
Um homem entre livros. Cansado de ser ele mesmo. De ser outros. Sonha em ser todos. Frustrado, levanta a tampa do teclado do piano, aperta duas teclas brancas, três pretas e finalmente passeia com o cotovelo pelos sons angustiados.   
     
Na parede encontra uma cena bucólica, na gravura, homens semeiam a terra e são espalhados por camadas de perspectiva que fazem os últimos parecerem a chama da vela que originou as grandes sombras. O pasto perde seu verde quando encontra o sol poente, que distribui dourados sem conseguir destruir o azul real, intermediário entre uma noite sem convicções e um dia que não desistiu de si mesmo. Pairando sobre as cores, uma pequena ausência solitária poderia ser um esquecimento do artista ou defeito de impressão, se não fosse por duas asas tão escuras quanto o resto do corpo. Apesar da paz melancólica que traz, aquele pássaro é uma consciência, que da altura em que está, consegue observar todas as outras. O azul cheio de uma beleza orgulhosa parece pesar sobre o corpo da ave, mas ela reage, todos reagimos, contra as forças maiores. O pequeno chora, depois das lágrimas secas julga-se maior que o gigante, mas a luta nunca acontece, e é assim que se constrói o orgulho dos pássaros e dos homens.
Os trabalhadores que lavram a campina olham para o céu sem enxergar o pássaro, depois voltam à lide agrícola, enxada, suor, mãos sujas de terra. Com a ponta da faca retiram a terra debaixo das unhas. Sentem as pernas cansadas e enquanto bebem água percebem a quantidade e a consistência dos calos que tem nas mãos.     
As pontas simbólicas da gravura amarram-se formando um pacote fechado, que esconde formas e cores. Os olhos do observador perdem o interesse. A obra de arte passa a ser uma mancha na parede, mas há outras espalhadas pelo escritório. Nas estantes, coleções encadernadas de livros são uma esquina vermelha que desemboca em uma avenida azulada, em outro canto as manchas saltitam entre tonalidades. Cada livro um grito. O homem , silencioso, acaricia as frontes com os dedos abertos, não quer escutar ou responder.  Toda palavra soterra outras não ditas. No pequeno busto de Sócrates procura a serenidade diante do inevitável. Os olhos do sábio parecem cansados de sua própria lógica, não oferecem solidariedade. A boca entreaberta soprou o último verbo e congelou-se em mármore.       
                              
O lustre da Boêmia engole as luzes de um dia envelhecido, dissolve brilhos que enganam-se em reflexos internos para depois despejar falsos diamantes sobre as lombadas dos livros. Três dedos tamborilam a madeira escura de uma mesa. A garganta manifesta-se, inquieta, não sabe exatamente de quem reclamar. A hora é subtraída da eternidade e transformada em solene sinal sonoro. 
                                                                                                                          
O interruptor amarela o escritório, a luz artificial tira das sombras um pássaro de olhar austero, estampado sobre um vaso de Sèvres.  Impaciente, o homem percorre sua biblioteca, sente o resto de calor deixado pelo sol nas capas encadernadas em couro, depois espalha cinco livros sobre a mesa, tanto autores como títulos seus velhos conhecidos. Folheia dúvidas, determinação, ambição, poesia, segura entre o polegar e o indicador uma página aleatória e sente o desespero do personagem esquentar-lhe os dedos, depois confere  o texto, um suicida se despedia da família em uma carta.   
Levanta-se angustiado, caminha por um tapete Aubusson, o riacho atravessa um bosque e no primeiro plano há uma pequena ponte de madeira rodeada por canteiros de girassóis. Na paisagem não há nenhum homem, nem ao menos um animal, quem pisa sente-se o desbravador daquela paisagem, e traz consigo uma solidão artificial que está pronta para tornar-se real.  
Sentado na grande mesa do centro do escritório, observa suas severas estantes feitas de madeira que parece petrificada, e que acomodam duas mil vozes prontas para serem ouvidas assim que se abra um livro. Ele sente-se oprimido por tantos gritos, todos querendo espalhar suas verdades definitivas, mesmo que venham disfarçadas de dúvidas   . O castiçal em bronze tem cinco espaços vazios, que tenta preencher com os dedos sem encontrar vestígio develas derretidas.     
O verão espalha-se por sua testa, enxuga a mão molhada na cadeira estofada. O grito abafado acontece, quase mudo, feito para não ultrapassar os limites do escritório. O punho cerra-se, e no meio do caminho desiste de acertar a mesa. Ele queria possuir todas as consciências, enxergar com infinitos olhos e falar com uma só boca, a sua. Todos os livros soam-lhe fraudes, peças advocatícias que tentam encontrar culpados e fingir inocências, e o escritor um condenado amarrado a uma bola de ferro chamada consciência individual.      
Foi por isso que, ao longo de anos, foi montando seu escritório, comprando peças raras, móveis confortáveis e uma biblioteca onde pudesse encontrar os mais valorosos retalhos do pensamento humano. Preparava um ambiente onde pudesse encontrar todas as condições favoráveis que precisava para numa primeira etapa, tentar entender os pontos de vista alheios aos seus, para depois se tornar o homem capaz de ser todos.
Caminhava agoniado sobre o tapete, pisava o riacho e os girassóis, esquecera-se da ponte, e daquele ponto de vista. As luzes do lustre espalhavam pelas paredes cinco sombras angustiadas, que moviam os braços e davam passos maiores que o necessário. Eram outros acontecimentos que estavam passando despercebidos. Até que a brisa soprou o lustre e jogou-o de frente a uma de suas sombras. Logo descobriu as outras, escondidas nos cantos.  
Odiou-as, ser cinco era o mesmo que ser um ou nenhum, ele queria ser todos, compreender todos e tudo, engolir cada emoção possível e degluti-la sem esforço. Depois de realizar sua conquista ensinaria aos homens como era ser todos, o mundo seria composto por um grande organismo vivo dividido em bilhões de células independentes. 
Uma caixa de madeira escura e envernizada está pendurada na parede. Dentro dela engrenagens soam como ossos estalando. Uma pequenina porta se abre e, por um instante, permanece vazia. O ruído mecânico está no auge. O homem observa a cena com olhos melados por desencanto. Um passarinho fingindo-se de vivo é arrastado para fora do buraco e grita a passagem do tempo. O homem permanece imóvel, sua boca está aberta, tem olhos arregalados. Talvez esteja tentando entender o tempo, ou então desesperado porque afoga-se nesse entendimento.      
Quando fechou a boca, construiu no rosto uma expressão fácil de ser lida. Os pulmões arfavam, as pernas corriam de um lado para outro, a cabeça avermelhada vasculhava cantos em busca de algo que pudesse resolver a situação. Quando encontrou a porcelana de Sèvres com o pássaro pintado, levantou-a acima da cabeça e com toda força estilhaçou-a no chão. O silêncio só não foi completo porque as centenas de cacos pareciam ter ganho vida, movimentavam-se em círculos  ensaiados.   
O rosto agora estava enxuto de emoções, talvez a boca indicasse uma ponta de arrependimento, mas essas eram observações superficiais, camadas de ira poderiam ser vistas por observadores mais atentos.  Iria destruir o escritório que construira durante tantos anos. Abaixou-se e juntou os cacos do jarro. Descobriu restos de seu reflexo na porcelana esbranquiçada. Encontrou frações do pássaro, tentou emendar corpo com cabeça, mas algo havia se perdido para sempre. Arrependido, deitou-se ao lado do vaso destruído, enquanto a noite avançava com violência sobre a fraca iluminação artificial.    
De seu novo ponto de vista, o homem via alguns livros e estatuetas, enxergava a lareira, onde estava o brasão de sua família e sobre a qual se cruzavam duas espadas medievais. Sereno, permaneceu assim até que a noite de verão espalhou pelo escritório o cheiro que antecipa a chuva. A penumbra criava sombras que desenhavam objetos que não lhe pertenciam. A imensidão do silêncio espalhava-se por todo seu mundo, e perdeu-se quando a portinhola se abriu e o pássaro sem vida veio lhe falar da passagem do tempo. Quando o vento terminou de abrir uma das janelas eduas gotas de garoa molharam o tapete, ele dormia. 
Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro
