Coturno 36 – Patricia Porto

 
 
  Pediu ao padrasto coturnos que coubessem nos pés 36. Ele logo soltou em forma de berro: “E tu é homem? Vai usar coturno pra quê?” Não tinha resposta. Era astuta, mas era ainda mais moça que astuta. Colocou o velho tênis e foi para o trabalho. Mas meses depois lembrou do assunto: “não tem como me arrumar um coturno 36?” O padrasto bateu na mesa: “Onde é que tu já viu homem com esse tamanho de pé?” Daí desistiu. Calçou o velho tênis e foi para o trabalho. De noite como era de costume dormia com uma faca embaixo do travesseiro. Era rotina ser visitada pelo padrasto à noite com o devido consentimento da mãe. Por isso quando tomou tento e força, tratou de trabalhar e no que ganhou o primeiro cruzeiro – comprou uma faca de cabo branco, das grandes, bem afiada. Comprou amolador dos bons. Antes de deitar a mãe mandava orar. Ela pegada do amolador e da faca, deixava o gume tinindo. Sonhava com um golpe todas as noites, a cama toda ensanguentada, o alívio da carne perfurada até o osso. Conseguia dormir. Mas passou ano e outro ano e outro ano. A faca só tinindo no aço. Então num dia o padrasto veio. A faca também veio junto, um dedo da fuça, bem no meio dos olhos. Reluzia na noite, clareando de morte. O homem assustado fugiu sem nem mesmo chiar, todo amarelo, cagado de medo. No outro dia quando ela chegou do trabalho lá estava sobre a cama: um coturno 36, brilhando de engraxado.      


Patricia Porto é maranhense, Doutora em políticas públicas e educação, formada em literatura, publicou a obra acadêmica Narrativas memorialísticas: por uma arte docente na escolarização da literatura (CRV) e os livros Sobre pétalas e preces(Multifoco) , Diário de viagem para espantalhos e andarilhos(Autografia), Cabeça de Antígona (Reformatório), A Memória é um peixe fora d’água (Penalux) e Os Poemas de Portinari (Org., Funarte) Participou, ainda, de coletâneas no Brasil e no exterior.       

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