Coluna Guido Viaro: O Quadrado/Capítulo 5

Ilustração: Munir Aluibaidi

Assim que encerraram a transmissão voltaram para um hotel previamente reservado em Saint-German-en-Laye, ambos estavam exaustos demais para falar. Hildebrand percebeu que as horas de sono que dormira eram como travessas de prata cobertas por abafadores, mas que não escondem qualquer comida, sentia-se mais cansado do que se tivesse passado a noite em pé. Seu corpo doía, tinha cãibras nas panturrilhas e um odor que exalava de sua boca e que, se o incomodava, imaginava o que não faria aos outros. Por isso quase não abriu a boca, e sentiu alívio quando escutou o ronco nervoso de Liotta.       
                                  
Ela dormiu por seis horas, enquanto ele flutuava entre pensamentos pessimistas, expectativas, e um cochilo que era como o casco de um navio, que um instante atrás está submerso e no outro, aceso, assistindo ao teto do quarto, e tentando arrancar conclusões filosóficas dos defeitos da pintura. Ela finalmente se levantou e foi ao banheiro, ele percebeu que era hora de interromper a navegação e permanecer acordado. Para sua surpresa ela saiu do banheiro sorrindo e o beijou na boca. Ele tomou cuidado para que nenhuma substância que viesse de seu interior compusesse esse beijo.
 
“Sucesso total, e eu que te achava um idiota, agora dou o braço a torcer, meu pequeno Einstein de Devonshire.”
 
Hildebrand ficou feliz, mas em seguida lembrou-se das confissões que ela fizera, e também daquilo que falara apenas para os seguidores, e particularmente de um comentário deles: “ele sabe do africano?”, seria o mesmo africano que empurrava o carrinho de bebê da filha de Liotta em seu casamento? Sim, essa alegria poderia não passar de dissimulação.
 
Quando um dissimulado suspeita que agem com ele da mesma maneira, primeiro ele condena, depois investiga. Ela silenciou, com o tablete e o celular na mão, deveria estar criando artimanhas para escapar do conteúdo de suas confissões, citava números, os somava. Ele estava atento a qualquer truque, sabia que se não tirasse olhos e ouvidos de cima dela, iria descobrir a localização da pomba branca que ela estava prestes a tirar da cartola                                                                                        
Meia hora depois ela o surpreendeu com um número:
 
“Aproximadamente quatro mil e quinhentos euros, digo aproximadamente porque são valores em várias moedas diferentes. Mais da metade das doações vieram da Ásia, especialmente do Japão. E algo que talvez seja ainda mais importante, o número de seguidores dobrou, quase doze mil.”  
                                                                                                             
Hildebrand arregalou os olhos, o lodaçal fedorento por onde remava o barco de sua vida, subitamente se transformou em água cristalina onde pássaros coloridos vinham matar a sede. Os números estavam bem além de suas expectativas, principalmente para uma primeira vez onde vários erros tinham sido cometidos. Diante do sorriso luminoso de Liotta, decidiu que engoliria as próprias mágoas, e seus intestinos que se ocupassem com elas. Retribuiu sorrisos e entusiasmos, pediu para ver os números e desviou olhares quando o que havia sido escrito pelos seguidores aparecia na tela. Aquele dinheiro era mais do que suficiente para irem até a Noruega, talvez se fossem econômicos, pudessem até comprar as passagens para o destino seguinte no hemisfério sul.                                                                                    
 
Ela sorriu novamente e disse que as boas notícias ainda não haviam acabado, ele imediatamente lembrou-se de alguns programas que assistira na Inglaterra quando era criança, e que uma família pobre recebia, em doses calculadas, vários tipos de ajuda, até que no final, quando a maior das bondades chegasse, os canais lacrimosos de todos estivessem devidamente lubrificados. Mas ele não chorou, ao contrário, escutou às boas novas com um sorriso que só fez ganhar tamanho. Uma grande empresa francesa de equipamentos para acampamento e viagem sugeria uma reunião para que pudessem escutar uma proposta. O encontro seria no dia seguinte pela manhã, na sede da empresa no bairro de negócios de Paris, La Défense.                                                                                                        
Depois de revelada a surpresa, Hildebrand teceu todas as suposições possíveis que seu cérebro foi capaz de construir, mas nenhuma delas possuía a força da verdade. Elas invadiram seu sono, espalhando incertezas que começaram no instante em que adormeceu até quando caminhavam até a sala do diretor da empresa.                                                                         
 
O jovem executivo, vestido sem cerimônia e com a barba por fazer, os recebeu com abraços, distribuiu sorrisos e elogios que quase fizeram Hildebrand interrompê-lo para saber o que exatamente desejava deles. Mas ele se conteve e respondeu a tudo com sorrisos protocolares e palavras plastificadas que nem ao menos eram ouvidas pelo homem. Terminados os elogios começou a falar de sua empresa e mostrar os materiais que produziam. Depois de meia hora, quando o tédio começava a se apossar do trio, o moderno executivo interrompeu a explicação:
 
“A proposta: todas as passagens aéreas que precisarem para seus deslocamentos, mais uma ajuda de custo de mil euros mensais. Em troca vocês usam nossos equipamentos e divulgam nossa marca.”     
                             
Disse isso e estendeu a mão para Hildebrand, esperando que fosse imediatamente apertada. Ele hesitou, aquilo parecia interessante e não queria descartar, mas a pressa do homem soou um pouco arrogante. A mão permanecia intocada, com os cinco dedos apontando para cima, até que Liotta tomou uma decisão e a apertou. Nesse instante o sorriso que estava no rosto de Hildebrand transferiu-se para o do jovem executivo, que interrompeu o silêncio:
 
“Vocês acabam de fazer um excelente negócio, vou encaminhá-los para o setor de contratos, em meia hora os papéis devem estar prontos.”
                   
Hildebrand titubeou e, com os lábios pouco abertos murmurou:
                   
“Meia hora, isso é importante, preciso de meia hora.”
                                      
Então puxou a esposa pela mão enquanto transferia com os olhos, para ela, aquilo que parecia estar sentindo. Desceram o elevador em silêncio, o mundo futurista que os esperava parecia ser feito para longos espaços e duradouros suspiros. Um mundo pincelado de solidão, que não se importaria com o desaparecimento de qualquer ser humano, e talvez nem mesmo com o sumiço de todo o gênero humano. Parecia que aquelas avenidas longas e prédios metalizados continuariam executando suas funções independente de presenças ou consciências que serviriam de testemunha.        
                                                                                                     
O silêncio os acompanhou até atravessarem a grande avenida, e se sentarem em cubos de madeira sem encosto, que possibilitavam apenas o descanso temporário para as pernas, não permitindo momentos de contemplação suficientes para questionamentos sobre a arquitetura, ou as razões que a levaram a existir.  
 
“Quem te deu o direito de decidir por mim?”                                      
“Por que, você não acha que foi um bom negócio, todas as passagens e mais mil euros para as despesas?”                                                               
“Você não respondeu minha pergunta…”                                  
“Baixe o tom de voz se quiser continuar essa conversa.”                    
“Eu iria negociar, a gente podia arrancar muito mais, mil euros não são nada. E depois, vamos ter de usar os materiais deles, vamos mergulhar na vala comum, mais um canal fadado ao fracasso… eu sabia… sabia…”
“Sabia o quê?”                                                                                    
“É melhor eu nem falar, deixa para lá…”                                   
“Não, agora você vai falar…”   
 
Liotta segurou-o pelo colarinho e começou a apertar.    
                               
“Eu sabia que fazer negócio com puta dá nisso.”   
 
Para se desvencilhar, ele a empurra e ela cai no chão. Ela se levanta rapidamente e começa a agredi-lo com tapas e chutes.    
 
“Você não sabe o que é passar fome, seu imbecil mimado, inútil, teve de tudo e conseguiu jogar fora, um fracassado. Uma alma podre e que contamina com sua podridão tudo o que há em volta.”                                         
“Puta, puta e puta, suja, podre como tua filha, la-can la-can la-can.”
 
Hildebrand imitava a voz e a expressão facial da filha falecida de Liotta. Ela tentava mordê-lo e atingi-lo com qualquer coisa que estivesse ao seu alcance, com uma pedra conseguiu abrir seu supercílio, mas não sossegou e continuou acertando socos e mordendo seus braços. Enquanto isso a chuva despencou sobre aquelas avenidas solitárias, fazendo com que os prédios envidraçados mergulhassem cada vez mais profundamente em uma bruma cinzenta, que transformava toda aquela paisagem modernista em um retalho de sonho, ou naquela substância estranha que deve existir antes dos nascimentos e após as mortes. Para aquele mundo de acrílico eles não mais existiam, eram dois pontos molhados plantados em meio ao vapor indeciso, que tudo engolia. 
                                                                                 
Mas para ambos, o ódio era matéria vital, ele mantinha aceso os pavios, gerava calor, luz, e suas respectivas sombras. Os braços de Hildebrand estavam mordidos e o sangue escorria até seu olho direito. Ele abreviou o próprio sofrimento com um soco bem dado, entre o nariz e a boca, e que fez Liotta cair imediatamente, desmaiada. A chuva ganhou corpo e transformou-se em um temporal. Sua esposa inconsciente jazia abandonada, sendo lentamente encoberta pela água que, em seu pensamento, poderia transformar-se em terra, e fazer com que nunca mais a visse.    Abraçou-a, e fez com que recobrasse a consciência.                                    
 
“Desculpe, desculpe… eu sou uma porcaria… desculpe… um fracasso, você tá certa, me perdoe, eu errei… você é tudo que tenho… não vá embora.”                                                                                                                  

Ele enfiou a cabeça em seu colo. As lágrimas gritadas se confundiam com a chuva, mas os uivos de dor sobreviviam,eforam eles que fizeram com que ela falasse:                                                                                          
 
“Você não conhece a fome… só fiz porque passava fome.”       
 
Ele se deitou ao lado dela e entrelaçou com ela uma das pernas, ficando em uma posição parecida com a que haviam treinado para combaterem o frio. As grandes gotas ganharam ainda mais força, transformando a praça de granito em um oceano sem vida, onde dois náufragos tentam encontrar algum refúgio temporário entre dois abismos.                  
 
Mas como não havia saída, e os náufragos sabiam que seus ossos se fundiriam ao granito da praça, Hildebrand decidiu ficar em pé, deu a mão a Liotta e ambos caminharam em busca de abrigo, um abrigo que não os protegeria da água pois não havia maneira de ficarem ainda mais molhados. No banheiro de um café enxugaram os cabelos e secaram com papel higiênico os ferimentos que ambos causaram em seus parceiros. O relógio de Hildebrand estava nublado como o alto das montanhas nas antigas pinturas orientais, mas os ponteiros ainda se mexiam, e informavam que todo o acontecido havia consumido exatamente a meia hora que o executivo havia pedido para prepararem o contrato.                                           
 
Voltaram ao prédio da empresa que os patrocinaria, no elevador tinham mãos dadas e dedos entrelaçados, dúvidas e certezas fundidas em um composto incandescente que era tanto sombra quanto luz, mas que parecia possuir a capacidade de mantê-los unidos. Talvez condenados a uma união que era maior que ambos. E parecia que cada um deles havia sido informado sobre essa sentença, tendo acolhido a decisão com dignidade.  
                                                                                                            
Ao contrário do executivo, o encarregado do contrato era um homem que não desperdiçava sorrisos. Cabelos ralos bem aparados e um nariz além do limite do aceitável que servia de suporte para um óculos redondo com armação alaranjada, talvez a cor exótica fosse a única extravagância que se permitira. Ele pediu os documentos de ambos e para surpresa de Hildebrand, Liotta entregou-lhe uma carteira de identidade francesa. Ele olhou para o outro lado e fingiu não perceber. O homem então atacou o computador com olhos protocolares, mas que, na visão de Hildebrand, poderiam carregar alguma mágoa: “Mais desocupados ganhando dinheiro para não fazer nada.”, foi a frase que imaginou que estivesse circulando entre aquelas orelhas. Enquanto isso, entre suas próprias orelhas nascia outra frase: “Mais um coitado que odeia a própria vida e ainda mais aqueles que são diferentes dele.”                                                                                        
 
Os documentos foram impressos e o homem pediu que lessem, enquanto isso vasculhava o próprio celular, talvez buscando a emoção que desaparecera de sua vida cotidiana. Eles assinaram e Hildebrand levantou uma das mãos para apertar a do funcionário, ele fingiu não perceber e os encaminhou para outro departamento onde conheceriam os equipamentos produzidos pela empresa e que, de agora em diante, seriam os representantes. Foram recebidos por um jovem que parecia o exato oposto do outro funcionário, simpático, cheio de energias, e entusiasta da causa que escolhera. Gastou um bom tempo falando de sacos de dormir, o casal não queria interromper sua demonstração por causa dos sorrisos, então no final da apresentação Hildebrand explicou-lhe o conceito do canal, o calor dos corpos, iriam usar apenas cobertores especiais e isolantes térmicos, além das roupas para frio.    
                                                                      
O jovem adorou a ideia e imediatamente se tornou mais um de seus seguidores, e sem reclamar, separou todo o material que precisariam. Cobertores de alta tecnologia, impermeáveis, isolantes térmicos com duas camadas, sendo uma delas inflável, e que além de protegerem contra a perdas de calor, eram extremamente confortáveis. Depois vieram luvas, toucas, casacos, calças e meias. Liotta teve a ideia de fazerem uma pequena live, mostrando a entrega dos equipamentos e informando aos seguidores sobre o patrocínio da empresa de equipamentos para acampamentos. O jovem funcionário consultou um superior que o autorizou a participar das imagens, ele entregava ao casal uma pilha de equipamentos e desejava boa sorte entre abraços e sorrisos, quatrocentas e dezessete pessoas estavam on line.   
                                                                                                                   
<< Parabéns, desse jeito não há frio que resista.                                  
<<Os vigaristas conseguiram o que queriam.                                      
<< Saudações de Israel.                                                                                 
 
Hildebrand fez sinal para que encurtassem o vídeo. Eles combinaram com o funcionário de buscar mais tarde os equipamentos, passariam em Saint-Germain-en-Laye, onde fechariam a conta do hotel e então embarcariam naquela mesma noite para a Noruega. Assim que desocuparam o quarto, perceberam que precisariam se livrar dos antigos cobertores e do tapete indígena. Carregaram os pertences até um terreno isolado e Hildebrand pediu a Liotta que preparasse o celular, pois ele iria entrar ao vivo:  
                                                                                                    
“Esse é o nosso passado. Precisamos estar sempre prontos para deixá-lo para trás. Um novo mundo nos abre as portas, e ele é feito da mais avançada tecnologia. Os novos passos serão dados sobre os esqueletos de nossas velhas esperanças.”                                                                              
 
Disse isso e abaixou-se na direção do tapete de palha, Liotta teve dificuldade em enquadrá-lo, mas quando conseguiu as chamas consumiam o tapete e tudo o que estava sobre ele. Então ele pegou o celular da mão dela e continuou filmando o amarelo do fogo e a fumaça que se erguia. Enquanto isso, sua voz em off, completava o que os seguidores       assistiam:              
 
“Nosso calor ardendo, desafiando a neve, que intimidada, só poderá derreter. Estamos embarcando para Tromso, Noruega, depois iremos ao hemisfério sul, ao encontro do inverno, uma bola de humanidade dividida em dois sexos, e que lutará contra a imensidão gelada, uma eternidade que é tudo aquilo que não somos. Consciências que flutuam no oceano…”
 
Liotta, que monitorava no tablete a interação dos seguidores, fez sinal de negativo. Mesmo assim ele prosseguiu:
 
“…dores arrancadas do nada e instalada em almas, que buscam corpos e lágrimas para doer. Essa nossa aventura pode parecer banal, mesmo imbecil, um caça-níqueis, uma ratoeira armada dentro dessa floresta digital. Mas eu advirto, há camadas menos evidentes, escondidas entre obviedades, e que poucos de vocês conseguirão perceber. O ferro em brasa arde, sua brasa é feita de alma, e a alma, ao mesmo tempo, é feita de brasa.”    
                                                                                                               
Depois disso o celular focalizou a transformação dos últimos objetos que estavam sobre o tapete em uma substância negra e frágil que era carregada pela brisa e dançava pelos ares por alguns instantes até virar nada. Sem se despedir, Hildebrand encerrou a transmissão, e o casal embarcou para Paris onde ainda naquela noite pegariam o trem para a Noruega.       
                                                                                                  
Em Paris, o jovem simpático que os atendera havia colocado todo o equipamento que necessitavam em duas grandes mochilas. A noite estava chuvosa e as luzes amarelas se espalhavam pelo asfalto molhado, sinalizando que aquele mundo era algo diferente daquele outro, onde as consciências se reconhecem como entes individuais, e perguntam sobre significados. O mundo dos letreiros coloridos, dos ruídos, e das poças de água, era outro, era o universo sem fim pedindo para que a consciência nele mergulhasse, e dizendo: “Pode vir, mergulhe sem medo, o risco de saltar do trampolim, ou permanecer para sempre nele, é o mesmo.”                               
 
O táxi até a Gare du Nord demorou, muitas ruas engarrafadas, uma caixa de lata espremida entre desejos parecidos. Hildebrand misturava dentro de si porções parecidas de ansiedade e melancolia. A cidade era uma fera da qual preferia manter distância. E ela urrava com suas cores, sombras e ruídos. Seu mundo era composto por um desconhecido (o motorista do táxi), que nesse instante era mais importante para ele do que todas as outras pessoas que conhecia, e de Liotta, outra desconhecida, com quem compartilhava uma faixa estreita de sua vida. Afora isso, só podia contar consigo mesmo, de certa forma, o terceiro desconhecido daquele veículo.      
                                                                                                 
No porta-malas estavam as duas mochilas carregadas com equipamentos, aquele material representava a sobrevivência física de dois dos três desconhecidos daquele carro. Liotta pareceu perceber o que se passava entre aquelas orelhas, e escorria na forma de sombras e cores escuras pelos olhos de seu marido, por isso entrelaçou os dedos aos dele e fez com que deitasse a cabeça em seu ombro, ao mesmo tempo em que fechava os olhos para que nenhuma imagem vinda de fora pudesse influenciar seu estado de espírito que começava a perder os brilhos. A chegada à estação foi um alívio  , ainda teriam quarenta minutos antes da partida, mas o clima de agitação e os sorrisos de expectativa eram escadarias íngremes para estados de espírito depressivos. Além disso, os grandes espaços transformavam todos em ninguém, cada um mergulhado em sua minúscula bolha, todas flutuando sobre o imenso telhado envidraçado.    
                                                                                               
Liotta afastou-se do marido, e sem que ele percebesse entrou ao vivo para os seguidores anunciando que estavam de partida para a Noruega e convidando todos para assistirem à noite no frio, que iria acontecer dali a seis dias. Aproximou-se de Hildebrand falando para o celular, quando ele percebeu o que estava acontecendo não conseguiu disfarçar a irritação mas conseguiu preservar um sorriso feito da mais artificial das substâncias. Ele achava que essas entradas ao vivo deveriam ser raras, porque senão tudo se vulgarizava. Assim que ela desligou o celular estava pronto para repreendê-la com vigor, mas foi destituído de seus desejos pelo sorriso de Liotta, que contava que um gentil seguidor havia enviado 50 euros para que eles jantassem na estação, pois, segundo ele, o preço das refeições no trem eram exorbitantes.  
                                                                                                    
Ambos comeram dois vivos kebabs acompanhados por um mar de batatas fritas e refrigerantes coloridos, o que não consumiu nem metade da doação. A refeição serviu para renovar as energias e espantar qualquer pensamento melancólico. O trem, limpo e silencioso, foi um convite, quase obrigatório, a um sono imediato. Acordaram em Oslo, onde tiveram de trocar de trem, enquanto assistiam ao dia amanhecer. Mas essa cerimônia de transição foi um nascimento, o ovo perdia as cascas, e dentro dele um bico solitário lutava para descobrir as novidades que o novo universo lhe reservava.                                                                                                                   
No caminho até Tromso permaneceram acordados e atentos a qualquer pequeno traço de neve esquecido pelo inverno. Para felicidade do casal, pouco antes de chegarem, descobriram frágeis bordas espalhadas ao longo da ferrovia, pequenos contornos esbranquiçados que provavelmente desapareceriam em uma hora.  
                                                                              
Sabiam que a Noruega era conhecida por ser um país caro, por isso escolheram ficar em um hostel com quartos compartilhados. Guardariam os eletrônicos e objetos de valor no cofre, e teriam quase uma semana para conhecerem a cidade e encontrarem um lugar onde passariam a noite gelada. Assim que deixaram o hostel perceberam a diferença de temperatura em relação à França, um friozinho de menos de dez graus, que não incomodava os locais, confortáveis em suas camisetas e bermudas. Estavam na cidade que era conhecida como a capital do Ártico, um lugar acolhedor feito majoritariamente em madeira e situado ao lado de uma baía tranquila. Depois de caminharem um pouco descobriram um teleférico que levava ao topo de uma montanha que prometia uma grande vista de toda a região. O ingresso era caro e Liotta sugeriu que entrassem ao vivo e sugerissem, sem pedir, se poderia haver doadores que financiassem os bilhetes. Hildebrand foi contra e despejou sobre ela um pouco da irritação represada em sua última entrada ao vivo.    
                                                    
“Isso aqui não pode se tornar vulgar, não podemos nos prostituir.”              
 
Ela escutou a frase em silêncio, engoliu a dor que sentia, mas percebeu que enquanto durasse sua relação com ele, em momentos de irritação e confronto, aquilo sempre seria usado contra ela. Então, ainda com a voz embargada, apenas apontou para uma flecha que indicava que havia um caminho a pé para o alto da montanha, uma hora de caminhada. Ele percebeu que ela estava magoada, mas não quis pedir desculpas pois aquilo apenas atiraria mais gasolina na fogueira. Puxou-a pela mão e comprou os bilhetes. 
                                                                                        
A bela paisagem possibilitava a vista de toda a baía e até de algumas ilhas vizinhas. Quando chegaram no topo descobriram uma vista ainda mais ampla, e ficaram sabendo que era ali, durante o inverno, que se reuniam muitos interessados em ver as famosas auroras boreais. A beleza conseguiu derreter a mágoa de Liotta, que escolheu o lugar onde iriam passar a noite gelada. Era um gramado não muito longe de um abrigo para turistas. Eles também perceberam que a temperatura no alto do morro era consideravelmente menor do que na cidade. Hildebrand tinha outra sugestão de lugar, mas preferiu se calar e respondê-la apenas com um “Perfeito.”  
                                                                                                                
Foi dele a sugestão para que entrassem ao vivo, informando aos seguidores sobre o local em aconteceria o evento. Em outras ocasiões, por segurança, as informações poderiam ser mais vagas, mas na Noruega não haveria perigo. Antes de obedecê-lo, ela refletiu por alguns instantes:                        
 
“Não acha que iremos nos prostituir?”                                                          
 
Então foi a vez dele de refletir em busca das palavras exatas e que evitassem qualquer possibilidade de confronto:                                                  
 
“Há momentos em que só uma prostituta pode salvar o mundo.”                 
 
Ela respondeu com um sorriso amarelo, que continha traços de raiva misturados a uma vontade de não brigar. Novamente engoliu grandes quantidades de saliva, apontou o celular na direção do marido, e com o polegar fez sinal de positivo.
                                                                                        
Ele foi pego de surpresa e gaguejou o que queria dizer, então pediu para que ela mostrasse a linda paisagem enquanto, em off , terminava de passar as informações práticas. Ela sinalizou que o número de seguidores não parava de crescer, o que o obrigou a continuar falando:                                 
 
“Duas almas entrelaçadas, e que lutarão contra as intempéries do universo. Fagulhas de consciência separadas da eternidade e que tentam evitar perder suas individualidades. Almas que gritam para continuarem existindo…”                                                                                                                  
Liotta fez sinal de negativo, ele gaguejou e perdeu o fio da meada. Ela então fez sinal para que ele terminasse a transmissão imediatamente. Ainda repetiu mais uma vez a data e horário e então ela desligou a câmera.             
 
“O que você pretende com esse papo pseudo filosófico? O que quer, destruir tudo? Cada vez que começa com essa bobagens os seguidores desaparecem, e os poucos que ficam são idiotas com uma conversa ainda mais furada que a tua. Você quer me fazer de palhaça? Ou você realmente acredita no que fala, o que seria ainda pior.”
 
Hildebrand contemplou a fogueira de ódio, sabia que aquelas chamas vigorosas não se originaram apenas de suas palavras. Os amarelos se misturavam a vermelhos e dançavam, tudo escorria pelos olhos de sua mulher, cujo corpo inteiro havia sido tomado pela fúria, os músculos tensos pareciam elásticos prontos para desferir golpes. Ele preferiu dar um passo para trás, abaixar a cabeça e vasculhar as pedras do chão em busca de uma saída.   
                                                                                                                    
“Você tem toda razão. Sou esse emaranhado de ideias sem grandeza embaladas em pacotes caros. Sempre quis construir um legado que se estendesse além dos limites de minha vida. Logo percebi que não tinha talento, mas não era só isso, talvez me faltasse algo mais importante do que talento. Faltava-me vontade. Um elo frágil em uma corrente enferrujada, sempre desisti quando o desafio impunha a primeira barreira, acumulei muitas meias vitórias que somadas constroem uma grande derrota…”
 
Ele embargou a voz, não sabia mais se isso era uma técnica clássica para dissuadir detratores irritados ou, de fato, emocionara-se com o que havia dito.  
                                                                                                           
“…o que sobrou-me foi a meia idade, a pobreza, mas como não há felicidades imortais ou males que durem para sempre, as correntezas da vida me trouxeram você, o único ser que tenho certeza da existência, a única pessoa que acredito que não desaparecerá dentro de algum sistema digital. Você é real, é vida.”
                                                                                        
Terminou o discurso e explodiu em um oceano de lágrimas e soluços, Liotta, sem saber exatamente como agir, agiu como qualquer um faria, abraçou sua cabeça e o consolou até que os soluços amainassem. Mas as últimas palavras de Hildebrand ainda soavam em seus ouvidos: “…a única que não desaparecerá…”. Sabia que não poderia garantir isso. Desconfiava do comportamento do marido, uma conveniente explosão de choro em um momento propício, um ato de mestre para um manipulador, mas, ao mesmo tempo, se existisse uma gota de verdade naquilo que dissera, ele seria como um espelho que refletia suas dores, cada um deles enxergando suas fraquezas no parceiro, e talvez fingindo que pertenciam apenas ao outro.                                                                                                   
A dúvida fez com que a velocidade com que acariciava seus cabelos diminuísse, imaginou-se sendo acariciada por Hildebrand, o espelho mostrando aquilo que desejava negar, e que de certa forma, constava no discurso dele aos seguidores: eram apenas uma pessoa. Um ser incompleto que encontrara a contraparte, mas que apesar disso permanecia incompleto, como um homem que, por ser manco das duas pernas, consegue caminhar com relativa harmonia.                                                                                 
 
Então seus dedos pararam, ela tinha os olhos úmidos: Caminhariam até onde? Vindos de qual direção? Tudo parecia um imenso nevoeiro onde qualquer existência não passava de um contorno descolorido prestes a ser engolido pela bruma. Mas essa confusão sensorial invadia seu corpo, amolecendo quaisquer certezas: A que servia tudo? E mesmo a desistência, não seria apenas outra maneira de perder-se dentro do desconhecido?



Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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