Crônica de canção feita ao mar, de Perce Polegatto

 Imagem: Henri de Toulouse-Lautrec. A lavadeira. 1889


Minha jangada vai sair pro mar… – ensinava Dona Dorinha, regendo-nos com um lápis. Com toda a voz de meus onze anos, entre os de minha classe e mesma formação, eu repetia as canções bonitas que nos mostrava essa mestra, enquanto acompanhava no perfil da colega, na fileira ao lado, o movimento de seus lábios, um ligeiro oscilar dos cabelos, podendo distinguir, das outras, sua voz apenas – ela que vinha se tornando o centro de meus dias, minha amada secreta de olhos verdes como o mar, de quem eu gostava tanto e tanto.
 
Lá fora, os furtivos remoinhos erguiam nuvens de poeira e ciscos, na estação dos ventos. Nossa escola, distante do mar e a meio do mundo, tinha janelas amplas que franqueavam a claridade de mais um dia exaurido, propenso a ceder à noite o espaço que nos cobria a todos. Sendo as últimas as aulas de música, a entrada de Dona Dorinha com seus hinários e cadernos de canções populares vinha como o anúncio de um fim de tarde, a saborosa sensação de que em breve sairíamos outra vez ao espaço aberto e aos horizontes de poeira, tão logo transcorresse a magia da aula de nossa querida regente, essa mulher a quem tínhamos vontade de contar tudo o que vivíamos, menos eu minha secreta paixão pela colega de olhos verdes, a quem espreitava com especial carinho. Minha jangada vai sair pro mar, cantávamos em todos os tons. Ela nos ensinava, com um sorriso e um lápis, o êxtase de existir de verdade.
 
O movimento de saída, no portão principal, encontrava-me ainda afeito à minha memória de música, os versos se repetindo enquanto eu observava, como sempre gostei, a tarde rosada sob os efeitos de certas formações de cirros, um tempo em que todas as jangadas aspiravam ao mar, e nossas vidas dispunham-se ao futuro, quando eu já considerava meus colegas com o silêncio que eles não conheciam, situando-nos a todos no mesmo universo das canções que ensaiávamos. Meus companheiros também vão voltar, minha memória entoava. A tarde nos desfazia em incertos matizes, e o vento desarranjava os cabelos de minha amada, eu vendo agora ir-se de mim aquela de olhos como o mar, de quem eu gostava tanto e tanto.
 
Entre os adultos de minha rotina, tarde em meus dias de homem, aconteceu-me conhecer um sobrinho de nossa antiga professora, de quem pedi notícias com ingênua curiosidade.
 
“Tia Dorinha?”, ele quase sorriu. “Faleceu, já faz bem um tempo. Mas contava idade, e tudo se passou serenamente. Em sua própria cama, sem dor nem doença. O que chamam, com razão, uma boa morte.”
 
Eu acreditava que ela houvesse saído da vida em uma tarde rosada como as nossas, de remoinhos de vento e memória de canções. Recordava meus colegas, hoje com a minha idade e dispersos sobre o mundo. Meus companheiros também vão voltar, Dona Dorinha. Também aquela de olhos feitos ao mar, que era minha amada secreta. De quem eu gostava tanto e tanto.
 

 
 

Perce Polegatto é um escritor nascido em Ribeirão Preto, formado em Letras, com especialização em Estudos Literários. Lecionou matérias da área de Letras, como Gramática, Literatura, Adaptações literárias para o cinema, Produção de textos e Semiótica em diversas escolas, principalmente no Ensino Médio, e em três instituições universitárias.
É autor de 5 romances (“Os últimos dias de agosto”, “A seta de Verena”, “Marcas de gentis predadores”,“Projeto esvanecendo-se” e “Teus olhos na escuridão”), 4 volumes de contos (“A canção de pedra”, “A conspiração dos felizes”, “Lisette Maris em seu endereço de inverno” e “Inconsistência dos retratos”) e um de poesia (“Diário contra o destino”).  A metalinguagem, a busca da identidade humana e o questionamento existencial são algumas das principais marcas de seus textos, divulgados também no site “Aventura do dia comum” ( www.percepolegatto.com.br ) .

Uma resposta

  1. E quem, já tendo um passado, não teve uma tia Dorinha e uma menina dos olhos verdes a hesitar nosso coração? Minha tia, ainda viva, é Zizi, e os olhos que me encantaram a juventude e mesmo a meninice foram tantos e tantos… Os olhos se foram com outros olhos que se fundiram e hoje estão dispersos pelo mundo. Paixões da crônica da vida. A tia um dia, vão me contar, partirá também – e por que tudo parte? Mesmo os que se fundem, se refratam, se multiplicam juntos – partem. A escrita nos acompanha.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *