
As semanas, aos poucos, cicatrizaram o luto. Liotta tomava seus remédios e fazia visitas regulares ao médico. Parecia tranquila e bem disposta, mas algo nela havia desaparecido. Antes ela era um cano de alta pressão movendo-se de maneira descontrolada e espalhando água por todos os cantos. Talvez o cano tivesse sido conectado a outro, e agora ela não desperdiçasse mais água, mas podia ser que o cano continuasse como estava e apenas a água tivesse secado, ou pelo menos diminuído em muito seu fluxo.
Ela deixara de cantar trechos de ópera e contar mentiras relacionadas a apresentações que havia participado. Fato que fez com que Hildebrand desconfiasse que ela havia descoberto a verdade. Por outro lado, ele percebeu que se continuassem morando naquele hotel e sem nenhuma outra fonte de renda além da venda dos quadros de caça, em pouco tempo o dinheiro acabaria.
Um dia, cansado de passar o tempo inteiro sozinho, ele a convidou para que o acompanhasse. Fizeram exatamente o mesmo que fazia quando estava desacompanhado, o almoço no restaurante universitário, o passeio pelo Jardim de Luxemburgo, o descanso nas cadeiras verdes do parque. No final da tarde convidou-a para jantarem em um restaurante coreano e enquanto ele se distraía com a máquina portátil de churrasco que estava sobre a mesa, ela perguntou-o se seus dias normalmente eram passados daquela maneira. Sem muito refletir, ele respondeu que sim.
“Você não acha que tua vida é vazia?”
Sem saber o que responder, ele confundiu-se com o pedaço de carne que acabara de assar e deixou-o cair dentro do depósito de brasas do fogareiro.
“O que você queria saber mesmo?”
“Da tua vida, se não acha que ela é vazia, sem sentido.”
Ele sorriu, deixou as carnes de lado, coçou o pescoço, mas esse tempo ganho não foi suficiente para que formulasse qualquer resposta bem formatada.
“Sim, completamente.”
“Completamente o quê?”
“Sem sentido.”
Ela pareceu contente com a resposta, e colocou um pedaço de carne na chapa do fogareiro. A refeição prosseguiu mergulhada em um silêncio que constrangeu, sobretudo, Hildebrand. O vapor que emanava do fogareiro encobriu, em parte, olhares perdidos. As coisas poderiam terminar por aí, uma pequena distração e as palavras ditas perderiam peso, para depois serem sugadas pelo ralo do esquecimento. Mas foi Hildebrand quem não permitiu:
“Um vazio terrível que se iniciou assim que minha infância terminou…”
Quando a fumaça se dispersou, ele pode ver que ela sorria, havia nesse sorriso metades equivalentes de maldade e solidariedade. Aquela parecia ser a exata frase que ela gostaria de escutar. Ele abaixou a cabeça, e essa atitude fez com que o sorriso dela aumentasse em alguns milímetros. Ele prosseguiu:
“… e que provavelmente só terminará com minha morte.”
Ele então percebeu que ela comia pedaços de carne crua com grande voracidade, e que alguns fiapos ficaram presos entre seus dentes. O silêncio ganhou novo fôlego, mas os olhos da mulher pareciam estar cientes de que ele era importante, uma arma que deveria ser utilizada com sabedoria. Ela finalmente sorriu, mas ele percebeu que aquilo poderia ser uma armadilha, mesmo assim, imitou-a, e segurou em uma de suas mãos.
“Não acha que já está na hora desse vazio terminar? Ou prefere apenas esperar pela morte?”
Ele silenciou, voz e corpo, encolheu-se na cadeira e lamentou a haver conhecido. Então percebeu que o que ela dizia estava correto, e que pela primeira vez desde o início da relação, ela dizia algo importante. Lembrou-se de suas reflexões sobre o quadrado, e todas as consequências possíveis advindas de seu raciocínio. Pensou em compartilhar com ela, mas optou por jogar um pouco mais de gasolina sobre a chama do silêncio. Talvez eles pudessem formar um elo que fosse enriquecedor para ambos. Até ali, a união deles havia sido um graveto arrastado pela correnteza, chocando-se contra pedras, lixo acumulado, um passageiro do acaso. Mas, um leme, era possível, escolher os próprios caminhos, tentar encontrar outras rotas de fuga para se esquivar das mandíbulas do vazio.
Decidiram voltar para o hotel caminhando. Ela segurou sua mão e foi só então que ele percebeu um aspecto físico de Liotta que até então passara despercebido. Ela era um exemplar saudável de mulher, exuberante na compleição física, ombros largos, quadris amplos, pernas e braços fortes. A temperatura não devia passar dos 14 graus, e ela de braços de fora, não dava qualquer sinal de que estivesse sentindo frio. Sentiu orgulho da mulher que o acompanhava e esfregou a mão em todas as partes de seu corpo que estavam descobertas.
Na manhã seguinte lembrou-se de haver sonhado com uma terrível tempestade de neve, e que Liotta o acompanhara nessa aventura. Contou-lhe o sonho, e logo o amarrou ao assunto discutido na noite passada. Ela pareceu contente com a lembrança, então ele falou do quadrado, das possibilidades, dúvidas e outras ideias pouco práticas. Ela pareceu não entender nada, e puxou-o de volta para a realidade:
“Precisamos inventar algo que nos dê dinheiro e prazer, não necessariamente nessa ordem.”
A frase caiu como uma bomba de prazer sobre Hildebrand, teve dificuldades para conter um sorriso, e lembrou-se que esses risos fugidios costumavam ocorrer na adolescência, e desde então estiveram ausentes. Pediu licença, precisaria resolver algo urgente, a venda de dois quadros. De fato, não havia urgência ou compradores em potencial, queria tempo para poder pensar em uma saída, as palavras dinheiro e prazer martelavam seus ouvidos, pediam que ele concedesse a mão de um a outro e vice-versa, que elas pudessem se unir em seu benefício.
Não foi criativo, refugiou-se no Jardim de Luxemburgo, em frente ao Senado. Lá, tentou todas as maneiras de aproximar o prazer do dinheiro, mas sempre havia algum empecilho, o casamento parecia uma promessa distante, talvez impossível. Conhecia exemplos de pessoas que faziam o que gostavam e ainda ganhavam bastante com isso, mas talvez, mais de perto, as coisas não fossem bem assim, o prazer inicial se transformaria em obrigação, a rotina venceria, e o invejado por todos, acabaria, no fundo, não passando de mais um trabalhador da era industrial, sujeito a bater cartão e desejar que o ponteiro do relógio viajasse a uma velocidade maior. Talvez o mesmo ocorresse com o quadrado, descobre-se muita coisa a seu respeito, conexões, serventias, propriedades, mas sua essência última, seu mistério derradeiro, estaria protegido dos olhos humanos.
O homem é um condenado a permanecer sempre na metade do caminho. Um forçado a se conformar com essa condição. Hildebrand levantou-se da cadeira assim que percebeu que havia tombado novamente no canteiro das elucubrações filosóficas. O quadrado que o deixasse em paz, ele sempre existira e continuaria existindo, enquanto ele mesmo havia sido flechado, corria em suas veias o veneno do desaparecimento, para o qual não existia antídoto. O máximo que conseguiria seria alguns anestésicos que tornariam o processo menos doloroso, e era atrás deles que deveria correr.
Saiu do parque e desceu o Boulevard Saint-Michel, conseguira abandonar o quadrado e suas consequências. Vagou pelos sebos perambulando sem destino, olhava os sorrisos dos turistas com uma inveja terna, onde conseguem aquela leveza, onde encontraram as respostas que precisam? Parecia que o sorvete alaranjado, que uma jovem saboreava, respondia a todas as questões que ela desejava, afora ele, era sorrir, passear e permitir que o sol a bronzeasse. Terminou a caminhada na Fonte Saint-Michel, abarrotada de músicos ansiosos pelo tilintar de moedas, e turistas filmando com seus celulares misturas indigestas de pedaços da história com ruídos e imagens poluídas de um cotidiano que, às vezes pode surpreender, mas que na maioria dos casos apenas entedia.
Atravessou a rua e encontrou mais fotos, sorrisos e sorvetes. Decidiu voltar na direção do Jardim de Luxemburgo, no meio do caminho alguém chamou sua atenção. Era um homem inglês, de idade parecida com a sua e que filmava os mínimos detalhes do Boulevard Saint-Michel enquanto descrevia e tentava explicar o que ia vendo. As informações eram todas muito óbvias, mas o homem as vendia como grandes descobertas, o melhor croissant de Paris, roupas baratas e de grande qualidade. Hildebrand achou-o curioso porque o sotaque do homem parecia-se com o seu. Acompanhou-o por duas quadras, e assim que ele parou de se dirigir ao celular, abordou-o.
Descobriram que eram de cidades próximas e nasceram no mesmo ano. Archibald se separara de uma francesa e perdera o emprego, o canal no YouTube era seu ganha pão, ainda não o suficiente para viver, mas conseguia ganhar alguma coisa e, com o tempo, se ficasse mais conhecido, os ganhos poderiam aumentar. Enquanto mostrava o Boulevard Saint-Germain, ele estava ao vivo para seus seguidores, mostrou na tela do celular algumas frases:
“Você me fez viajar, estou preso a uma cama de hospital, mas hoje passeei por Paris, muito obrigado,”
“Valeu pelas excelentes dicas.”
“Archibald, sempre nos surpreendendo com sabedoria e bom gosto.”
Hildebrand sentiu vontade de rir, mas conseguiu dominar todos os músculos de seu rosto. Então perguntou ao novo amigo o que eram aqueles números acompanhados por cifrões que havia após algumas das frases. Archibald sorriu e pareceu orgulhoso em responder:
“Essas são as doações de meus seguidores, o que o site paga é insignificante, o grosso vem de doações desse tipo, 10 euros, 20, às vezes 100.”
Foi a vez de Hildebrand sorrir, as pessoas pagavam para ouvir aqueles lugares comuns. O quadrado talvez não fosse um enigma assim tão difícil de resolver, e ainda menos o que Liotta sugerira: prazer e dinheiro. Se com obviedades dessas, o homem conseguia ganhar algum dinheiro, imagine alguém mais criativo, que descobrisse um assunto diferente e junto com ele um público da mesma ordem. Sabia que quase tudo que imaginasse já existiria, um ou muitos que vinham fazendo há anos, conheciam o mercado, o que dá e não dá certo, alguém sem experiência, acabaria fazendo algo amador, destinado ao fracasso.
Despediu-se de Archibald, escolheu voltar para o hotel de metrô. Qualquer passageiro que o observasse teria o mesmo diagnóstico, por seu semblante aquele homem parecia alguém que escondia uma carta na manga. O sorriso não chegou a nascer, mas seu maxilar se movia ansioso para mastigar algo, e seus olhos refletiam o cartaz alaranjado onde lia-se uma poesia de Paul Celan.
Antes mesmo de abrir a porta do quarto, sentiu um estranho cheiro, Liotta estava deitada na cama fumando.
“Me desculpe, estava precisando, é uma pontinha de ópio. Quer experimentar?”
Ele demorou a responder, gostaria de conversar com ela sobre o que havia acontecido, queria que ela o ajudasse a desenvolver a ideia. Por outro lado sabia que precisava demonstrar companheirismo. Mas havia ainda outra questão, os remédios psicotrópicos que ela tomava, qual seria o efeito dessa mistura?
“Será que não é perigoso, por causa dos teus remédios?”
“Não sei, acho que não, é só uma pontinha, não sou viciada.”
Ele pegou o cigarro e tragou, alguns segundos depois sentiu um relaxamento se espalhando por seu corpo. Deitou-se ao lado dela e fumaram o resto em silêncio. Ela encostou a cabeça em seu ombro e assim permaneceu, quieta, de olhos abertos na direção da porta do quarto. Ele viajou, percebeu cores inéditas entrando por debaixo da porta e depois flutuando sobre o armário, sombras que pareciam bocas vorazes por comida se arrastando pelo chão, escutou ruídos que nunca havia percebido, que pareciam se emendar, formando uma voz ansiosa por contar segredos. O efeito, aos poucos, foi diminuindo e o raciocínio sublevou o império das sensações. Virou-se e viu as costas seminuas de Liotta, distinguiu os músculos bem trabalhados incrustados sob uma pele lisa e bem irrigada. O friozinho da noite não a incomodava, pois no Hotel Chopin o aquecimento só era ligado após as 22 horas.
O quadrado abria um de seus lados e se transformava em uma caixa. De dentro dela saía Archibald e seu celular, depois voavam muitas notas coloridas de todas as moedas que existem. Quando as notas acabaram foi a vez de grandes bocas sorridentes deixarem a caixa, algumas estavam maquiadas como as de um palhaço, mas também reconheceu a sua e a de Liotta, todas as bocas riam, algumas gargalhavam. A caixa finalmente esvaziou seu conteúdo, e fechou a tampa, voltando a se transformar em um quadrado, que, envolvido por luzes de cores fortes, piscou, piscou, até que ele acordasse.
Não tinha ideia de que horas eram, mas Liotta havia saído. Arrumou-se e desceu, descobriu que o dia estava em sua metade, o sol brilhava forte e assim que pensou em pisar na rua, avistou Liotta que voltava para o hotel com algumas compras. Eles improvisaram um almoço em cima da cama, baseado em suco de romã e sanduíches de Camembert. A refeição teve um efeito restaurador sobre ambos e os encheu de humores, que combinavam com o dia azulado que através de frestas enviava suas saudações ao casal. Ele contou sobre o homem que havia conhecido, e como ele conseguia ganhar a vida contando obviedades para as pessoas que se escondiam dentro de seu celular.
Pela primeira vez ela sorriu como fazia antes da morte de sua filha. Então, de maneira inédita, dirigiu-se a ele apenas em inglês, que estranhou a qualidade e a fluência dela no idioma, mas apenas classificou o episódio como “Mais um dos mistérios de Liotta”. O assunto agora era outro, precisavam decidir o futuro, dos trinta e nove quadros da pinacoteca de caça, só restaram três, uma decisão urgia. Precisavam de dia, de rua, de movimento, com as células nutridas e o corpo descansado, caminharam algumas quadras até uma praça. Apesar do sol, o dia estava fresco, e Liotta mostrava sua resistência usando apenas uma camiseta.
Depois de decidirem que a primeira busca por dinheiro e prazer, precisaria acontecer em território digital, pois o mundo havia sido inundado, e seria um mero desperdício de energia tentar lutar contra a correnteza. Depois disso é que iniciou-se a parte mais difícil, vasculharam em seus celulares todas as possibilidades, todos os espaços possíveis estavam ocupados, e não apenas por um indivíduo, cada assunto era como um restaurante, havia a comida de rua, o restaurante popular e os estrelados. Talvez tivessem chegado muito tarde.
Hildebrand insistiu, a originalidade poderia ser a chave da questão. Então deixaram chover ideias sem medo de se molharem, nada seria absurdo demais. Explosões de risadas foram constantes, mas logo em seguida eram reprimidas para que nova ideia pudesse nascer. Caminharam, como fazem os escritores em busca de inspiração, perto da Rua Des Écoles, passaram em frente a uma loja da rede de equipamentos para acampamentos “Aux Vieux Camper”. Na vitrine estavam expostos sacos de dormir feitos para suportar temperaturas de menos dez, vinte e até quarenta graus Célsius.
Ele a puxou pela mão, e assim que se afastaram da vitrine, deu um grito:
“É isso.”
Depois, a beijou como jamais fizera. Se o segredo do quadrado restava um mistério, e provavelmente assim permaneceria, pelo menos a união entre dinheiro e prazer aparentava haver sido resolvida. Escolheu a calma de um café para contar-lhe sua ideia. Com uma xícara à sua frente e um sorriso esperançoso que costuma morrer depois da adolescência, Hildebrand iniciou sua explicação:
“Trabalharemos em dupla. Um casal que visita lugares frios e dorme entrelaçando os corpos, protegido não por barracas ou sacos de dormir especiais, mas apenas por roupas e cobertores. Faremos lives durante as noites frias, mostrando as temperaturas que suportamos. É claro, podemos começar devagar, o frio da primavera francesa, depois vamos aumentando, assim como aumentarão o número de seguidores e o valor de suas doações. Você é bem resistente ao frio e eu acabo me adaptando, depois descobrimos os segredos de suportar temperaturas muito baixas, quais os melhores cobertores, a alimentação adequada. O que acha?”
“Liotta apenas sorriu, e quando ele já estava ansioso por uma resposta o que veio foi uma pergunta:
“Você não é tão idiota assim, é?”
Foi a vez dele sorrir:
“Claro que sou.”
O silêncio alegre, que combinava com as cores que desciam do céu, fez com que Hildebrand temesse que ela achasse que ele estivesse brincando.
“Estou falando sério, não é nada fácil descobrir algo que amarre dinheiro a prazer, e esse parece ser um caminho possível, viagens, prazeres, doações dos seguidores.”
Ela percebeu que não havia ali qualquer traço de brincadeira, e tratou de ficar séria.
“Seguidores, mas onde estão eles?”
“Nós os conquistaremos, aos poucos.”
A essa altura ela sabia que para cada argumento contrário ele apareceria com três a favor. Então apenas pediu para que ele explicasse melhor a ideia:
“Você quer que passemos a noite dormindo em lugares frios e as pessoas pagarão por isso?”
“Exatamente. Os apelos são muitos, um casal que sobrevive com o calor do corpo do outro, há também a natureza, o planeta, a ideia é ótima e muito vendável. Precisamos criar o canal, inventar um título bem chamativo e ir conquistando seguidores, depois marcamos o primeiro evento, uma noite no campo, não precisamos ir muito longe. E então iremos levantando o sarrafo, lugares um pouco mais frios, os próprios seguidores se encarregarão de divulgar o canal. Se tem gente capaz de doar 100 euros para alguém que caminha quatro quadras no Boulevard Saint-Michel, quanto não doariam a um casal que sobrevive a temperaturas negativas, apenas com o calor de seus corpos e alguns cobertores?”
“Loucura.”
“Claro que sim, mas como seria chato um mundo sem loucos, não acha?”
“Sim, mas ainda mais chato seria se eles se tornassem maioria.”
Liotta, aparentemente, havia desistido de resistir, mas continuava achando a ideia estúpida e acreditando que o tempo o faria esquecê-la. Hildebrand era só entusiasmos, e ao menor sinal de tentativa de mudança de assunto, voltava aos trilhos de seu projeto. Na manhã seguinte saiu cedo, e quando voltou, antes da noite cair, parecia haver resolvido todos os empecilhos que poderiam se opor à realização de seu sonho.
Com um grande sorriso, que destruiu as defesas previamente preparadas por Liotta, anunciou o nome do canal: “The winter couple”. Sim, nesse meio o inglês era obrigatório. Já havia aberto o canal e precisava alimentá-lo com fotos de ambos. A princípio seriam fotos do casal em algum parque parisiense, mas depois, quando acumulassem material, as fotos teriam o fundo branco da neve. Ela sorriu, mas teve vontade de gritar, parecia que a roleta novamente estava sendo girada e que ela, como sempre, não exercia nenhum poder sobre a roda. Quantas vezes quis tomar a própria vida nas mãos, segurar as rédeas e escolher caminhos. Mas parecia existir uma força maior, que a desejava apenas passageira e contra a qual nada podia. Por um instante odiou Hildebrand, ele era o embaixador desses poderes ocultos.
Depois seu ódio derreteu, os sorrisos dele tinham as cores da adolescência, e talvez ele não fosse um emissário dessas forças ocultas, mas assim como ela também estivesse, sem perceber, sendo conduzido. Ela manteve-se cordial, respondendo com a cabeça ou com muxoxos, mas voava longe. Em que ponto de sua vida havia perdido as rédeas, ou então isso se dera muito antes, algumas gerações atrás, uma fraqueza de um antepassado que espalharia consequências nefastas por séculos. Não conseguiu determinar, apenas assistiu a Hildebrand, e à certeza com que pronunciava suas palavras. Invejou-o, queria estar certa de qualquer coisa. Percebeu que não teria forças para escapar a seu desejo. Outra vez arremessada ao oceano, outra vez sujeita às correntezas.
Sem que ele percebesse, com um movimento rápido, enxugou uma lágrima que escorria, depois engoliu em seco, e com um entusiasmo que tentava emendar o do marido, interrompeu sua fala:
“Por que não simplesmente Winter Couple, sem o artigo, fica mais dinâmico.” Ele titubeou, não discordava de sua afirmação, mas os segundos de silêncio foram para disfarçar a alegria que sentiu, pois essa era a primeira frase que dizia em que ela, de alguma forma, se incluía em seu projeto.
“Sim, claro, Winter Couple, muito mais moderno.”
“Só acho que não precisamos nos expor na internet, nada de currículos longos, apenas uma descrição de nossas preferências, a interação com a natureza, essas coisas. Um texto curto e superficial, é isso que funciona.” “Concordo, curto e superficial como esse nosso mundo.”
“E como nós dois, não podemos nos excluir disso.”
Hildebrand percebeu que a última frase, ao ser pronunciada, havia exalado vapores ácidos. Então agiu como um motorista, que pelo espelho retrovisor, avista um motociclista que cai. Ele nada faz e guarda essa informação apenas para si mesmo. Fingiu nada haver notado, e ela se deu conta que, se quisesse continuar emanando seus vapores ácidos, precisaria dispor de recursos que não possuía. A rendição era o melhor dos caminhos. Mas antes de entregar-se aos desejos infames do inimigo, reservou um momento para si. Talvez estivesse destinada ao sofrimento, como o leão à caça, e o macaco a saltar de galho em galho, estava envolta por uma muralha muito mais grossa do que poderia escavar, mesmo se passasse todos os instantes de sua vida com uma colher na mão destruindo os próprios dedos. Então, o mais sábio a fazer seria tentar minorá-lo, e não o que vinha tentando fazer até ali, a erradicação completa. Molhar as lágrimas com risadas, e encontrar na planta falida da frustração, as sementes dos novos desejos.
Então ela sorriu, assim que conseguiu mentalmente ilustrar suas conclusões: enxergou nos reflexos marmóreos do túmulo da filha, um ângulo fotogênico seu, onde as rugas são engolidas pela pedra parente da eternidade. Mas então, quando se lembrou o que acontece embaixo da lápide, o sorriso se transformou em rosa perdida entre páginas há muito não abertas. Depois há o mar, que tudo encobre, com suas correntes de vontade, e ela, presa frágil, viciada em ar, com músculos prontos a fraquejar, esperando a primeira tábua flutuante para nela se abraçar, e descobrir que elas também afundam, mas que há sempre a próxima, boiando à espera de suas esperanças. E elas verdejam como erva daninha, condenadas ao próximo capítulo, ao sal marinho. Enquanto isso as rugas ganham corpo e os sorrisos perdem o tempero. Essa é a aventura, e é a ela que Liotta deve se adaptar. Tudo muito cruel, e por ser inevitável, também despido de qualquer crueldade.
Hildebrand surpreendeu-se com os conhecimentos de Liotta quando o assunto eram tecnologias. Depois de alimentar a página com as informações básicas, e fotografias que, apesar de bem feitas, para um bom observador, denunciavam que aqueles sorrisos eram construídos com substância plástica, ela passou a espalhar o canal pelos quatro cantos da rede. Os seguidores foram sendo arrastados como pequenos peixes prateados emaranhados nos nós de náilon, peixes que vinham dos quatro oceanos do mundo. Turbilhão de água e movimento em forma de comentários e figurinhas. Eram inocentes coraçõezinhos vermelhos, vigorosos sinais de positivo, estrelinhas sem brilho, e uma miríade de outras formas que tentavam economizar palavras, mesmo que para isso, precisassem também reduzir o tamanho dos significados.
Ele precisou se desfazer dos três últimos quadros. Quitou mais dez dias do hotel e comprou os equipamentos que necessitavam. Quando informaram a data da primeira aventura gelada, os seguidores eram 549, três dias depois passaram a 1024. Meados de abril, no departamento de Yvelines, ainda havia sobras de inverno, nas madrugadas a temperatura podia chegar a seis ou sete graus. Nada excepcional para quem dorme dentro de casa, mas uma prova de coragem para os amolecidos corpos acostumados a confortos térmicos.
Enquanto o dia marcado não chegava, Hildebrand começou a desconfiar da própria capacidade de suportar o frio. Mesmo assim decidiu que iria até o fim, nem que isso representasse a deterioração de sua saúde. O dinheiro em breve terminaria, e aquela era provavelmente sua última chance de conseguir manter a dignidade. Se nada desse certo ele precisaria saltar vários degraus na escada social, provavelmente se fixando no último deles, a mendicância. Essa possibilidade real fez com que mudasse sua atitude costumeira em relação a mendigos, normalmente costumava encará-los com desprezo, nunca dava o que pediam e, entre lábios, sem que ouvissem, deixava escapar alguma palavra ofensiva. Agora apenas desviava, olhos e pensamento, que eram apontados para o canto oposto. Mas essa não era a única de suas preocupações, outras frequentavam seus sonhos, a falta de seguidores ou ausência de doações, problemas técnicos de todos os tipos, roubos, problemas de saúde, mas nenhum deles era tão grande quanto uma espécie de abismo que experimentava tanto acordado quanto dormindo.
Essa sensação iniciou-se quando leu que uma das mais eficientes proteções contra o frio era a gordura corporal, e imediatamente começou um regime de engorda tanto para si quanto para Liotta. As grandes quantidades de comida gordurosa talvez tiveram sua parcela de culpa nesse estado de espírito pasmacento no qual mergulhou. Mas a questão foi mais complexa que isso, tudo perdeu grande parte do brilho, e principalmente, do significado. O mundo, e sobretudo, como se relacionava como ele, agora era um grande vazio rodeado por ainda mais vazio. O que não havia se transformado em nada, assumia a forma de algo ridiculamente grotesco, antes de, finalmente, virar nada.
Não deixou sua esposa perceber que se afogava. Encontrou energias que desconhecia possuir, lutou contra a falta de sentido, e saiu-se tão vitorioso, que acabou encontrando sentido até naquilo que, de fato, não possuía. Saltou para o extremo oposto, um otimismo pueril corria em sua suas veias e fazia com que ele, além de remar o barco, ditasse o ritmo à outra remadora, no caso, Liotta. O universo inteiro havia sido reduzido a seu projeto, e ele prestava bastante atenção para evitar aniquilamentos. O nada precisava ser mantido distante, e para isso a única solução seria ignorar tudo que não possuísse relação com o destino que traçara para si e para sua esposa.
A essa altura, Liotta havia cedido, seus mundos coincidiam, os encaixes eram quase perfeitos. Mas havia alguns ajustes necessários, umas agonias sobreviventes, que antes do sono gritavam seus desesperos. Então ela apressava-se em mergulhar, desfazer-se da vigília, o que, por vezes, não conseguia destruir as dores, que como uma maré repetitiva, emendava sempre as mesmas sílabas: in-sa-ni-da-de.
O dia acabava por engolir o sonho, e o gosto amargo da digestão se desfazia durante a manhã. O cotidiano finalmente comandava suas vontades, emendando tarefas que colocavam tempo e energias pessoais dentro da mesma ampulheta. Mas havia efeitos colaterais: irritações súbitas, desânimos imprevisíveis, erros infantis, sintomas enganadores, que poderiam muito bem serem confundidos com as simples consequências de se estar vivo.
Enquanto isso, Hildebrand disse a ela que precisaria conhecer a fundo o inimigo: o frio. Estudou em vídeos e artigos os principais efeitos sobre o corpo humano. Descobriu que, no fundo, o frio era a perda de calor corpóreo. No verão essa perda é mínima, mas no inverno, se não existir proteção, poderá ser mortal. O calor escapa por buracos e arrasta consigo a vida. A solução seria tapar muito bem todos esses buracos. Havia muito material disponível sobre como o frio se espalha, seus efeitos e como domá-lo, mas nada parecido com aquilo que desejava utilizar, o uso do corpo da parceira e vice-versa, como parte importante na preservação do calor corpóreo.
O calor costuma escapar do corpo através das extremidades, principalmente da cabeça, por onde circula boa parte do sangue. Além disso, é importante dar especial atenção aos pulmões e a todos os órgãos localizados no tronco. É por isso que alpinistas de grande altitude estão sempre bebendo chá quente e tomando sopas, o tronco precisa preservar o calor dos órgãos, e para isso deve ser protegido por dentro e por fora. Além da cabeça, mãos e pés devem ser protegidos com luvas e meias. Mas há algo que muitos daqueles que desafiam o frio se esquecem, e que costuma ser a razão de suas derrotas, o chão talvez seja o grande vilão, é ele, e não o ar gelado, que suga a maioria de nossas calorias. Por isso é necessário um perfeito isolamento, uma densa camada de material que não permita vazamentos de calor.
Hildebrand estava decidido a não utilizar os tradicionais sacos de dormir com proteção para baixíssimas temperaturas, eles podem ser eficientes contra o frio, mas destruiriam o espírito da aventura, e diminuiriam em muito as doações dos seguidores. Optou por finas e leves mantas, encontradas em qualquer supermercado, que seriam costuradas umas nas outras, conforme a necessidade da aventura. Um frio maior aumentaria a quantidade de mantas, o ar que ficaria entre elas, ajudaria na proteção. Essa era uma adaptação sua da teoria das camadas, que diz que é muito mais eficiente combater o frio usando várias camadas leves de vestimenta, do que apenas um pesado casaco. Para climas extremos, como seu corpo e o de Liotta ficariam entrelaçados, faltaria proteger bem suas costas e a parte da frente do tronco de sua esposa. Para isso encomendou de uma costureira um grosso colete duplo, feito de feltro e que só seria utilizado quando as temperaturas fossem negativas.
Mas ele também não queria utilizar os tradicionais isolantes térmicos que protegem contra o frio que vem do chão, tapetes retangulares feitos de substâncias plásticas normalmente pintados em cores berrantes. Tudo estudado cientificamente e com comprovação atestada, mas que fugia do espírito da aventura. Para cumprir essa missão encontrou na feirinha da Praça Saint-Germain uma barraca que vendia artesanato de índios nicaraguenses, lá adquiriu um grosso tapete circular de palha. A peça era pesada e difícil de carregar, pois não podia ser dobrada. Além disso, o diâmetro era bem menor do que sua altura, o que obrigaria o casal a encolher-se em posição fetal.
O peso e a dificuldade de transporte continuaram sendo um empecilho, mas a posição que o tapete os obrigava a ficar, após um melhor exame, combinava perfeitamente com o espírito do projeto, e também com o tipo de imagens que desejava produzir. Liotta prosseguia seu trabalho de divulgação do canal, que agora já contava com quase 2500 seguidores, os primeiros comentários se dividiam entre ofensas e sugestões de lugares onde poderiam experimentar um frio verdadeiro. As ofensas, por sua vez, eram divididas entre simples palavrões acompanhados por frases como “Vão arrumar o que fazer.”, mas havia também um outro tipo, normalmente longos comentários cheios de referências científicas sobre o perigo do aquecimento global, e que culpavam o casal por tentar divulgar exatamente o oposto do que estava acontecendo, e que iria condenar o futuro da humanidade a uma vida miserável.
Os dois discutiram sobre o que deveriam fazer com esse tipo de comentário, principalmente aqueles que não vinham acompanhados por palavras ofensivas. Então, em conjunto, escreveram um texto padrão que seria enviado aos críticos:
O frio é uma realidade tão ou mais sólida do que o aquecimento global. Combatê-lo não melhorará a situação de nosso planeta, pelo contrário, ele é um dos sinais de que a vida continua se renovando. Com nossos corpos, sobreviveremos a ele, com a palha e a lã, nos protegeremos das sombras e suas consequências. E assim é a vida, para cada foco de luz, sua respectiva sombra.
No momento em que Liotta ia enviar o texto para alguns desses seguidores, Hildebrand a impediu. Não tinham satisfações a dar, e depois, se o canal crescesse e os críticos se multiplicassem, passariam o tempo inteiro respondendo? Não valia a pena. O canal não precisava de longas raízes, sólidas justificativas, ou coisas do gênero. Ele apenas flutuaria sobre um oceano, como, aliás, todo o resto.
Essa última frase atingiu Liotta como um raio escondido atrás de um dia de sol. Flutuar, esse era seu destino, nada de lemes, escolhas, apenas existir para que alguma máquina pudesse funcionar. O que seriam das correntezas se nada tivessem para arrastar? Ela pediu licença, voltaria em breve. Caminhou pelas rua buscando rostos, encontrou-os de todos os formatos e estados de conservação, apesar das diferenças todos possuíam algo em comum, uma inocência pairando sobre os olhos, todos certos de que decidiam os próprios passos, todos ignorando as correntezas. Ela suspirou fundo e olhou para cima, uma nuvem movia-se soprada pelo vento. Quando abaixou a cabeça um jovem sorria. Liotta teve vontade de gritar.

Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.
q