
As semanas murcharam a celebridade que ainda jazia em um vaso sem água. O número de seguidores diminuía a cada dia, mas apesar disso ainda era enorme, o que levou Hildebrand a tentar descobrir uma utilidade para aquilo. Muitas ideias nasceram e não tiveram forças nem para sair da maternidade: continuar com os desafios com uma nova parceira, contratar um casal para fazê-los, transformar a página em algo correlato, um guia de viagens focado em inverno.
Os entusiasmos costumavam nascer pelas manhãs, e pouco antes do meio-dia já eram velhos cansados do mundo. Então almoçava no restaurante universitário, caminhava pelo Jardim de Luxemburgo, onde a pátina das velhas estátuas em bronze lhe trazia pontadas de melancolia. Depois se sentava em um banco e desenhava na areia um quadrado. Contemplava-o por meia hora, sem conclusões. Diagnosticava-se como fraco, burro, o símbolo era complexo, e não seria alguém como ele, quem descobriria seus segredos.
Desde que tivera seus dedos amputados passara a usar luvas e a vestir-se melhor, ternos, coletes, chapéus, sapatos caros, tudo pago pelo dinheiro que lhe havia suprimido os dedos, a esposa, e deixado cicatrizes em seu rosto. Os meses fizeram com que, como o casco de um navio que vai à pique, as sobras da fama fossem engolidas pelas ondas do esquecimento, transformando-o em um exótico, anônimo e solitário estrangeiro de meia idade, figuras comuns em Paris. Que por meses ou anos circulam por ambientes refinados, exibindo mostras de tédio e olhos recheados de solidão, para finalmente, em silêncio, serem substituídos por outros, do mesmo tipo, ávidos para interpretarem aquele papel e fazerem a roda da vida girar.
Ele percebera isso, localizara os tipos, que poderiam possuir interesses distintos, mas estavam lá, bebendo suas taças de Chardonay nos terraços dos cafés, observando com desdém os turistas de primeira viagem, e com discrição, e a uma distância segura, contemplando a própria figura nos espelhos da Ópera Garnier. Tentando encontrar nos dourados e mármores vermelhos, uma moldura digna para aquilo que enxergam.
Eram figuras afeitas a espetáculos culturais, mas que, de fato, pouco se importavam com arte, o que desejavam não era mergulhar nela e vir à tona carregando um possível significado para suas vidas. Preferiam a proximidade seca, a segurança de que não haveria chances de afogamento, ou do ataque de feras submarinas. Nutrem-se dos odores exalados pela arte, lambem vitrines enquanto imaginam-se devorando o bife.
Reconhecera esses mesmos tipos nas páginas de Proust, e agora, mais de um século depois, eles continuavam lá, a embalagem talvez tivesse mudado, mas o espírito amolecido que animava aqueles corpos, os fazia se transformarem em um besouro colorido em meio a um saco de arroz. E talvez fosse fácil de explicar porque muitos deles o cumprimentavam, era porque também eles enxergavam nele a figura do besouro batendo asas em meio à multidão. Mas Hildebrand usava de toda a força de suas asas para se afastar desses assemelhados, desviava olhares, buscava cantos, ou simplesmente abandonava os ambientes.
Certa vez pensou em ceder à tentação de gastar algumas palavras, talvez vivessem situações emocionais não muito diferentes da sua. Trocariam dores, descobririam esperanças parecidas, e então, qual seria a sequência? O vício. Sim, construiriam hábitos, repetiriam rituais, enterneceriam os corações com os medos alheios, comparariam gostos pessoais, e discriminariam todos os outros que não possuíssem os gostos que em ambos coincidissem. Para tudo, finalmente terminar em uma discordância que os separaria, e que dissolveria o afeto criado com a convivência e o hábito.
Depois de muito procurar e nada encontrar, Hildebrand desistiu de descobrir uma utilidade para seus muitos seguidores, que fossem seguir outra pessoa e o esquecessem. Nem o projeto do livro sobre a aventura o interessava mais, despistou o editor com alguns endereços e telefones na Inglaterra, até que seu interesse derretesse por completo. Estava só no mundo, um homem oco, cujas únicas células que se moviam, indicando que aquele organismo estava vivo, eram aquelas responsáveis pela busca de um sentido para a vida.
Não era possível que nada significasse nada, e que tudo que significasse algo, estivesse à mercê da corrosão temporal, que acabaria transformando o significado, em nada. Então olhava os passantes onde estivesse, a inocência das crianças, a arrogância dos jovens, a pasmaceira da meia idade, e a conformidade dos velhos, ninguém havia encontrado nada, todos vivendo dentro de suas nuvens particulares, sujeitas a serem desfeitas pelas menores brisas. Ele cansou de sorrir, para instantes depois derramar lágrimas, sentado em sua cadeira de ferro, no Jardim de Luxemburgo ou nas Tulherias, vasculhava a própria vida e a de seus contemporâneos. Não atribuía culpas, as inocências as anulavam, e o que sobrava era a velha desolação, que lhe fustigava a alma com a mesma pergunta.
Então o vento fresco secava as gotas de suor penduradas em sua testa, se todos vivem sem questionamentos, não seria melhor esquecê-los e continuar encenando a velha peça, que apenas troca de atores quando eles decidem deixar de existir? O prazer gerado pelas sobremesas não deixa de ser uma maneira de manifestar essa desistência.
Mas é possível, e comum, desistir, e depois de algum tempo, abandonar a desistência. E é o que costuma acontecer com a maioria dos desistentes, abuso na ingestão dos doces, obesidade e necessidade de dieta. Não há escapatórias.
As semanas escorriam como dias, mas a força que encurtava as horas não era o prazer, mas uma indiferença amarelada que transformava hábitos em rituais sagrados, recheando-os com uma força viva que não possuíam, mas que iludia os sentidos que percebiam a passagem do tempo. À noite, quando o silêncio endurecia dentro de seu quarto de hotel, não era mais o coletivo, ou o significado único, quem gritava, espremido entre aquelas justas paredes centenárias, só o que ele desejava saber era sobre o próprio destino, e as questões eram menos profundas, rotas mesmo, como o tapete em que pisava antes de ir dormir: o que iria fazer com a vida que lhe restava?
Ainda era relativamente jovem, poderia economizar o dinheiro, voltar para a Inglaterra e conseguir um emprego. Uma nova rotina, outros hábitos, diferentes conexões com pessoas que, por sua vez, também possuem suas rotinas e hábitos. Não temia o esforço, não desejava o repouso, o que abominava era a inutilidade de qualquer empreitada. Mas a inação não parecia antídoto para essa doença. As respostas para o indivíduo pareciam tão escondidas quanto as verdades universais. Ele ensaiava possibilidades, mas todas elas tinham o gosto de seu prato preferido depois de haver sido saboreado mil vezes.
Entretanto, quando o sono se aproximava, e a vigília dava sinais de fraqueza, parece que também perdia forças essa sua perspicácia existencial, esse pessimismo atávico que não via brilhos em nenhum canto, nesses curtos instantes uma força diferente se apossava de seu ser, um mundo com cara de infância, e que dizia a ele que, apesar de tudo, uma surpresa adocicada molharia seus dias com prazeres, e eles, seriam suficientes. Nada mais seria necessário, ou ficaria de fora. Uma completude que não era intelectual, mas sensorial, e que, assim que o sono se apossava de seu corpo, desaparecia sem deixar resquícios.
As dores não deixavam traços em seu rosto, pois para ele, o mundo, mais do que ácido, era profundo, e a verdade, e os prazeres reais, talvez existissem em uma camada em que sua estatura não fosse suficiente para usufruí-los. Portanto, não havia razão para tristezas, nem jamais lhe passara pela cabeça a ideia de, deliberadamente extinguir a própria vida, se assim fizesse, estaria destruindo a única realidade que possuía, a única porta de entrada para o mundo ao qual ainda não tinha acesso. Precisava viver, e o faria até a última gota.
No dia do enterro de Liotta, além dos coveiros e de Hildebrand, havia apenas mais dois jovens, youtubers que com seus celulares cobriram o sepultamento, filmando o exato instante em que tudo acabou e as luzes se fecharam para ela. Em um primeiro instante, ele achou desrespeitosa a maneira informal como os jovens se dirigiam a seus próprios seguidores. O incômodo esteve prestes a se transformar em raiva, mas logo esmoreceu, Hildebrand identificou nas luzes e cores que formavam a imagem dos jovens, as tintas que a vida costumava usar para se comunicar, e em seus movimentos frenéticos, a dança que indica que o rio segue sem impedimentos, e que a correnteza conduzirá tudo o que nele mergulhar para uma foz, onde as espumas se misturarão a um arco-íris. Eles foram perdoados e o marido enlutado aceitou os dois apertos de mão.
Hildebrand optou por não realizar as cirurgias reparadoras, havia se acostumado com a própria aparência, a grande dificuldade, no início, havia sido a ausência dos dedos, mas seis meses depois de perdê-los, já não se lembrava mais de como era possuí-los, e talvez, se fossem restituídos, atrapalhassem a nova dinâmica que precisou aprender.
O rio continuava fluindo, carregando consigo restos de folhas, galhos secos, e até mesmo os peixes, que desconhecem haver correnteza. Aliás, um de seus novos hábitos adquiridos foi justamente a contemplação do rio. Gostava de se sentar na ponta extrema da ilha Saint-Louis, onde há um jardinete, e assistir o movimento das águas, o eterno desfile de turistas acenando, e até alguns cisnes brancos que costumavam se alimentar das sobras dos piqueniques. A Ilha Saint-Louis é um universo à parte cravado no coração de Paris. Região sem muitos turistas onde moradores antigos convivem com americanos endinheirados, que após encherem-se de tédio durante cinquenta ou sessenta anos, vêm, normalmente em casais, usufruir, segundo eles, do que a vida tem de melhor, em uma cidade que, de fato, já não existe mais. A preço de ouro adquirem algum apartamento pouco maior do que um quarto, dentro da pacífica ilha, e com um vocabulário de cinquenta palavras mal pronunciadas, se orgulham de conseguir pedir uma refeição, mesmo que o garçom sempre lhes ofereça a versão em inglês do cardápio.
Havia um desses casais com quem ele sempre cruzava nas vielas da ilha. Combinavam em idade e peso. Extravagantes, inocentes, vulgares, foram algumas das qualidades que Hildebrand atribuiu-lhes quando fizeram piquenique próximo ao lugar em que costumava se sentar. Como estava de costas, e tinha um livro nas mãos, pode escutar tudo o que diziam sem medo que notassem seu interesse. As obviedades desfilavam, e só eram interrompidas por alguma mesquinharia de alguma das partes. A um determinado instante, ele teve vontade de ficar em pé e iniciar o discurso:
Não, nada do que buscam encontrarão aqui, o problema não é a cidade que moram, mas o vazio que habita dentro de vocês, e ele continuará existindo em Paris, Dallas, ou Jacksonville. Nenhuma sofisticação que os distinguirá de seus vizinhos será descoberta, mesmo que bebam os melhores vinhos, que se percam nas galerias de Versalhes ou Fontainebleau, mesmo que entendam todas as peças da Comédie Française, que enxerguem suas imagens nos espelhos do Palácio Garnier, nada disso garantirá o que buscam, nada disso responderá às suas perguntas, portanto sugiro que esqueçam os mapas dos castelos do Loire, das visitas às casas de escritores famosos, ou do mundo sadomasoquista escondido atrás de Cariatides art-nouveau, esqueçam o moderno e o antigo, os vasos Lalique, as maravilhas digitais, esqueçam o fois-gras, os trens rápidos e o problema dos imigrantes magrebinos, esqueçam as luzes impressionistas, e o sargaço dançando dentro de rios de águas límpidas até se transformar em notas de Debussy. Esqueçam as castanheiras de 68 e também a areia que havia sob os paralelepípedos atirados contra as forças de ordem, esqueçam De Gaulle e a liberação, as mulheres colaboracionistas com seus cabelos raspados, esqueçam a nouvelle-vague, a pirâmide do Louvre e as Ferraris expostas em lojas na Champs-Élysée, esqueçam os artistas de metrô, percebam, estejam atentos, essa ilha que os abriga, afunda um pouco a cada dia, a cada instante o rio avança uma fração de milímetro, no final engolirá tudo, todos objetos e qualquer história, a arte e a vulgaridade, o asfalto e os hábitos, engolirá os suspiros amorosos e os vagões de metrô, nada sobreviverá, nem ao menos o desejo, nenhum deles, nem aquele que os fez escolher a Ilha Saint-Louis. No final, flutuarão sobre as águas escuras do Sena, que haverá deixado de ser rio para se transformar em oceano, apenas as nuvens de chumbo de um céu sem cores, e algumas sobras de máquinas usadas para vender doces nos metrôs, delas se desprenderão sacos de balas coloridas que flutuarão seus conteúdos, amarelos e alaranjados entrando e saindo de dentro do marrom, açúcares que jamais serão degustados, até que sobre esses sacos plásticos inflados pouse uma noite que é tão cinza quanto escura, e que por isso tornará bem claros os primeiros dourados brilhando sobre a impressão avermelhada que anuncia os vários sabores dos doces que flutuam.
Não, Hildebrand não interrompeu o piquenique para fazer esse discurso. Apenas o engoliu, e aceitou com lágrimas escondidas a dificuldade que teve para que ele atravessasse sua garganta. Levantou-se, e quando se virou para olhar para o casal, foi surpreendido por um golpe violento. Eles tinham olhos puros. A antipatia que regava com cuidados foi toda arrancada dos canteiros. Eram inocentes, como as crianças, os motoristas de táxi, ou os ditadores. Eram inocentes como ele. Cada um atentando para seu próprio destino, assistindo ao balé das nuvens enquanto a correnteza se encarrega do resto. Ele sorriu, da própria inocência, e depois, envergonhado, sorriu por não haver se acreditado inocente.
Então seus passos aumentaram a extensão, seus sapatos deixaram de temer as imperfeições das calçadas, corpo e alma perderam peso, e a luz de outono escreveu no chão a história da indiferença, folhas vivas e mortas lado a lado, umas esperando para cair, outras esbanjando viço, todas igualmente molhadas por um sol cuja luz jamais seria igual. Aproveitou o privilégio, assistiu a cada incursão da luz, prestando atenção em como ela se esparramava pelas ruas, como formava sombras, e como, timidamente, abandonava suas convicções mais ferrenhas para dar lugar ao escuro.
Nesse instante sentiu algo estranho. Parecia que tudo estava exatamente onde deveria estar, as pessoas, os objetos, e o tempo, cumpriam exatamente suas missões, não havia erros ou injustiças, um mundo exato onde as dores e a feiura eram encaixes necessários para que todas as engrenagens continuassem girando bem azeitadas, e o existir pulsasse como um sol tropical. O trem estava no trilho e ele fatalmente chegaria a todas as estações previstas.
A vida era. Assim, sem os complementos que costumava empregar, nada de grandiosa ou horrível, sem expectativas ou arrependimentos. Ser, no sentido mais pleno do verbo, de repente, ser, ver-se mergulhado na vida, amarrado apenas à sua tríplice coroa temporal, a tripla fronteira que destrói o futuro enquanto constrói o passado, e nos distrai com o presente. Afora isso a liberdade plena, assim como toda a água doce que suportarmos beber.
Os paços leves de Hildebrand o conduziram à velha Paris, que dos vinte distritos, poderia ser condensada em apenas dois, o quinto e o sexto, ali estava tudo o que lhe interessava. Mas agora não estava em buscas pessoais, apenas obedecia seus pés que, por sua vez, obedeciam a um hábito. Atravessou a ponte que conduz a Île de la Cité, vagueou ao redor das lojas de suvenir, depois sentou-se ao lado da nova Notre-Dame, reconstruída após o incêndio. Acompanhou a pressa com que as nuvens se moviam, e o mesmo aconteceu com ele, o paraíso perdido em que vivera nos últimos instantes, lentamente foi dando lugar a um outro estado de ânimo. A transição fez derreter a paciência, que parecia eterna, e trouxe de volta a leve ansiedade que passou a acompanhá-lo desde que se tornara adulto, do instante em que abria os olhos até ser tragado pelo sono. Mas a memória do que vivera ainda resistia e bloqueava a entrada do mal humor ou de tristezas.
Sentiu vontade de contato humano, e fez o que abominava assistir outros fazendo: puxou conversa com estranhos, um jovem casal de turistas alemães. Dessa vez teve a oportunidade de descarregar seu discurso:
Paris já era. Derretera, fora roída pelos ratos, figura sagrada na cidade. Eles que se esquecessem da torre Eiffell, da Avenida Champs- Élysée, ou do Museu do Louvre, aqueles lugares não existiam mais. Mas havia ainda algumas ruínas interessantes, o Cinema Champô, na Rue des Écoles, o Teatro de bolso de Montparnasse, o Museu Jacquemart-André, alguns restos de vida ao redor do Museu Delacroix, mas ali é preciso bastante atenção, pois os velhos cafés existencialistas estão lotados de cadáveres estrangeiros armados com celulares e cartões de crédito. Não esqueçam, a morte é contagiosa. A velha Comédie-Française foi engolida pela bocarra com dentes purulentos, mas ao lado dela, há os jardins do Palácio Real, onde as rosas ainda são de verdade, e os imigrantes que trabalham sete dias por semana, no oitavo vão lá para sorrir enquanto tomam garrafas plásticas de suco de romã. Há também o pôr do sol do alto do Pompidou, depois disso é melhor fazerem as malas imediatamente porque todo o resto transformou-se em caricatura do século 19.
Enquanto falava percebeu o leve sorriso que brotava no canto dos lábios do rapaz. Sabia que iriam considerá-lo um louco, e que não acolheriam nenhum de seus conselhos, mesmo assim ficou contente com o desabafo. Seguiu viagem, atravessou a ponte e caminhou pelo Bulevar Saint-Michel, as nuvens do céu agora formavam blocos maciços, ansiosos por lágrimas volumosas. Mas dessa vez ele não obedeceu aos céus, até que o primeiro pingo transformou-o no mesmo ansioso de sempre: o que será de mim, do que irei viver quando o dinheiro acabar? Talvez pudesse me casar novamente, ainda posso ter um filho, retornar à Inglaterra, ao Brasil. O mundo digital oferece muitas possibilidades e, apesar do desastre pessoal, não posso dizer que a experiência foi mau sucedida, é só descobrir uma maneira de não precisar jogar tudo aquilo no lixo.
Na rua Dufour ele adoçou seus olhos na vitrine de uma confeitaria, poderia usar o dinheiro para um mergulho sem volta no mundo dos prazeres, e depois, bem isso já não importaria tanto, pois haveria usufruído de mais prazeres do que uma dezena de homens normais. Quando pôs os pés na galeria do Hotel Chopin a tempestade desabou, assistiu à cidade mudar de cor e de alma, recolhida em sua toca, Paris era lambida por línguas molhadas, luzes vermelhas e amarelas manchavam a bruma que se elevava do solo, e as bocas de lobo engoliam tudo o que podiam, para depois fazer verter sobre as calçadas o excedente. As sirenes onipotentes rasgavam o som de chuva e faziam o trânsito ainda mais confuso. Sob as marquises, e mesmo assim protegidas por guarda-chuvas, as pessoas molhavam os pés, consultavam os celulares e reclamavam com os vizinhos.
A chuva aumentara sua vontade de conversar com alguém, mas ninguém ali parecia disposto a trocar mais do que quatro palavras. Atravessou a galeria duas vezes e percebeu que a chuva transformara as pessoas, já naturalmente não muito afeita a conversas, em larvas do bicho da seda encerradas dentro de seus casulos individuais. Sem opções, subiu até o hotel e assim que chegou à recepção, encontrou alguém que não poderia se negar a trocar com ele algumas palavras. O funcionário daquele turno era um jovem moreno que lia um livro e que pareceu incomodado com as perguntas de Hildebrand, mesmo assim, o respondeu com educação. Chamava-se Armin, nascido no Irâ, e desde os onze anos morava em Paris. O livro era uma tradução francesa do clássico iraniano, A coruja cega, de Sadegh Hedayat. Como não conhecia a obra, a conversa não conseguiu evoluir naquela direção. As outras perguntas foram respondidas sem muita vontade e com monossilábicos.
Hildebrand caminhou pelo pequeno saguão até encontrar com o velho piano de cauda órfão de algumas teclas. Então se lembrou da música de Chopin “O Desejo da Donzela”, que antes de perder os dedos conseguia tocar com relativa desenvoltura. Mas agora, além das teclas faltantes, havia quatro dedos a menos. Curioso sobre como aquilo soaria retirou as luvas e com muitas dificuldades e algumas interrupções, conseguiu executar a peça. Então perguntou ao recepcionista se ele conhecia o que ele havia tocado. O jovem ficou em silêncio vasculhando a memória:
“Não seria um reggae?”
A primeira reação de Hildebrand foi fechar o cenho, como podia haver confundido Chopin com um reggae? Não era à toa que cumpria o turno noturno em um hotel decadente. O funcionário percebeu seu descontentamento e abandonou sua leitura.
“O que é então?”
A pergunta flutuou pelo saguão sem resposta, o silêncio foi interrompido pela chegada de turistas barulhentos sedentos por informações. Enquanto isso Hildebrand permaneceu sentado ao piano, contemplando as próprias mãos e as teclas que faltavam. O mau humor havia passado, e começou mesmo a achar engraçada a resposta do rapaz. Quando os turistas foram embora, Hildebrand encarou o recepcionista:
“Meu caro, Armin, a vida é estranha mesmo, pegue uma música de Chopin, no caso O desejo da donzela, arranque algumas teclas do piano e quatro dedos do pianista, e cabuuuummmmm, o que temos? Um reggae.”
Os olhos escuros de Armin permaneceram arregalados, com medo de que aquilo fosse apenas o primeiro parágrafo de uma longa reprimenda. Mas o que aconteceu foi o contrário, dos lábios de Hildebrand brotou um sorriso vigoroso. O recepcionista respondeu mostrando seus dentes brancos como o marfim. A cena poderia haver se encerrado por aí, com ele pedindo a chave do quarto e indo dormir. Normalmente seria isso que aconteceria. Mas dessa vez foi diferente, pairava sobre ele uma energia rara, vinda das nuvens, do movimento do mundo, uma força que pertence aos não nascidos e aos mortos, e que apenas raramente consegue aflorar na vida dos que vivem. E essa era uma dessas raras ocasiões. Hildebrand murmurou entre dentes:
“Chopin, menos algumas teclas, menos quatro dedos, igual a reggae.”
Então explodiu em uma gargalhada que só fez progredir, e que primeiro arrancou-lhe lágrimas dos olhos, para então fazer com que lhe faltasse ar. Ele tossiu e fez a gargalhada arrefecer. Sem que percebesse, Armin havia se aproximado dele e segurava um copo de água. Aquela visão, principalmente o ar tímido do recepcionista, fez com que a gargalhada voltasse ainda mais forte, a ponto de que para respirar melhor, precisasse se jogar no chão. O funcionário se aproximou dele, e Hildebrand, mergulhado em uma gargalhada que continuava mostrando vitalidade, pode ver que Armin permitira a entrada de um sorriso que modificara seu rosto, e que aos poucos se transformara em risada. Ele desviou o olhar, e o fixou no teto, uma superfície amarelada feita em gesso e que imitava arabescos antigos. As placas envelhecidas começavam a desistir de se mostrar como uma peça única, e já era possível ver que era composta de vários pedaços idênticos. Perfeitos e simétricos quadrados.
A gargalhada aumentou ainda mais de intensidade, e parecia sugar os últimos restos de ar de seus pulmões. Então, preocupado com a própria sobrevivência, mas sem ainda conseguir controlar a força maior que continuava a se manifestar, ele esticou o braço na direção do funcionário, pedindo o copo de água. Quando o copo chegou a sua mão, ele percebeu como a mão que o entregava a água tremia imensamente. Levantou a cabeça e viu: Armin gargalhava mais do que ele.
Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.
