EGON – JANDIRA ZANCHI

Ilustração: Sandra Stimac

Egos e reversos, azuis os reis em seus destinos. Egon se atropelava em palavras semelhantes, afinal construía versos como alguns constroem pontes. Os esgrimia , a bem da verdade.  Os destituía de suas mornas e carinhosas formas, para formá-los em agudos e pontiagudo, vazantes e descrentes das ordens dos deuses. Um ateu lírico, gostava de dizer-se, enquanto seus olhos inquietos atropelavam os transeuntes, ainda que macios, deslizantes, atarefados no mapeamento do terreno.


Um homem bonito ou interessante, De uma virilidade andrógina, a pela morena, o perfil aquilino, longas capas, o cabelo negro displicentemente escorregando pelos ombros. Vaidoso, inquieto, rasgado em algumas simplicidades de vestuário ainda que compostas com muito esmero. Não era fácil defini-lo, um artista, um solitário (embora escorresse suas madrugadas em bares e casas noturnas), ainda que trabalhasse da forma convencional, artista visual em agências de publicidade e editoras, jornalista, tinha colunas eventuais.  Uma namorada (mais oficial) bem situada em uma secretaria, que lhe servia de motorista, babá, amante, confidente e sempre, grande chifruda.  Enfim, era um homem previsível visto sua bela figura e sua paixão por versos. Fazia o estilo esperado, o que lhe garantia um fã clube constante.


Claro, que a opinião que ele tinha de si mesmo contrariava em muito essa descrição. Egon se tinha na conta de quase gênio. Era discreto, mas competia com todos os outros talentos a quem acalentava como amigos. Aprendia, intuía, retornava, modificava, se esmerava. Tornara-se por fim, bom de fato. Era inteligente e a inteligência, como se sabe, é o prumo de qualquer atividade intelectual, ainda que lírica. Estava mais seguro, por algum motivo não se contentara com o talento para as artes visuais, o faro de jornalista e comentarista cultural e político e quisera de qualquer forma ser um engendrador de poemas, esses breves discursos. Descobrira um estilo, um gosto, temas, moldagens e estava bem, podia se sentir um igual entre os notáveis da palavra. Arriscava uns contos, era uma época de textos rápidos, ágeis, versáteis, o mundo corria,  para reter em palavras tantas expressões e novidades muito se utilizava das formas mais breves da literatura. Muitos faziam bem esse tipo de coisas.


Ergon queria mais e aí, a bem da verdade, não era sua constante vaidade, sempre se medindo e trocando trovas e estrofes com os outros palavreiros, que o impulsionava. Também era. Mas, estava em algum canto mais profundo daquela alma boêmia e agitada. Ergon queria o pensamento. Cru, sem as liras e os redondos e as performances, as vezes irritantes dos discursos de prosa usuais, esses que escritores vomitam com fluxo digno de um ataque apoplético em saraus, reuniões, festividades  e para falar bem certo, em qualquer café ou mesa de bar. Não, Ergon queria os vultos dos mistérios. Ergon queria construir sistemas ou se aproximar deles, sondá-los, arrumar cada parágrafo em conceito cravado e estimado de  luz. Era então por isso que se agitava tanto, que perseguia a noite e desmaiava o dia, que assustava a membrana cega de sua alma com aqueles volteios, aquelas surpresas de cores e flores atacadas sem rodeios… Ergon pensava e queria poder exprimir o que o atormentava.


Egos e requebros, e seus volteios e seus reversos. A viajem até a casa de campo dos avós  era sempre muito agradável. Depois que perdera seus pais em um acidente só lhe restou aquele amor brando e sereno dos dois, agora tão velhinhos. Ergon cumprimentava os 40 e os queridos seus 80 e tantos. O esperavam com um café delicioso de bolos e torta salgada, patês e geléias que só aqueles anjos sabiam fazer. A ternura que tinha e que conquistava tanto admiradores vinha deles, Daquele amor, daquela bonança. A doçura das horas clinicamente costuradas no fim de tarde, cinzento e nostálgico naquele dia, a troca de idéias com o avô sempre bem informado da política, da economia. Um pouco de televisão e a noite era dele. O deixavam trabalhar o quanto que quisesse e ali ele conseguia produzir os textos mais difíceis, abrir as chaves e luzes do que buscava.


A meia idade e suas defesas, seus grandes medos, o reconhecimento do lobo, a fera do deus, o auge que se levanta, ígneo, voraz, a arma na mão, o destino. O ego, essa solidão, essa defesa bravia com o mundo, esse reconhecimento de singularidade, esse peão de hormônios e mente a cavalgar o instante do fulgor, do arder, da vida. A defesa, a trajetória, o  prêmio e o castigo. Energia, devoção, solidão,  o medo. O terror, o reconhecimento da vulnerabilidade, a afirmação, a criação, o rastro, a marca, a identidade. Sempre um covarde, sempre de arma na mão. Feroz e acuado. Submisso, aquele que aceita, prevê e sedimenta a limitação. O senhor da morte, o que faz por merecer toda a degradação, doença, miserabilidade da finitude, da pele, da súplica.


O grande criador, o deus, o que se emancipou. O que saiu das cavernas e reconheceu o outro, chamou de amigo ou inimigo quando e porque quis. Cultura, delírio, guerras e paz, arte, ciência, pensamento, formas, construções, ambições, desbravamento, força motriz. Solitário ou associado, um buscador tenaz, inimigo de felicidades instintivas, maleáveis, subornáveis. Um senhor, nunca um servo. Um rei, nunca um sábio. Um professor, jamais aprendiz. Estratégia, seu nome do meio. Realização. Magro, feito de músculos, boca estreita, perfil anguloso, virilidade transmutada em razão. Homem ou mulher, ascético, eremita, frio, esquivo.


Tão triste,  tão desmerecedor da beleza, da felicidade. Tão coberto de glórias e direitos, senhor das honrarias. Guerreiro e general. Tão medíocre, tão solene em seu orgulho solitário.Mas, única pátria, o último chão, o berço e o caixão. Corredor dourado da razão, seu esteio, príncipe do destino, um ária, um vencedor. Triste louros no mármore árduo do trabalho, quase escravo, de execução de si mesmo. Isso quando superior. Quando desprovido de verticalidade, assassino, besta, cavalo  de paixões.O deus, o cutelo, a arma, o campeão.


Solitário.


O reverso jaz na sombra. Suas armas são amplas, arredondadas de desejos e servidão. Serve na medida em que deseja, e deseja para servir, de si e para si. Imerso no meio, seja luz ou escuridão, desejo e sensorialidade, religiosidade de muitos panos e fendas, benzida, frouxa, fácil, amante de luares e namorado de estrelas. prefere as mulheres, mas, são muitos os machos que domina, sevicia, acaricia. Ama as tardes pueris, a alegrias das crianças e dos velhos, missas intoxicadas de muito incenso, o requebro da mocinha, o membro viril e sequioso do namorado. O reverso é o deus deitado no líquido e na terra, enredado de flores e formas, sutil, campestre, quase infantil. Em sua batida mais alta é o músico ou o poeta, a grande imersão no corpo, a sacralidade da dança da luz, seus rodeios enamorados de cores e pássaros.  É deus, aquele que não tem medo, porque água ou porque sol de boa formatação, batizado no amplexo e na saciedade. É uno e sua mortalha é doce.


Forma e dissolução, grande torneio, ainda esgrimado por esses tempos.  Na pós libertação os humanos serão outros, sem crases, epígrafes.. apóstolos ou filósofos.


Os velhinhos dormiam, um sono de quase crianças. Ergon podia perceber a espessura daquele silêncio, a  sondá–los, docemente, um manto de morte, suave, que se estendia, dia a dia, instante a instante, calando os gritos, as dúvidas, a sexta hora, aquela em que medo e ambição torneiam.  Renascidos no verso, reverso dessa luta, ambição sem destino, argumento vazio. Mas, antes, e Ergon agora o sabia, era luto e esdrúxulo, cantar e penitenciar, viver e dissolver. Amar e ser.


E as palavras… e as dúvidas? E deus? E aquele silêncio de neblina gelada e crua.. por que era aquele o seu silêncio? Não parecia um pouco vazio, vago, tão bem estruturado naquela noite sem desmanche, boas almas adormecidas, uma luz ou outra lembrando uma vida… não era tudo meio certo demais? Talvez ele devesse ser feio ou não ter amigos ou relíquias ou namorada ou trabalho, talvez essas dúvidas não fossem o suficiente, parecia que se costuravam rápido demais, harmoniosas no inanimado cerco dos dias… escorridos,  quase insossos em sua nudez.


E então, vivia? Não era fácil demais? Precisaria ser diferente? Sem bem estar, sem amor, um escuro ameaçador  e solitário em algum quarto de pensão, sacrifícios, orifícios inúteis (daqueles em eu não se pode fazer amor) ou sonhar?


Seria então uma questão de cenário. Não, era mais interior, Sua volubilidade, suas complacências, o ritmo bem ordenado de trabalho e amor e família e rompantes e doçuras… talvez não se precisasse deles. Mas, não os inventara. Foram seus desde sempre, como eram permanentes os bondosos olhos dos avós, o pragmatismo da namorada, o respeito dos vizinhos, a camaradagem de algumas noites com amigos em casa ou, então, as cervejas derrubadas em algum bar.. claro, que ele conhecia o dono, que um acompanhava a vida do outro. Claro.


Porém, tinha o compacto da noite, sua efusiva solidão. A cadeia de rastros e ansiedades que qualquer uma delas sabia arrancar do universo, de sua mais indefinida voz. Era escutar e não temer. Por que era uma noite a sua alma, era um sonho o bem estar, era um pequeno e estanque tempo em que se podia florir ou meditar. Ocasionais, definidos, cuspidos do ferro e amados no fogo. Era o caso, apenas, de saber gerir essa, única solidão. Esse estar dentro do movimento, esse lapso da organização. Essa escuta sempre prenhe, grávida de sua insegurança. Talvez outros também soubessem, parissem esses pequenos diafragmas de incoerência. E preenchessem tantos segundos e ritmos nas aduanas da vida para fazerem crer que não participavam de tais espetáculos. Egos e reversos contínuos, entrelaçados, diluídos, personagens de um mesmo drama.


JANDIRA ZANCHI (Egos e Reversos)

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