
Sllllllllllccccccchhhhhhh, zzzzzzuuuuuuuuuccchhhh, vvvvvvllllllllluuuuuuffffttttt, não, não sei, eeeeeeeevvvvvvvvvvvxxxxx…. allllllllaaaaaaaaa druuuuuuuuu treeeeeeeeee chhhhhhhhhiiiiiiiuuuiiiiuiuiuiui, sim, sim, hhhhhhaaaaaaalllllll, céu, ceia, sábio, sina, sínodo, vlaptrau, antoninos clamores, fluirescentes-fluidos fluxos-amarelamanhã, empul, desses-dentes, deuses? Dançando azul, vluchhhhh, mitontem= sou, ahhhhhãaaa, suspirosas desesperanças, encardidas entre dias klllllaaanc, suspitos palavra…. pazacalmada, almazinhavre, antú-rios: peixeflorido. Trachhhhhhhh, glóriasacontecidas, espectrosesperados, euoutros: encontros? Ser-eno, o-não-ser, o-nada-cansado-de-não-ser yahhhhhhuuuuu-dor, voltar a ser, desejescravo…nim, sendo e não, sindo, sentando, sentindo, suando, palavreando, inutilzinho, caindo, sendoutro sem dó do outro, sinasinistra: ser só si espaçosvagos- vagando palavras ocupadas por ideias, idades sem pessoa esperando eternidades para acontecer, envelhecidas, envilecidas, envoltas em opostos, espocando aparências tortuosas orgulhosas de seus orgulhos, mergulhando vluchhhhhhh, destruindo coerências, sendo o que nunca fui, num reino onde tudo flui, anoiteceres radiosos, molhados da luz escura que planta estrelas dentro do dia.
Retorno ao império das coerências, suspiros fundos e o mundo voltando a ser aquilo que sempre foi. Faz dois dias que caí da macieira, e desde então venho sendo perseguido por esse fantasma invisível que desamarra os sentidos e permite com que tudo flutue. Molho-me de esperanças alheias enquanto o tempo desaba sobre minha cabeça, voo como uma águia, mas logo descubro que não há asas, ou céu. Não paro de descobrir aquilo que mal suspeitava existir. Meus pés desencontraram todas suas referências, as pedras íntimas agora são meteoritos cruzando um horizonte cuja cor, faz com que jamais desconfie se tratar de um horizonte. Eu sou outro, ou melhor, outros, e eles, por sua vez, são outros eus, que não apenas eu. O que faz com que eu, seja sempre um estranho para mim mesmo, e flutue dentro de incoerências e glórias que não são as minhas, delicie-me com sabores que não aprazem a meu gosto, mas que devem alegrar alguém que não eu. Isso vale também para o reino das ideias: penso outros que me pensam, e cujos pensamentos (tanto os meus quanto os alheios), são o sol dourando mares, lagos, e poças de água.
Não posso dizer que essa vida não é mais rica do que aquela que possuía até dois dias, mas preciso decidir se desejo essa riqueza, ou se ela só me trará as agruras do ouro. Narrei a Waterfall o que vem acontecendo, ele disse que eu não me preocupasse pois esses sintomas eram normais e se originavam do cérebro inchado que se atrita com a caixa craniana. Mas de todas as incoerências, aquilo que mais me impressiona são as centenas de rostos de pessoas desconhecidas que enxergo, os vejo de olhos fechados, mas também flutuando sobre montanhas, ou então ao meu lado, quando menos espero. Por vezes são apenas cabeças, mas em outras ocasiões elas vêm acompanhadas por um corpo translúcido, ou por partes de um. Há momentos em que essas cabeças olham para outro lado, falam, em diversos idiomas, mas há vezes em que se dirigem diretamente a mim, pronunciam meu nome, exprimem os mais variados sentimentos, fazem-me confissões, e então desaparecem. Já percebi que a maioria dessas figuras que se dirigem a mim, costuma reaparecer, mas nem sempre com a mesma idade. Reconheci adolescentes que se transformaram em anciões, belas mulheres sulcadas pelo tempo, assisti também a alguns funerais que imagino serem dessas pessoas que pareciam ter algo a me dizer. Mas vi eventos ainda mais estranhos, rostos que se repetiam e que a cada nova aparição pareciam remoçar, jovens que se tornavam crianças e que depois desapareciam dentre dos ventres de suas mães. Mas havia ainda uma sequência de imagens depois do ventre, eu via o mundo em toda sua amplitude, via homens e mulheres envolvidos em cenas cotidianas, via gente entediada e morrendo, via cenas de trabalho e sono, de paz e desespero, via homens reflexivos que se banhavam enquanto pronunciavam palavras que passeavam por suas mentes, e outros compenetrados em extrair de seus cachimbos todo o prazer de que o fumo é capaz de proporcionar. Via tudo isso e suas consequências, uma onda invisível que se levantava de cada uma dessas ações e se condensava sobre o planeta. Talvez o espírito de todas as coisas, e era nele que mergulhavam aqueles que avançavam na contramão do tempo, deixando para trás a infância, para nadarem em águas ainda mais voláteis.
Então fixei minha atenção nessa névoa espirituosa que pairava sobre a Terra, não sei se a confundi com a aurora que manchava o horizonte real, e que se oferecia a mim, mas tive a impressão de que a substância invisível havia sido tingida de alaranjado. Abro um parêntesis aqui porque acabei de mencionar a palavra real, fiz uso dela apenas para distinguir as duas camadas de realidade, pois depois da queda da macieira, real passou a ser tão relativo quanto eterno ou distante. Fechado o parêntesis volto às nuvens alaranjadas que rodeavam o planeta, elas eram feitas de todos os tipos de substâncias que conhecemos, possuíam toda e cada densidade possível, eram luz e ideias, eram cada sentimento que existe e também partículas acumuladas pelo acaso, mas eram, ao mesmo tempo, fruto de planejamento, ideias e suas sombras opostas, origem e sepultura, lindas ondas de existir, que desabavam do alaranjado para rios lilases, e então para a cor que a romã cortada despeja dentro de um dia ensolarado. Tudo era imerso em movimento, que misturava tanto cores quanto sensações, fundindo causas a consequências, dentro das covas abertas na terra do cemitério, havia berços com bebês saudáveis implorando para conhecerem o mundo que viam só através do retângulo de terra que havia sobre suas cabeças. E enquanto as covas ficavam cada vez mais rasas, fazendo com que os berços aflorassem como o broto em busca do sol, havia outras sendo cavadas por mãos invisíveis, e que erodiam exatamente os sete palmos necessários e respeitavam com disciplina o formato padrão do retângulo.
Antes, acho que apenas conseguia ver as horas no relógio, mas agora, após minha queda, parecia que a máquina revelava todos seus mistérios, observava como as engrenagens se encaixavam, como os dentes metálicos formavam redes de consequências que faziam com que sutilmente escorressem por entre elas a esguia mescla de significado com substância que nominamos tempo. Estando ciente de como se operam os mistérios, desvendando as origens e não me surpreendendo com os finais, passei a duvidar se era isso mesmo o que desejava. Invejei olhares inocentes e respostas prontas, o encanto do mistério, mostrando uma de suas pétalas a cada vez, desaparecendo durante a noite para voltar a existir com as primeiras luzes da manhã.
Precisava acreditar nas palavras de Waterfall, o cérebro desincharia e tudo voltaria ao normal. Eu, de fato, nunca mais seria o mesmo, pois moraria em mim a recordação do que havia visto e sentido, mas esse era um fardo que poderia ser carregado. Mas se essa situação se perpetuasse indefinidamente e eu envelhecesse com um pé em cada canoa, nesse caso, a vida se afigurasse peso demasiado. A maré separaria minhas pernas e a vida não passaria de dor.
Dias se passaram e as coisas continuavam iguais, cabeças flutuantes, sensações estranhas de não ser eu mesmo, pensei em recorrer novamente a Waterfall, mas já sabia que ele não me diria nada diferente do que disse na primeira vez. Aproximei-me de Cunningham, que fumava olhando para o horizonte, descrevi exatamente o que vivia desde a queda. Ele me escutou com atenção sem dizer uma palavra, depois entrou na carruagem e voltou com uma garrafa e um copo na mão. Encheu o copo e pediu que bebesse, o cheiro de álcool puro embrulhou meu estômago, mas ele pediu para que eu virasse o conteúdo de uma só vez. Fiz um esforço para manter o conteúdo no estômago, dei alguns passos e voltei a sentar-me ao seu lado. Ele pediu para que eu bebesse outro copo cheio, esse foi mais fácil de beber mas mais difícil de manter dentro de mim. Minha cabeça deu voltas e senti uma enorme vontade de vomitar, então ele encheu um copo com água e pediu para que bebesse. Aos poucos cabeça e estômago foram se acalmando. Ele me ofereceu um prato de sopa, que com dificuldades consegui terminar. Adormeci profundamente e não me recordo de haver sonhado. Acordei no dia seguinte, e apesar da sensação de ressaca, vivi uma manhã como todas aquelas que antecederam minha queda. Quando tentei argumentar com Cunningham, ele desviou de assunto, não havia me curado, tudo não passara de uma bobagem de minha cabeça, coisa de, segundo suas palavras “um cérebro mimado”. Não tomei aquilo como uma ofensa.
Zluchhhhhh, vrtiiiiiiissss, eleeeeeeeooooooh, e outros acontecimentos estranhos, não cessaram por completo mas diminuíram consideravelmente, tanto no número de vezes quanto na intensidade, não acredito que o tratamento de Cunningham teve alguma influência nessa diminuição, deve ser meu cérebro que voltava a seu lugar de origem e parava de me atrapalhar. Mas o fato de eu saber que há outro mundo, outros olhos, que o tempo existe de maneiras diferentes e pode, eventualmente, até deixar de existir, isso estava fundido em bronze no fundo mais perene de minha alma. Tudo o que pensasse, qualquer conclusão a que chegasse, passaria por essa constatação: Somos outros, e todos eles, julgam que sou eu. Um eu que é cego e náufrago, e que em razão dessas condições, desconhece seus companheiros.
Os dias passaram e comecei a me acostumar com o ritmo da viagem. Nossa primeira grande parada foi Paris, uma cidade que não apenas parecia estar virando de página, como concluindo um dos volumes de sua história para iniciar outro. As obras de Napoleão espalhavam-se pela cidade, novas avenidas mais largas, jardins, palácios, sistemas de esgoto, uma cidade que prometia abraçar o século 19 com energia suficiente para nele deixar suas marcas urbanas. O sangue da guilhotina parecia coisa do passado, mas as ambições napoleônicas pintavam o horizonte com cores estranhas, avermelhados mal posicionados que descambavam em alaranjados, e conforme a intensidade dos ventos, poderiam fazer chover morte sobre a França. Mas a tragédia dependia de muitos fatores para acontecer, e esse mesmo homem ambicioso que poderia ser a fagulha que daria origem ao incêndio, ele também havia plantado muitos jasmineiros, que nos dias de verão, faziam Paris nadar em seus odores e lotava cafés com homens lendo jornais e iniciando uma vida social que até então não existia. Ninguém trocaria aqueles odores, e a paz, que apenas punha para fora da terra seus primeiros brotos, pelo cheiro de carniça da guerra.
Ótimos tempos para visitar Paris, dias dúbios cheios de uma energia pulsante, que contaminava intelectuais, historiadores, escritores que em fins de tardes vinham relaxar nos banhos públicos recém criados por Napoleâo. Waterfall costumava me apontar algumas figuras na rua ou em cafés, e depois, em privacidade, discorria sobre a obra da pessoa em questão. Às vezes dizia que aquele homem possuía uma obra importante e respeitada da qual discordava da primeira à última linha, como foi o caso do famoso arquiteto Jean-Jaques Lequeu, com quem cruzamos algumas vezes e chegamos a trocar umas poucas palavras, um homem que, segundo Waterfall, desenhou prédios imaginários, descolados da realidade e que jamais poderiam ser construídos, e que afora isso foi um pornógrafo, obcecado pelas vergonhas humana, um homem complexo, mas que sem dúvida possui originalidade e coragem.
Então meu mentor, como costumava fazer em casos como esse, olhava fundo em meus olhos e com o semblante sério e num tom elevado de voz, dizia: “É melhor ser um pedaço de merda de sua própria autoria, do que um rio de ouro fabricado por outros.” Em uma de nossas muitas idas aos banhos, Waterfall me apresentou ao famoso (palavras de Waterfall), entomologista e naturalista francês Guillaume-Antoine Olivier, um tipo bastante simpático e que falava muito bem o inglês, ele havia viajado o mundo inteiro coletando espécimes de insetos e lagartos, e junto com Jean-Batiste Lamarck havia fundado o Journal d”Histoire Naturell.
Fui apresentado como uma alma que busca descobertas, o que abriu em Guillaume um sorriso de cumplicidade.
“Quais são suas áreas de interesse, meu jovem?”
“Gosto de artes, principalmente de poesia, mas tudo o que é humano cabe dentro de meus interesses.”
“Por que se restringir ao humano? Há outros mundos tão interessantes quanto o nosso. Os insetos, por exemplo, uma harmonia social, o respeito pleno ao próximo, a democracia grega em sua maior expressão.”
“O senhor abordou um ponto interessante, talvez a democracia nunca passe de uma teoria, justamente porque, ao contrário dos insetos, o homem possui uma consciência que se choca com a de seu semelhante, formando, se tanto, grupos que compartilham alguns interesses.”
“Então desdobram-se questões: o que é melhor, uma consciência individual, como a humana, ou coletiva como a dos insetos? Não seria a consciência coletiva, ao contrário do que possa parecer, uma evolução sobre aquela que só cuida de seus interesses? Não seriam as consciências coletivas grandes pedras no caminho da evolução? Perguntas é o que não faltam.”
“O senhor nunca pensou em usar seu estudo sobre os insetos para analisar o comportamento de sociedades humanas?”
“Esse foi um de meus sonhos de juventude, que nunca levei adiante. A mera menção de tal assunto seria suficiente para me excluírem da comunidade acadêmica. Mas isso não é desculpa, quem acredita em algo vai até o fim independente das consequências. Fui covarde.”
“Quem sabe aquele não era o momento. Talvez agora, com o novo século raiando, os espíritos sedentos por novidades…”
“Não sei, já passei dos quarenta, me sinto forte e bem disposto, mas acho que para iniciar algo novo precisaria de uma energia que já não possuo mais. Seriam muitas barreiras que precisaria derrubar, e precisaria fazer tudo sem possuir nenhuma certeza sobre o resultado final de meu esforço. Nesses casos, apenas a juventude é capaz de prosperar. Não qualquer juventude, mas apenas uma de tipo raro, jovens com olhos fundos como um céu estrelado, e cuja vida não se contenta com os limites impostos pelos cinco sentidos.”
“Raros exemplares.”
“Nem tanto. Talvez tenha um deles diante de mim.”
“Não…sou apenas um náufrago que desconhece a direção para onde deve nadar.”
“Esse já é um bom começo, certezas aos vinte são muito mais nocivas do que dúvidas aos sessenta.”
“Mas é que às vezes, as dúvidas dos vinte chegam intactas aos trinta, e depois enrijecem, o homem envelhece com as mesmas dúvidas da juventude, que se transformam no sangue coagulado, que por falta de saída permanece nas veias do homem morto.”
Alguns dias depois, aceitamos o convite de Guillaume para conhecermos seu laboratório de entomologia na periferia de Paris, um exuberante prédio barroco com grandes janelas envidraçadas por onde entrava uma luz pacífica que era suficiente para iluminar os armários onde grandes laminas de madeira escura enfileiradas serviam de memorial aos insetos, cinquenta, sessenta deles, espetados pelos ventres, mas mesmo assim lustrosos, sando a impressão que a qualquer instante começariam a se mexer. Havia também grandes vidros lotados de uma substância da cor de um chá aguado, onde repoisavam diversos espécimes de lagarto, esses, ao contrário dos insetos, rinham olhos arregalados e secos, e se dali algum cheiro emanasse, seria o da morte.
O amplo ambiente era bem ventilado e possuía grandes mesas de trabalho onde dois de seus assistentes pareciam imbuídos da estranha missão de mumificar, não sei se esse é o termo mais correto, os insetos que então seriam classificados e espetados em novas tábuas. Sempre que podia desviava os olhos dos lagartos, que pareciam significar o exato contrário do que olhos significam, ali havia um buraco vazio que parecia servir apenas para tragar as almas curiosas que se dispusessem a encará-los. Depois de mostrar cada detalhe de como funcionava o laboratório, Guillaume iniciou uma longa palestra, era um entusiasta dos insetos, segundo ele animais que atravessariam outros bilhões de anos de vida sobre a terra, enquanto nossa raça talvez fosse extinta em algumas centenas de milhares de anos. Para ele os insetos foram e sempre seriam os reis do planeta. Suas civilizações, a mais perfeita conquista jamais construída por qualquer forma de vida. A uma certa altura da palestra nos convidou para tomarmos uma taça de vinho, mas prosseguiu entre muitos goles defendendo seu ponto de vista: “O que são as ruínas romanas que tanto louvamos, a capacidade que os antigos possuíam de construir longos e eficientes aquedutos, sistemas de esgoto, ou estradas, o que é tudo isso diante da capacidade de um conjunto de formigas que prosseguem existindo, sem buscar o novo, apenas repetindo a fórmula que lhe é necessária para bem viverem, justamente porque o novo não é necessário, e porque para seu ideal de vida, tudo já foi conquistado e atingido.”
A garrafa de vinho terminou e ele imediatamente abriu outra, afastei meu copo, não queria mais beber, e comecei a perceber que sua adoração por insetos começava a atravessar a fronteira do razoável. Para ele insetos possuíam algo de religioso. Notei que Waterfall também começava a se cansar de seu discurso, que era prosélito, queria nos converter para a religião dos insetos. Chutei meu guia por debaixo da mesa, e ele pareceu aliviado, pediu licença pois precisávamos acordar cedo para visitarmos a cidade de Versalhes. Guillaume deu um grande gole de vinho e aumentou o tom de voz:
“Meus amigos , não percam seu tempo com aquele cemitério. O dourado do palácio é luz sepultada em terra escura, os espelhos objetos inúteis, já que não há ali qualquer alma que possa ser refletida, os sofás e poltronas coloridos e confortáveis, um convite à inépcia, à preguiça.”
Então levantou-se e alguns minutos depois voltou com um estranho objeto que colocou sobre a mesa. Era uma réplica em madeira do interior de um formigueiro. Mesmo contrariados tivemos de ouvir uma explicação, que se tivesse vindo no início da visita, seria interessante. Então ele finalmente pareceu perceber nosso desconforto e pediu desculpas por nos atrasar. Agradeci-o pela oportunidade enquanto ele renovava seus pedidos de desculpas dizendo que sempre acabava falando além do necessário. Foi quando, para meu assombro, percebi que havia um lagarto que se movia sobre sua mesa de estudos, expulsava sua longa língua bipartida e caminhava lentamente entre livros, estatuetas e lentes de aumento. Dei um passo para trás e ele pediu que não me assustasse, aquele era Aristóteles, segundo suas palavras “seu companheiro de infortúnio”.
O lagarto rapidamente escala seu braço e se aloja no ombro, de onde parece se sentir protegido e nos desafia colocando para fora a longa língua.
“Venham, não tenham medo, não há criatura mais doce no planeta.”
Fechei meus olhos, e por educação acariciei sua cauda gelada. Guillaume notou meu constrangimento, e resolveu antecipar e tornar menos calorosas as despedidas. Cunningham nos esperava impaciente, o que prometera ser uma visita de uma hora se transformara em uma permanência de quase quatro. Assim que entramos na carruagem esperava ouvir os comentários críticos de Waterfall, mas o que ouvi, quase imediatamente, foi seu ronco. A viagem até o hotel levaria pelo menos uma hora, e como não queria me juntar a meu guia em uma sinfonia de roncos, aproveitei para rever aquilo que havia vivido, principalmente as estranhas dúvidas que Lequeu tentou compartilhar comigo, e que a princípio, julguei absurdas. Talvez essa hora que me separa do instante em que as ouvi, não seja suficiente para qualquer mudança significativa quando o assunto em questão são insetos, mas pode ser que, de fato, não sejamos nem de perto, a maravilha que imaginamos ser.
Então, conforme a carruagem avançava pelas ruas esburacadas da periferia de Paris, e o chacoalhar de tudo, apenas tornava o ronco de Waterfall ainda mais vigoroso, também meus pensamentos vibravam e se misturavam, desarrumando uma harmonia que era necessária se desejasse chegar a alguma conclusão. Mas elas pareciam distantes, pois os ingredientes eram muitos e nem mesmo o objetivo do que deveria resultar a mistura me parecia claro. Um dos movimentos vinha de uma ideia de Lequeu, a de que a permanência nem sempre é superior à mudança, as formigas, de fato, não necessitam de formigueiros redesenhados, com mais espaço, iluminação e áreas de lazer. Para elas a eternidade está ligada ao fato de que geração após geração, permanecem exatamente as mesmas. Isso me leva a perceber que toda mudança possui data de validade, o moderno de hoje é a pele enrugada de amanhã. Mas, é claro, o erro de Lequeu residia no fato de que não podemos comparar homens a formigas.
A poeira invade a cabine da carruagem, e mesmo depois que consigo fechar a janela, flutua em grande quantidade, dificultando a respiração, Waterfall continua adormecido como uma criança barulhenta, algo dentro dele grita, parecendo querer se libertar, mas sua face amarelada e tranquila alegra-se em controlar aquele animal rebelde, impedindo que fuja. Há outras questões importantes, com as quais venho convivendo desde minha queda da macieira, a fatia da vida com a qual convivemos cotidianamente, é ínfima. A maior parte da realidade está soterrada e permanece assim até morrermos. Depois da morte, bem, depois não sei o que acontece, mas isso já é outra coisa. Além disso, se prestarmos atenção, em todas as épocas, sem exceção, sempre nos julgamos o ápice civilizacional e tecnológico, e em todas elas nos enganamos, assim também será com a nossa, e com as que estão por acontecer. Isso significa que enxergamos o mundo com olhos contemporâneos, olhos míopes que não veem nada além dos dias com os quais convivemos.
A vida que em nós habita é muito maior do que nós mesmos. Somos como pequenos roedores que invadiram sorrateiramente um depósito de açúcar e, durante o pouco tempo que temos disponível, nos fartamos, engolindo o máximo de pó branco que conseguimos. Mas o limite suportável para cada rato ainda é ínfimo em relação aos milhares de sacos empilhados no depósito. Independentemente de, se alguns ratos tornam-se obesos, e outros mal conseguem rasgar as embalagens do açúcar, todos permanecem sendo ratos, e o depósito, que de tão grande se confunde com o horizonte, recebe uma quantidade quase infinita de novos sacos de açúcar a cada dia.
Mas será que podemos fazer algo além de atacar os sacos de açúcar? Não sei. A imobilidade talvez pudesse ser uma opção. Escolha que acabaria nos conduzindo à morte. Ao tentarmos modificar nossa essência, acabamos destruindo nossa existência. E quanto à perenidade daquilo que não se modifica? Pode haver alguma verdade ali? Talvez, pois o resultado representa um desafio às afiadas mandíbulas do tempo. Caso elas se cansem, e comecem a perder dentes, todo o universo será outro, e isso graças à insistência arquitetural de nossos amigos insetos. Mas não posso ser ingênuo, o universo é construído de maneira complexa, e utiliza-se de diversas escalas temporais. Talvez o que ocorra é que, ao contrário das vidas que nelas habitam, as colmeias e formigueiros consumam imensos intervalos de tempo até que a experiência adquirida por milhões de gerações, comece a modificar suas arquiteturas.
Há tanto a ser descoberto, e outro tanto, infinitas vezes maior, condenado a permanecer na escuridão, e não há prazer maior do que aquele da busca. Frutífera ou não, ilusória ou perecível, pouco importa, os escavadores são a classe mais feliz de homens. Isso não impede que o contrário também seja verdadeiro.
De qualquer forma, queira ou não, é a essa classe de homens a qual pertenço. E o caminho não tem volta. Condenado a procurar durante todos os instantes de minha vida, inclusive o último. Feliz e orgulhoso por não haver sido absolvido.
A carruagem finalmente para em frente a nosso hotel, a nuvem de poeira é invadida por raios perpendiculares de luz que transformam o ambiente em uma congregação de dourados flutuantes. Waterfall continua rasgando tudo com seus urros descontrolados. Precisei acordá-lo e ele pareceu levar tempo até reconhecer onde estava. Com mau humor, sacou de seu relógio e também demorou mais do que o habitual para conseguir entender o que os ponteiros diziam. Então, não sei se por vingança por havê-lo acordado, ou então se já havia mesmo programado, pediu-me para daqui a uma hora encontrarmo-nos em frente à carruagem pois iríamos à Comédie Française assistir a Les Fourberies de Scapin, de Molière. Tentei argumentar que meu francês não era suficiente para compreender a peça, mas ele foi inflexível:
“Ninguém acha nada se não estiver perdido.”
A frase soou aos meus ouvidos como uma sonata de Scarlatti, mesmo que, provavelmente, o cansaço o fez utilizar palavras que não significavam exatamente o que desejava dizer. Sim, havia alguém, ou algo, além de Waterfall que desejava que fosse assistir àquele espetáculo. Dois segundos depois ri com desdém de mim mesmo, a mentalidade cristã, que não se consegue expulsar apenas não acreditando em deus, prosseguia viva e forte em meu interior, dando vida a novos deuses que atuariam exatamente como aquele em quem decidi não crer. O mundo mágico criado por mim, me elegera o eleito do universo, que se utilizaria de mensagens cifradas e símbolos, para realizar seus anseios. Caberia a mim, assim como cabe ao fiel acreditar na figura suprema, estar de olhos atentos para entender as mensagens que me seriam reveladas.
Troquei de roupa já despido das crenças em uma conspiração invisível em meu favor. Enquanto esperava por Waterfall, escolhi pela cor um licor que, antes de virar em um gole, admirei contra a luz. Era o mais vivo vermelho que se pode imaginar, o sangue do mundo contido dentro daquele pequeno copo, e pedindo para ser bebido. E esse recipiente, se passado em frente a qualquer outro objeto, o transformava na mesma cor sem piedade que habitava o interior do copo. O gosto de framboesa açucarada não fazia jus à cor, assim como quase nada faz, aos nossos sonhos e descobertas.
Waterfall desceu as escadas do hotel apressado e vestindo as mesmas roupas da tarde. Cunninghamm já nos esperava na carruagem, logo percebi que o humor de meu guia havia melhhorado, talvez por causa de um cochilo de meia hora em seu quarto. Estava falante e apesar de me haver dito que eu teria de tentar compreender sozinho o conteúdo da peça, narrou-me um pouco do enredo, era uma peça ao estilo commedia dell arte, cheia de quiprocós e reviravoltas, onde no final tudo acaba resolvido. Mas que não me iludisse com a simplicidade do enredo, pois a riqueza da peça estava na maneira engenhosa como as situações se encaixavam, na sutil crítica social, e nos magníficos diálogos, afinal, tratava-se de Molière, o maior dos dramaturgos franceses.
Assim que chegamos percebi que a peça, era apenas parte do evento que ali se desenrilaria, talvez uma das menos importantes. Uma longa fila de carruagens se formava, e a nossa parecia ser a menos imponente de todas, depois de esperarmos para o desembarque, um homem vestido com roupas que estiveram na moda há um século, abre a porta de nossa carruagem e somos mergulhados em um mar de vestidos brancos, espelhos, leques e pó-de-arroz. Há também os monóculos, fraques e cartolas, todos acotovelados em uma multidão que não abedece fila, mas que lentamente se encaminha na direção da porta de entrada do teatro. As grandes tochas que iluminam a entrada, emprestam a cada um dos rostos esbranquiçados pela maquiagem, uma tonalidade dourada que desaparece assim que elas cruzam a porta. Do lado de dentro o empurra-empurra só aumenta, e ninguém parece realmente ansioso para localizar seu lugar na plateia. A maioria parece estar ali para ser visto, e o saguão é o melhor lugar para isso. Peço licença a Waterfall e com muito esforço consigo subir a escada que dá acesso ao segundo andar. A iluminação frágil não atrai ninguém e tenho o andar quase apenas para mim. Passeio entre as portas douradas e descubro, por detrás de uma proteção de vidro, a poltrona original que era utilizada por Molière.
Mas há outro tesouro que me fascina ainda mais. De onde estou, observo rostos e comportamentos, assisto aos complexos movimentos do balé social, uma dança feita de troca de olhares, rostos encobertos por leques, e uma busca constante pelo melhor lugar para ver e ser visto. Tudo isso flutuando dentro de uma luz quase irreal, que nesse ambiente maior, não consegue chegar ao dourado, mas que oscila conforme a tocha queima a estopa e modifica os rostos, oferecendo por um segundo, panoramas de como determinado rosto será em duas ou três décadas.
Minha distração é encerrada pela mão ansiosa de Waterfall sinalizando para mim em meio à multidão. Desço ao térreo, e ainda derramei muito suor, escutei muitos trechos de futilidades e senti odores desnecessários, antes que a multidão finalmente se movimentasse na direção da sala de espetáculos. Depois de sentarmos, e antes do início da peça, o teatro pertencia aos binóculos, que apontados para todas as direções tentavam decifrar quem eram as figuras donas daquelas silhuetas, principalmente aquelas que ocupavam os camarotes. As eventuais descobertas eram acompanhadas por sussurros, risinhos e abanar de leques.
Finalmente o espetáculo começou, o que conseguiu diminuir as conversas paralelas e as olhadas nos binóculos, mas não extingui-las. Logo percebi que meu precário domínio do idioma seria uma grande barreira para apreciação, mas havia outras camadas que estavam ao meu alcance, a encenação em si, e as luzes oscilantes que manchavam os rostos dos atores, e sublinhavam suas expressões faciais. Enxerguei algumas emoções que talvez não estivessem presentes no texto de Molière, e somei a elas tudo o que assistira desde que descera da carruagem, além do enredo que me havia sido brevemente narrado por Waterfall, e compus minha própria peça. Um espetáculo feito de sombras e de muitas luzes de todas as cores, que piscavam, parecendo querer revelar algum código. Havia o bem organizado conjunto de luzes representados pelo texto de Molière, em frente a ele, sombras mesquinhas diminuíam a força e o brilho das luzes, mas acabavam por compor um outro ambiente, onde outras luzes de menor potência e cores diferentes, influenciavam no resultado.
Já dentro da carruagem, depois de atravessar um mar de leques e sombrinhas, minha mente fervilhava, e com pouco entusiasmo respondi às perguntas de Waterfall sobre se havia entendido o enredo e gostado da encenação. Em silêncio permaneci até chegarmos ao hotel, mas dentro de mim não havia nada além de uma imensa agitação, claro, a representação havia sido ótima, as frases que ouvi e as cenas que vi, antes e depois, foram bastante esclarecedoras sobre como funciona a alta burguesia europeia, mas nada chegou nem perto das luzes de tocha se movimentando, construindo e desfazendo fisionomias. Talvez, aquilo que vi, estivesse muito mais perto de como funciona o tempo, e por que não, a vida. Inconstâncias coloridas que alternam-se com escuros, e que se obedecerem a alguma lei, essa seria a do acaso. O pintor cego mancha a tela branca com suas cores vibrantes, mas também marca a tela escura com seus tons de branco, e a resultante dessa soma é o despertar desse mundo que normalmente permanece encoberto pelo véu do cotidiano.
Zuchhuuuuu, Vlllpoffft, Aihoooo, vago entre décadas ainda não vividas e estranho o tamanho de minhas pálpebras, que bloqueiam parcialmente a visão de um sol que nunca foi tão pálido, o mundo pisca, e eu tenho a idade da esperança, abro uma porta e uma bela morena me mostra um recém-nascido, então ele chora e ela derrama duas lágrimas. A vida flui como água que circunda na pia até desaparecer pelo ralo. Sou tantos outros que eles nem sabem que existo. Abro olhos para morrer, e os fecho enquanto espero por meu nascimento. As chamas refletidas nas paredes do universo projetam sombras que modificam tudo aquilo que vejo, mas eu mesmo, sou aquilo que não enxergo. Um rasgo na unanimidade, o ente imune a espelhos, mas cuja imagem interna oscila como chama ao vento, e que talvez possua apenas um único desejo, o de que o fogo deixe de ser imagem para ser calor, para transmutar em cinzas suas existências, transformando-as em apenas uma. Que não oscila, não tem forma ou cor, não sofre com o tempo: um prego sólido plantado no coração do universo, e que ali permanecerá enquanto houver universo.
Talvez esse seja o fetiche último escondido atrás da sombra mais oculta de cada alma: o ser almeja não ser. O contrário também deve ser verdadeiro, tudo o que não existe, e que portanto não possui desejo, tende a uma existência, não por vontade própria, mas por fadiga de sua condição de não ser ou existir. A grama do vizinho é sempre mais verde, e isso vale até para questões metafísicas. Mas, ao mesmo tempo, quando entramos no reino das escolhas práticas, são poucos os casos em que aceitaríamos trocar nossas condições pela de outro indivíduo. Isso porque os defeitos alheios nos são mais visíveis do que os nossos, e nossas qualidades mais aparentes para nós mesmos. Mas há uma razão ainda mais forte para quase sempre negarmos uma possível troca de pele com qualquer indivíduo, cada um de nós está amarrado à sua própria consciência, e ela é a única responsável por todas as conexões que temos com o mundo exterior, ela é nossa segurança, a maneira com que nos protegemos do não-existir. Porque o instinto de sobrevivência persiste, e é força muito maior do que a sombra oculta que mora dentro de nós, e que nos faz querer desaparecer. O suicida é aquele em que essas forças alteraram-se, e o desejo de não ser suplantou o de viver.
Todo indivíduo desiste de tomar o lugar de outro, mais rico, bonito, e feliz, pois julga possuir, escondido em uma das mangas, um trunfo que o transforma em alguém diferenciado, e que aquele a quem inveja, pela beleza, riqueza, sabedoria, ou felicidade, possui apenas aquilo que é visível, e todas aquelas qualidades serão sempre menores do que aquela que guarda na manga, e que, em determinado momento, saberá usar. O fato é que essas cartas, ou são imaginárias, ou então, se são verdadeiras, quando forem usadas, a nada servirão, pois o armazenamento excessivo haverá feito com que desbotem.
Resumindo, não nos restam muitas opções, podemos olhar para os lados, tentando encontrar entre os alaranjados do fim de tarde, as belezas que, mesmo sem serem compreendidas, justificarão nossos sorrisos despreocupados. Mas nesse caso viveremos apenas esperando pelos curtos instantes em que o horizonte se transforma em rio de ouro. A outra opção é carregarmos os fardos do mundo, até que nossos braços derretam e nossas forças sequem, para então contemplarmos invejosos a próxima geração de braços fortes, guardando escondido na manga, o trunfo de sabermos como terminará a aventura daqueles que hoje se julgam no topo do mundo.
Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.
