forma e fundo da caçamba
o que cabe numa caçamba?
não só pau e pedra:
caçamba não abre nem fecha
caminho. embora abrigue
janelas,
janelas,
pois cômodo de dormir
esquadrias,
esquadrias,
nela já se perde o quadro —
paisagem engolida.
aliás, caçamba engole
tudo. gula quadrada,
fome assentada no asfalto,
estômago de ferro paciente
que, cheio, se deixa levar
suspenso em correntes
até vomitar em monte maior de lixo.
caçamba assim é tal e
qual discurso de praxe,
protocolo, sessão, plenária, aparte:
toda palavra que, por vontade
de prescindir à palavra, vire
arremedo de si mesma, entulho.
mas há também caçamba que se move
desce à funda solidão de poço
mergulho teso em corda bamba
dança mambembe no escuro
até se ouvir a bunda do balde
quando a corda então debalde rola
roçando líquido imóvel
onde a caçamba bebe
e serena se esquece de si
e ascende plena ao soprar
da molhada avena do pastor
enlaçada à serpente
sarilho que sai
do poço e destila
líquido e sombrio espelho
pra matar sede infinita
na língua de
ovelha
ovelha
[de resto, inédito]
cicatriz
tenho um sinal no supercílio,
cicatriz.
nem sequer sei como a
assinalei
embora ninguém negue o belo
talho,
desenho duma vírgula no canto
d’olho
direito, pausa ao tempo do
corte
que não rasgou a vista por um
triz.
assinalei
embora ninguém negue o belo
talho,
desenho duma vírgula no canto
d’olho
direito, pausa ao tempo do
corte
que não rasgou a vista por um
triz.
porém não posso ser camões,
raios!
raios!
não fui ao norte da África,
não me cabe o trinca-fortes,
não tenho ímpeto da esgrima.
no máximo me aflige o olho
a visão marejada de miopia.
se o sinal resiste desde
remota infância,
remota infância,
não se negue também a ele
fios de contos suturados em
pujança.
pujança.
Não os de perigos e guerras
esforçados
esforçados
mas sim o pícaro que se quer
épico
épico
(que herói hoje merece
confiança?)
confiança?)
então que seja briga de bar,
treino de boxe,
treino de boxe,
queda dum pangaré em pleno
galope,
galope,
pancada na trave ao defender o
pênalti,
pênalti,
capote ébrio de cima do
camarote,
camarote,
qualquer desventura que o
orgulho valha,
orgulho valha,
qualquer vaidade que vingue o
mote.
mote.
mas não tripudie a glória
deste herói.
deste herói.
pudesse você voltar àquela
cena
cena
do garotinho a rasgar fundo a
memória,
memória,
lavado em rubro ao topar uma
quina,
quina,
a descoberta do que por dentro
fervia,
fervia,
odor metálico reinante em toda
guerra,
guerra,
não duvide: por trás de toda
história inventada,
história inventada,
há sempre a dor duma epopeia
revivida.
revivida.
guia para nadar
os dias
descasca a semana com teu nado.
tira-lhe a barrigada,
mas deixa as escamas.
não há animal que resista a labutar
a carne em turnos d’água surda.
tu serás mil peles,
cobrindo espinha macia e mole.
embora as horas sejam turvas,
tu és puro maculado.
quem, portanto, impedirá
um curso azul do movimento?
pois, multiplica-te.
alimenta o meio-dia
com a barbárie de tuas barbatanas.
sê peixe arredio ao voo das horas.
nada, nada silente
em veredas de fogo-fátuo.
é o terror. é o terror.
que jorrem eles…
tu cumprirás a foz.
certo de que as margens nuas sempre se abrem
ao ritmo de tuas brânquias.
e então bolhas de neve escorrerão
pelos ossos do oceano.
por isso nada. nada
que a ironia de sete mil léguas é toda tua.
[Semanário do Corpo, Patuá, 2015]