
Essa é uma história estranha, construída por pessoas que também o são. Aos ácidos foram aspergidos alcalinos, doces, amargos, algo anulou-se, mas sobreveio um sabor de difícil entendimento.
Hildebrand é uma dessas figuras únicas, com tudo de bom e mal que essa definição possa carregar. Ele é nosso planeta, fixo em sua órbita, ao seu redor flutua sua lua, a esposa Liotta, há ainda um fugaz meteoro, Hariana, filha de Liotta e sua enteada.
E isso é tudo o que existe no universo. Mas essa informação nada significa se não descobrirmos tamanhos, profundidades e, principalmente, a mecânica que comanda esses personagens.
Hildebrand é originário de uma camada terciária da nobreza inglesa. Seu patrimônio nunca foi suficientemente grande para que não trabalhasse, e como nunca o fez, suas riquezas, ao longo dos anos, só fizeram minguar, até que, finalmente, após a morte de seus pais, decidiu vender a propriedade de Devonshire, e guardar em um depósito londrino, a pinacoteca especializada em cenas de caça.
Com dinheiro na conta e poucas ideias sobre o próprio futuro, partiu para a Riviera francesa. Sol, coquetéis à beira da piscina, e a gentileza de toalhas felpudas entregues assim que saísse da água. Durante um dos jantares, sempre baseado em rosadas lagostas acompanhadas pela inconfundível cor do champanhe, e pelos quase eternos azuis que descidos dos céus, envolviam qualquer objeto ou pessoa, Hildebrand percebeu que um dos garçons o chamava pelo nome. Isso o fez notar que já estava há um mês hospedado naquele caro hotel, e que se prosseguisse naquele ritmo, seu dinheiro duraria bem menos do que estava disposto a viver.
Precisava fazer algo. Ainda não cogitava diminuir despesas, mas sim aumentar os ganhos. Viajou uns poucos quilômetros e instalou-se em Mônaco. Era naquele principado que se encontrava o antídoto contra a pobreza, e se chamava: Cassino de Paris.
Mas antes dos dados rolarem sobre o pano verde, das cartas se espalharem pela mesa, trazendo consigo a matemática dos suspiros de frustração, ou dos gritos de alegria, e da roleta orbitar em torno de si mesma, expelindo verdades que a poucos agradam, é preciso esboçar mais alguns traços de Hildebrand.
No aspecto físico são todos muito fáceis de serem descritos, altura, peso, beleza, nada o distingue da mediania, ele é um homem que a ninguém chama a atenção. É preciso ser um observador muito atento para perceber seus dedos, um pouco mais longos e finos do que o normal, e que costumava utilizar para tocar o “Desejo da Donzela”, considerada uma das mais fáceis peças de Chopin, e que quando interpretava, o fazia parecer com um médium que estaria recebendo do além toda a dor e profundidade acumulada ao longo de centenas de gerações.
O fato de nunca haver trabalhado poderia ter diminuído a idade que aparenta, mas não o fez. Ele aparenta exatamente os quarenta e cinco anos que constam em seus documentos. A única coisa que o separa da mediania é seu comportamento social, uma fleuma inglesa que parece haver se originado há três séculos e. ao contrário de derreter como aconteceu com a fortuna, solidificou-se com o tempo. Esse comportamento, que inicia-se na linguagem, atravessou o sotaque e se espalhou por seu corpo. Era algo do qual se orgulhava, sua grande conquista pessoal.
Ao longo dos anos, essa maneira de ser, rendeu-lhe muitas antipatias, e outras simpatias recheadas de interesses, nada que o incomodasse de fato, pois quase todos seus dias foram vividos entre iguais, entediados nobres que tentavam encontrar nos olhos de seus pares brilhos que não descobriam no espelho.
Seu corpo fleumático era coberto por roupas da mesma ordem, camisas, calças e coletes em cores murchas decorados com formas geométricas, roupas pouco pacientes, feitas para pequenas variações de temperatura. Três graus a menos cobria-se o colete com o casaco específico.
Assim se construiu sua vida, e até um certo momento tudo aquilo lhe pareceu suficiente. Não foi a morte de seus pais em um acidente de carro o que rompeu com esse ciclo, mas sim um lento cansaço, que tornava as rotinas cada vez menos prazerosas. Em um primeiro instante estava disposto a mudar, contanto que essa mudança não lhe custasse nada. Então percebeu que o gratuito não existia, e que precisaria engolir algo maior do que seu esôfago suportava, se quisesse, de fato, mudar.
Ou então poderia permanecer onde sempre estivera, esperando as cores perderem ainda mais seus tons, acordaria tarde, aguardaria a hora do chá, trocaria algumas palavras com velhos conhecidos, se ocuparia de algum assunto burocrático, e pronto, o velho dia estaria pronto para ir embora.
Havia optado pela mudança, não suportaria mais viver envolto pelas luzes de sua infância, que a essa altura eram caricaturas do que foram, pálidas marcas no céu imitando a força das estrelas. Entretanto, mudança significa bifurcação, temia o desconhecido, mas sentia que uma força maior do que o medo o empurrava para frente.
A vida deveria significar algo, embaixo da terra cotidiana haveria de se encontrar algo além das milhares de repetições de atos banais. Escavando-se a fundo talvez existisse um objeto, uma pedra, qualquer coisa, que em seu bojo acumulasse significados e fosse fonte de brilhos verdadeiros, que misturavam cores vivas dando nascença a mundos mais belos que o seu.
Mas tempo e espaço são fatores ainda muito distantes da plena compreensão humana, portanto, não é absurdo se digo que ainda estamos em Mônaco, e Hildebrand chacoalha na mão os dados que está prestes a atirar sobre o pano verde. No segundo que antecede o arremesso, as esperanças são amassadas por uma lógica cartesiana. Se os jogadores tivessem reais chances de vitória, os cassinos simplesmente não existiriam.
Mesmo assim ele atirou os dados. Quando eles ainda rolavam sobre o pano, lia-se no rosto de Hildebrand uma vontade secreta, mas mal escondida, de se martirizar, pagar com seu sofrimento por aquele que impôs a outros. Não que o sofrimento alheio o incomodasse em demasia, mas desejava apagar as bobagens que havia escrito sobre suas páginas, voltar a ser um livro em branco, aberto a todas as possibilidades.
Então os dados finalmente pararam de girar, e como não é raro acontecer em histórias onde os personagens estão bastante sujeitos à forças do acaso, eles começaram trazendo boas notícias. Hildebrand sorriu, nenhum traço de sua necessidade de sofrer sobrevivera, seus olhos ganharam uma autoconfiança sólida, com pilares erigidos sobre o vazio.
Outra jogada acompanhada por novo sucesso começou a atrair olhares. Ele respirou fundo, sabia que a sorte era um animal arisco, e que, um mero piscar de olhos seria suficiente para que ela sumisse. Era preciso saber a hora de parar. Percebeu que alguns dos olhares que o cercavam eram femininos, mas não quis ceder à tentação de encontrá-los, temia o poder de sua influência. Nesse momento já não possuía a mesma autoconfiança, e desconfiava que isso diminuiria ainda mais suas possibilidades de uma nova vitória.
A derrota simbolizada em números mostrava seu grandes caninos. O prédio de seu orgulho vinha abaixo, e Hildebrand, voltava a ter o mesmo tamanho que todas as manhãs encontrava impresso no espelho. O crupiê recolheu suas fichas, e por um instante ele sentiu-se como alguém que acabava de ser sepultado e agora, de onde está, assiste a todos seus amigos e parentes irem embora, deixando-o sozinho para a primeira de infinitas noites solitárias.
Mas ele se enganou, não estava só. Percebeu uma presença ao seu lado e quando virou-se mergulhou dentro de dois olhos claros como uma manhã de primavera. Um instante depois percebeu que aquele azul parecia não possuir profundidade, como a reprodução de um céu azul de primavera pintada com cores exageradas sobre uma superfície côncava.
Ela sorriu, ele respondeu com um aceno de cabeça, depois arrependeu-se e também sorriu. Trocaram algumas palavras sobre seu jogo, ela disse que também acabara de perder o que havia ganho. Ele escutou aquelas palavras, mais especificamente o ruído que elas emitiam, como o mar que troveja suas repetições dentro de uma caverna. Ele achou curiosa aquela situação, e foi só então que percebeu que ela não se exprimia em qualquer idioma, mas na soma de vários, frases que misturavam italiano e espanhol eram completadas por palavras em inglês e francês.
A mulher que parecia ser um pouco mais velha que Hildebrand, possuía uma energia rara que refletia-se em sorrisos e ressoava em árias de ópera que entoava com a vontade daqueles que desejam sobreviver. Enquanto ela se expressava ele permanecia calado, observando-a. Ela era como um navio prestes a partir, e cuja tripulação convida todos que estão no cais a embarcarem. Mas assim que saltam sobre o convés, a tripulação, que jamais tira o sorriso do rosto, informa aos novos viajantes que o navio está afundando.
Ela havia sido uma importante cantora lírica, se apresentara nos maiores teatros da Europa, Estados Unidos, Japão e Austrália. Um problema nas cordas vocais fez com que tivesse de se aposentar precocemente. O desespero, a princípio grande como o iceberg que afundou o Titanic, aos poucos foi derretendo, e agora sentia por aqueles dias apenas uma saudade adocicada, que manchava sua garganta principalmente nas noites de sexta e sábado.
Como estávamos em uma quarta-feira, as gargantas foram manchadas por uma substância líquida e avermelhada, e que vinha lacrada por uma rolha. Hildebrand continuava escutando aquelas frases emendadas em vários idiomas, e pareceu-lhe que ela talvez também fosse uma pessoa da mesma ordem, uma soma de retalhos amarrados e que a qualquer instante podem se soltar. Sentiu um cheiro vivo de mar, enxergava cores berrantes como as dos corais e experimentava o movimento das águas, advindo da agitação das caudas dos peixes. Parecia que o fundo do oceano o chamava. Um convite como esse não costuma ser visto com bons olhos quando estamos prestes a embarcar em um navio.
Mas ele nada temeu. Aquela mulher flutuava sem leme no mar da vida. Parecia ser movida pelas forças aleatórias das marés. Hildebrand perguntou-se se poderia afirmar com certeza se conhecia alguma força mais sólida e confiável do que aquela. Como não obteve resposta apenas permitiu que tudo seguisse seu ritmo natural.
Duas semanas depois casaram-se na igreja Notre-Dame-des-Champs, em Paris. Foi apenas após a cerimônia que Liotta fez uma revelação chocante. Havia, além deles, mais um passageiro naquele navio. Uma das poucas pessoas presentes à cerimônia era um africano vestido com roupas típicas e com a cabeça coberta por um turbante colorido. Ele empurrava uma espécie de imenso carrinho de bebês onde repousava um estranho pedaço humano. Era uma menina que poderia ter qualquer idade entre três e catorze anos. Suas pernas eram atrofiadas e a menina pouco se mexia, não falava nada além de duas sílabas, “La” e “Can”, que pronunciadas juntas formavam “lacan” e repetidas muitas vezes acabavam invertendo-se e formando “canla”. Às vezes a enxurrada de sílabas era acompanhada por gritos e um choro alto e persistente que martelava com vigor os nervos de todos os que estivessem por perto.
Mas não era sua deficiência o que tornava aquela criança estranha. Seu rosto era coberto por uma forte camada de maquiagem, e os lábios eram rubros como os de uma dançarina de cabaré. Mas nada tornava aquela criança mais estranha do que seus olhos, dois poços escuros de dentro dos quais pareciam emergir pedidos de ajuda. Um grito opaco, vazio de esperanças e que em certas ocasiões transmutava-se em um som parecido com um ronco.
O amigo etíope de Liotta entregou-lhe o carrinho, e a mãe orgulhosamente apresentou a filha ao padrasto. Mas então percebeu, que pelos olhos do marido vazava uma substância escura feita de repulsa, e sobre a qual flutuavam ilhotas de desgosto. Ele tratou de inundar tudo com um sorriso sem potência que tornou a cena ainda mais constrangedora. Quando seus olhos marejados indicavam transbordamento, ela buscou um desvio, não iria deixar-se chocar contra a parede da piedade. Com o resto de voz a que teve acesso, entoou “Un bel di vedremo”, Madame Butterfly em tons melodiosos narra suas esperanças de reencontrar o amado. O padre, que acabara de celebrar a cerimônia, contemplou a cena desconfiado, e não conseguiu compartilhar os sorrisos que se seguiram a ela. O africano, de cabeça baixa, saiu da igreja discretamente sem se despedir de ninguém. Quem sorria era Liotta, cujas lágrimas, que haviam sido preparadas em momento de apreensão, escorriam involuntariamente por seu rosto. Gotas de água salgada que perderam o significado.
A alma de Hildebrand perdera os calores mais pronunciados, a lava do vulcão era resfriada pelas águas salgadas de um mar sem ondas. Sem qualquer emoção no rosto, apressou-se a levantar a parte de trás do carrinho para que conseguissem descer os degraus da igreja. Durante uma semana eles pouco falaram. Liotta pedia desculpas, sabia que havia trapaceado, mas não podia abandonar a filha, e se tivesse contado sobre ela, não haveria casamento. Cada palavra usada como justificativa, servia como um sopro de gasolina sobre uma chama que começava a perder a força.
Ela percebeu isso e passou a adotar, assim como ele, o silêncio, que só era quebrado pela criança, repetindo freneticamente as duas sílabas que sabia pronunciar, além de uma quantidade quase infinita de gritos em todas as tonalidades possíveis e um choro, que quando começava, parecia que teria a duração de uma era geológica.
Uma família assim estranha, escolhera como moradia um lugar não muito diferente, um hotel instalado na parte superior de uma das antigas passagens cobertas construídas em Paris na primeira metade do século 19. O lugar, que tinha mais de cento e cinquenta anos, talvez tivesse sido reformado duas ou três vezes, e a última estava prestes a completar sessenta anos. Quartos pequenos, abafados, cobertos por um carpete puído, polvilhado de marcas de cigarro, banheiros antigos e minúsculos, um elevador que parecia um caixão construído em fibras de cobre e que, mesmo levando apenas uma pessoa por vez, causava nela uma sensação de claustrofobia, que só não conseguia se instalar de vez, pois o percurso era de apenas dois andares.
O Hotel Chopin vivia de uma lenda, a de que o compositor havia vivido ali, fato contestado por historiadores que afirmavam que a galeria e o hotel só haviam sido construídos uma década após o falecimento de Chopin. Mas ao longo de mais de um século essa propaganda serviu para atrair hóspedes que admiravam o compositor, e o hotel mantinha ao lado da recepção um velho piano que ficava disponível para quem desejasse tocar. Quando perguntados sobre se o piano teria alguma relação com Chopin, os funcionários diziam que nada sabiam sobre o assunto.
Hildebrand sentou-se na banqueta e ajustou-a para sua altura, abriu o teclado e assim que iria começar a tocar “Desejo da Donzela”, percebeu a ausência de algumas teclas que impossibilitariam a execução de qualquer música. Cobriu novamente o teclado com a fina tira de pano verde e fechou o compartimento de madeira. Permaneceu sentado na banqueta, mergulhado em uma penumbra que só fazia escurecer, fechou os olhos e pode distinguir três sons, o primeiro era o burburinho distante da galeria que em breve fecharia, o segundo era o ronco sutil do recepcionista que estava a poucos metros dali, e o terceiro e mais vivo, era o choro convulsivo de sua enteada entrecortado pelas palavras de Liotta que tentava acalmá-la e que eram pronunciadas em um idioma que não conseguiu identificar.
As semanas cicatrizaram as dores mais agudas, o ferimento foi coagulado por uma rotina que, assim como acontece com os presidiários, adocica pequenas chateações, transformando-as nos instantes mais aguardados do dia. Hildebrand construía suas manhãs com conversas corriqueiras com outros hóspedes, então almoçava sozinho em um restaurante universitário. Além do baixo preço, outra atração era a energia da juventude que parecia transbordar em sua direção e aparentemente lhe recarregava as baterias. Então ia fazer a digestão no Jardim de Luxemburgo, onde acabava adormecendo em uma das espreguiçadeiras. Depois caminhava até perder as forças, deixava-se levar pelo acaso e pouco antes do dia perder suas luzes passava no mesmo restaurante chinês e levava para o hotel um embrulho, que se não comprasse, seria jogado fora em não mais de meia hora. A comida, que vinha em boa quantidade, era o jantar da insólita família, no caso de mãe e filha, a única refeição do dia. O arroz, que apresentava sinais de cansaço, estava misturado a sólidos pedaços de frango, carne, e coberto por um molho viscoso de uma cor que inicialmente lembrou-o do famoso romance de Stendhal, pois misturava tonalidades de vermelho e negro. Liotta devorava sua porção para só então retirar os pedaços maiores de carne e frango e molhar o arroz com a pasta viscosa que serviria para sua filha. Mas mesmo com todo esse cuidado a refeição sempre terminava com cruéis engasgos, e com parte do que havia sido engolido esparramado pelo surrado chão do quarto.
Para compensar os ruídos desagradáveis durante a refeição, Hildebrand elevava ao máximo o volume da televisão enquanto levava ao nariz uma sólida barra de sabonete de lavanda que conseguia maquiar os odores daquilo que havia sido regurgitado por sua enteada. Quando tudo parecia exceder a barreira do suportável, descia até a recepção e fingia ler algum jornal velho de uma semana. Era nesses instantes em que refletia sobre sua vida, sobre a escolha que havia feito, e principalmente sobre seu futuro. O quanto seria capaz de aguentar? Não seria melhor simplesmente desaparecer? Talvez o tempo conseguisse também cicatrizar o mal-estar que ainda sentia, e todos aqueles cheiros, sons, e o sentimento de impotência que os acompanhavam, passassem a nada significar, a não feri-lo ou atrapalhar seu sono. Essa era uma possibilidade.
Na manhã seguinte inverteu sua rotina e começou seu passeio pelo Jardim de Luxemburgo, descobriu que nesse horário havia menos turistas e era mais fácil conseguir cadeiras de ferro. Ele deitou-se em uma espreguiçadeira e adormeceu quase imediatamente, um sono pesado, repleto da presença da enteada, que falava bem mais do que as duas sílabas e com a qual desenvolveu um estranho diálogo:
“Você me suporta apenas por causa de minha mãe?”
“Sim, isso é verdade.”
“Mas o que te atrai assim tanto nela a ponto de te fazer me suportar? Percebo o desgosto físico que te proporciono.”
“Não sei te responder, talvez nada me atraia.”
A menina começou então a gargalhar até perder o fôlego e então mergulhou em um acesso de tosse tão profundo que pareceu iria lhe custar a vida.
Hildebrand se levanta para espancar as costas da enteada, no exato instante em que se prepara para a primeira pancada, ela para de tossir, segura sua mão e com uma voz que parece ser tão velha quanto a humanidade, afirma:
“É o medo, apenas ele que te mantém amarrado à minha mãe.”
Hildebrand acorda em um sobressalto, e fica contente por encontrar o sol da manhã, que parecia ser o exato contrário daquilo que experimentara durante o sonho. Então assiste ao mundo enquanto seu corpo é aquecido pelas luzes e cores em movimento que, à sua maneira, representam um instante de sutil alegria. O ar ainda carrega réstias do frio de março, e essa sensação umedece seus pulmões, que agradecem fazendo nascer um sorriso quase imperceptível.
A vida era feita de opostos. Essa foi uma constatação que aflorou ao riacho da consciência, mesmo que naquele instante não estivesse buscando por nada. Havia luz, sombras, e aqueles que se movem entre elas. O que aparentemente transformava dores e prazeres em uma questão de posicionamento.
Resolveu caminhar, atravessou a longa aleia lateral que termina em um lago decorado com estátuas retratando alguma cena da mitologia grega. Ali a disputa pelas cadeiras verdes de ferro era mais intensa e os idiomas em que esse desejo se manifestava, eram variados. Depois de duas voltas ao redor do lago, cuja água esverdeada parecia combinar com a idade do mármore esculpido, localizou duas cadeiras recém abandonadas por um casal de obesos, aparentemente americanos. Fez, o que costumava repreender quando via outros fazendo, usou uma cadeira para sentar-se e outra para descansar os pés.
Luz, sombra, movimento e outras conclusões a que chegou, pareciam haver enchido seu reservatório interno de autoconfiança. Saberia exatamente o que dizer caso alguém se atrevesse a repreendê-lo. Mas ninguém disse palavra, apenas cobriram-lhe com olhares de reprovação, aos quais respondeu com outros, feitos de uma mistura de malícia com certezas amolecidas. Venceu os opositores que logo abandonaram seus desejos. Bem estabelecido, percebeu a mudança das luzes, as sombras começavam seu longo percurso pelos gramados. A dança acontecia em frente aos seus olhos. Os bailarinos eram mãe e filho, ela na faixa dos trinta, ele com cinco ou seis anos. A criança ditava o ritmo, movimentando-se de um lado para outro, carregando o pequeno barco à vela com o qual brincara no laguinho, para então abandoná-lo ao pé de um plátano. A mãe seguia os movimentos do filho e ocupava-se de guardar o brinquedo. Mas a energia do menino não tinha limites e seus ouvidos pouco obedeciam às ordens maternas.
Hildebrand contemplou a cena com certa melancolia lhe engasgando o peito, aquela energia, com o passar dos anos iria sendo acomodada em prateleiras funcionais, dentre elas o sexo, e depois começariam a perder o brilho até se transformarem em pálidas memórias, que fariam com que no futuro, o peito daquele indivíduo estivesse mais congestionado que o seu. Hildebrand estava pronto para desviar o olhar quando percebeu que o menino encontrara um pedaço de galho caído e com um ramo seco desenhava algo no chão arenoso. Era uma figura geométrica, um quadrado perfeito. O menino parou de desenhar e contemplou sua obra. Não sei se tinha intenção de continuar, ou se o que queria dizer era apenas aquilo. Sua mãe puxou-o pela mão e ele foi embora reclamando.
Hildebrand levantou-se para admirar o quadrado, esqueceu as cadeiras que em poucos segundos foram ocupadas por imigrantes cantando rap em voz alta. Mais isso não importava, sem perceber havia mergulhado em uma bolha de pensamentos, cuja única existência que importava era a daquele quadrado. Que, na verdade, era o representante de todos os quadrados que existem, e mais, da essência última daquilo que significa um quadrado.
Outra cadeiras vagaram próximo de onde estava mas ele preferiu ficar de pé e caminhar ao redor da figura. As proporções do quadrado eram aparentemente perfeitas, aproximou-se e tentou localizar o exato centro da figura, quando julgou havê-lo encontrado, marcou-o com um ponto, que, a um primeiro olhar, pareceu o umbigo. Então afastou-se, precisava de espaço para entender aquilo, talvez esperasse que alguma verdade pronta aflorasse, mas depois de alguns instantes percebeu que dessa vez o riacho não trazia nada além de água e seus murmúrios. Se quisesse minérios preciosos precisaria escavar, e foi o que fez:
O quadrado, assim como qualquer outra figura geométrica, era um problema filosófico, mas, ao contrário do círculo, o favorito daqueles que desejam filosofar, o quadrado parece sempre ser preterido. As razões são várias, o círculo, e até o triângulo, são muito mais atraentes e podem ser lidos através de mitologias profundamente enraizadas em nossa cultura, o círculo é o retorno ao ponto de partida, o triângulo o caminho para um nível mais elevado. Já o quadrado, a um primeiro exame, é apenas um retalho de uma superfície qualquer.
Mas a realidade é sempre muito mais complexa do que aparenta, círculos contém dentro de si apenas seus pares, assim como triângulos carregam em seu bojo somente seus assemelhados, mas o quadrado, se formos perceber, é formado por quatro triângulos de ângulos exatos. Ele surge, não a partir de si mesmo, mas de outro. Em uma analogia simplória, círculos triângulos são a natureza emergindo sobre as planícies vazias, enquanto o quadrado é obra secundária, nasce de uma inteligência que se desenvolveu a partir da natureza, mas que, em um determinado momento, nomeou-se também, criadora.
E o que nos diz o quadrado, o que significa? Difícil dizer. A resposta, se existir, é um caminho longo e tortuoso. O ponto colocado no meio da figura, indica que ali há uma intersecção, e que outro, ou outros quadrados atravessam o primeiro, aumentando o número de dimensões envolvidas em sua existência. Sob esse aspecto não há distinções em relação às outras figuras geométricas. Então, apesar de possuir uma essência diferente das outras figuras, o quadrado apresenta também semelhanças. Fato que, apesar de aparentemente facilitar seu entendimento, de fato, dificulta, pois mostra padrões mutáveis no tocante a semelhanças e diferenças.
Talvez quadrados sejam o disfarce utilizado por triângulos envergonhados, essa é uma possibilidade, mas prefiro acreditar em sua autonomia, e que eles se sustentam como entes únicos e independentes. Quadrados como pontos de referência, produtores de existências, pontos de transição entre dimensões, como poços azuis fervilhando mistérios cheirosos, como demonstrações de tolerância, aceitando seus próprios opostos, e também triângulos, retângulos, círculos, grandes pontos de passagem, portas de entrada, saídas para novos entendimentos e percepções. Quadrados podem ser os respiros geométricos para afirmações imutáveis. Mas quais seriam essas afirmações?
“Buracos matemáticos no tecido da existência”, eis um verso tentando definir os quadrados, mas versos não foram feitos para construírem definições, conseguem, se tanto, espetar regiões mal irrigadas de nossa percepção, trazendo à baila sensações até então sepultas por rochedos rotineiros. Aspergem com cores e cheiros, criam misturas inéditas, líquidos são derramados dentro de sonhos, tempos invertidos dançam como abelhas ansiosas pelo cumprimento de suas tarefas, explodem em negações floridas suas sombras sem cores. Eis o que são os versos.
Mas, e se os quadrados não passarem de versos geométricos? Se estiverem mais sujeitos às leis da poética do que das da matemática? Então as verdades de ângulos e encaixes perderão a rudeza dos exatos, e se renderão ao flexível caminho dúbio das palavras. As figuras geométricas, e por que não, nós mesmos, seremos combinações de sílabas que germinam ideias, e cujos reflexos constroem o mundo?
Se assim for então, quadrados, cometas, círculos, homens ou vespeiros serão circunstâncias, e não suas sementes?

Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.