e nem mesmo se são de fato dores, ou até uma felicidade disfarçada, o certo é que ali acumula-se muita vida, uma lagoa vital que desce do céu em forma de luz, e depois explode com cada movimento do homem, construindo realidades e consequências, e fazendo jorrar símbolos, que se espalham ao seu redor, buscando leitores que compreendam aquele idioma.  
                                                                                                                           
Deixo-o para trás, um pouco adiante está o Coliseu. Os pintores não cansam de retratá-lo, alguns o fazem com a vida e a morte que por aqui circulavam há quase dois mil anos. Gladiadores se enfrentam, ou então batalham contra leões pela própria vida, sob os aplausos entusiasmados de quarenta mil espectadores. Há bocas abertas e punhos em riste, há o movimento de espadas e escudos tentando proteger aquelas vidas que só sabem existir, e farão de tudo para continuarem como são. O sol mancha parte da arena e atrás de um dos portões que dá acesso a ela, dois soldados seguram uma corrente em cuja ponta está amarrado um nervoso leão. Muitos dos espectadores são meros pontos escuros de tinta sobre a tela, ficções coletivas amarrando suas existências em um quase borrão escurecido que arrasta-se por todos os degraus da plateia. Por um instante me pergunto se não haveria ali muito mais verdade do que a obra aparenta, e que muitas pessoas, apesar de possuírem suas consciências que as colocam sempre no centro do universo, se elas, no fundo, não passariam de borrões escurecidos feitos para preencherem espaços vazios?         
                                                                                       
Os pintores e o Coliseu ficaram para trás, ainda tenho algum tempo antes do embarque, e vagueio sem destino pelas ruas de Roma, mas a realidade parece haver perdido um pouco de seu brilho, os dois quadros ainda ocupam meu pensamento, a ruína com o leopardo e o Coliseu fervilhando de vida. Ali parecem estar retratados dois opostos, a vida do leopardo não conta, ela é um escárnio, uma mandíbula que está ali justamente para suprimir qualquer resquício de vida e depois desaparecer imediatamente. Mais do que vida e morte, quem se confrontam são a existência e a ausência dela. Roma desaparece, e sinto os céus desabarem sobre a terra, empurrando todo seu peso em um confronto que me ordena a escolha de um lado. Mas não sei o que responder.    
                                                               
Lembro-me de Hamlet, mas sua figura frágil apenas alimenta a fogueira de minhas angústias. A vida fervilhante do Coliseu não seria apenas um caminho para uma ruína esvaziada, onde a última das consciências, uma amarga fera, cujas presas afiadas jamais devorarão as presas com as quais costumava se refestelar, lambe cantos, perde líquidos e assiste em uma poça d’água quase seca, suas últimas e já pálidas manifestações de furor?    
                                                                                                
Com a garganta seca entro em uma taberna onde peço água e me oferecem vinho. Com uma mistura das duas substâncias afogo a sede. Das mesas vizinhas vêm os cheiros de presunto e queijo, e os gritos bem temperados que aparentam tanto indicar amores quanto ódios, mas que aprendi, significam apenas que a vida está presente, acontecendo de maneira corriqueira, mas não por isso menos grandiosa. Tamanho esse, talvez o mesmo de seu oposto, o não existir. Apesar de parecer mais numerosa e extensa, a não existência deve ter altura e peso compatíveis com as de seu rival. Permito com que sons e odores inflem meus sentidos até que, como acontece aos homens submetidos à tortura, confesse uma verdade que nem sempre tem raízes plantadas fundas no chão. Então confesso: amo estar vivo, e nesse instante não trocaria minha condição por nenhuma forma de não-existência.   
                                                                                                                     
A juventude talvez colabore para essa confissão, pois maquia os espaços vagos que o tempo vai ampliando, e que costumam constituir a maior parte da superfície da vida dos mais velhos. Entretanto, acredito que as ilusões devam ser vividas com toda a intensidade. O tempo, e suas inevitáveis consequências, deve ser armazenado dentro de um baú trancado à chave, e depois enterrado no mais fundo dos buracos. Com o transcorrer das décadas, a figura mortiça que dentro da arca repousa, aos poucos despertará, então perceberá o acontecido, e cavará seu caminho rumo à superfície. Quando sair do fundo da terra, estará exatamente em frente aos pés daquele que a sepultou. A essa altura, uma figura provecta com olhos e esperanças corroídas. A troca de olhares dispensará o uso de qualquer palavra, a aceitação, de ambas as partes será plena, não haverá forças sobrando para que haja luta. Mas no rosto do velho sobrarão traços de mágoa, pois sabe que depois de tantos anos existindo, agora mergulhará no reino do nada. Todas suas conexões serão desfeitas, cada uma de suas esperanças e apegos, derretidos. As sombras se transformarão em objetos, e o sol em escuridão. Então ele sorrirá com desdém, a casa foi construída com tanto apreço, os materiais cuidadosamente selecionados, a mão-de-obra inspecionada e o projeto bastante questionado, para finalmente tudo ser demolido e o terreno voltar a ficar vazio.     
                                                 
A mágoa então secará e se transformará em interrogação: Se esse fato ocorre a todos, e é inevitável, deve ao menos possuir um sentido. Não deveria eu, ou ele, pois ainda não sou ele, usarmos o pouco tempo que nos resta para tentar descobrir primeiro, se há um sentido nesse acontecimento, e em caso afirmativo, qual ele é? Enquanto reflete, o velho percebe que a fera que saiu de dentro da terra, agarrou uma de suas pernas e tenta escalar-lhe o corpo, então ele apressa seu cérebro pedindo uma resposta para a questão. Mas a mente agora está ocupada em rechaçar o ataque, e transforma os restos do velho em uma máquina instintiva que trabalha apenas pela própria sobrevivência. Então fera e velho, junto com as sobras descarnadas das questões, são tragados para dentro das reticências. Depois da comilança, as estrelas sem brilho apagam-se, o tempo se derrete sobre suas próprias incandescências, e as luzes emitidas por essa explosão afundam dentro de si mesmas. Não há escuro porque nunca houve claro, já que o tempo também perdeu a existência.    
                                                                                                
Mas, por enquanto, o ponteiro do relógio continua girando em círculos, na verdade um único círculo, eterno, que faz com que cada minuto pertencente ao passado, compense outro, que segundo nossos olhos ainda não aconteceu, e nos posicione, consciências cientes de si mesmas, sobre uma lâmina ardente, que nos divide em dois, enchendo-nos de glórias e dores, e que se chama: presente. E são esses ponteiros que me informam que preciso partir, a hora do retorno se aproxima.
                                                                                                                                          
No caminho de volta passeio pelos milhares de acontecimentos ocorridos desde que deixei Londres. Tudo fervilha como um cozido borbulhante de mariscos, alguns deles ainda abrem e fecham suas cascas antes de finalmente se renderem à imobilidade. Mas há ainda o movimento da água fervente que explode em bolhas, o ruído emanado por elas, e os odores, há também a expectativa que a visão do cozido desperta em mim e todas as consequências disso. E a principal delas é: O que devo fazer? Tirar a panela do fogo e servir-me do cozido? Ou então apenas observar a cena, até que os líquidos sequem, os mariscos sejam queimados, a panela derreta e o fogo se extingua?    
                                                                                
Não sei, é essa a conclusão que chego. Talvez as conclusões sejam como o sistema digestivo, e necessitem de tempo para serem digeridas e processadas. Vejo de longe a carruagem preparada para partirmos, distingo a figura volumosa de Cunninghamsentado em seu assento de cocheiro, e a de Waterfall, andando em círculos, aparentando impaciência. Sinto que essa é a última página desse livro que venho lendo há mais de três anos, e que ela já não me desperta interesse. Os finais se parecem muito entre si. Não vejo a hora de abrir um novo livro.



Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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