Eterno Passageiro/Ronaldo Costa Fernandes: Beira-mar e outros poemas.

Ilustração: Kseniia Eliseeva


Beira-mar
 
O menino olha extasiado a maré encolher-se.
O que era água agora é lamaçal cinza
e os homens bonecos de barro sem pernas
caranguejam atrás de sua imagem e semelhança
– e alguma lata de conserva
que se finge de baiacu de alumínio.
O menino vê o Rio Anil ser engolido pela maré.
Para onde foi tanta água?
O menino também é uma maré vazia perplexidade
vento soprando mangue maré vagueza.
O mangue esponja em seu bolo fecal.
Tarde, tarde, o menino olha a tarde,
o fenômeno é reversível,
maré retrátil,
ele sabe que, como a vida,
amanhã voltará a acontecer.
 
 
O telefone
 
O telefone,
quando não rumina
a língua como chicletes,
pode transformar
o dente em bala,
fazer da saliva argamassa.
 
O telefone,
anatomia de um só ouvido,
tecnologia de conchas arbitrárias,
pode vir a ser telegrama de vozes,
revólver na têmpora.
 
 
Fleuma
 
Onde estará o pensamento do sangue,
o temperamento da carne, a alegria dos pêlos,
 
a melancolia dos vegetais – em mim
ou na capacidade das coisas de existir com humores?
 
 
A maçã no escuro
 
O jóquei monta hipóteses,
a isquemia dos azarões,
chicoteia pavores.
O cavalo bufa músculos.
“Monto, logo existo”.
Por que o jóquei flutua?
Quanto menos homem houver,
maior o prêmio da sobrevivência.
 
Aposta nos cascos que cavam o ar
– as pules são roletas de quatro patas – ,
o cavalo, nas pistas reiterativas,
linhas de trem,
deseja a paz quadrada da cocheira,
ali donde parte e chega sem sair do lugar.
 
 
Cine Éden
 
No cine Éden, hollywood da Rua Grande,
a leste de coisa alguma,
o mundo tinha a dimensão de
seis metros estirados de pano.
 
As janelas abertas deixavam ver o céu
como se fosse a tela e os astros
representassem piscando os olhinhos
de gás das estrelas.
 
Cleópatra se sentava na cadeira de madeira
depois de servir o jantar aos patrões.
E Marco Antônio,
o filho da puta do Marco Antônio,
tinha as mãos calosas de pedreiro.
 
Ó tempo das imagens fugidias,
o mundo como um grande rolo,
a lata de lixo da História
estava cheia de papel amassado dos bombons Pippers.
Que viveremos nós depois do
the end da História?
 
 
Diálogos no ar
 
Eis que o trapezista, em estado de espanto,
me invoca
o picadeiro de um metro quadrado,
a redundância dos vôos mecânicos,
a ciência dos estilingues,
efêmero, patético e inconcluso,
esquina de ar onde a gravidade é mais lei.



Ronaldo Costa Fernandes ganhou, entre outros, o Prêmio Casas de las Américas, Revelação de Autor da APCA, Guimarães Rosa, Bolsa de Literatura da Fundação Cultural de Brasília e o prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2010). No final de 97, publica o romance Concerto para flauta e martelo, pela editora Revan, finalista do prêmio Jabuti-98. Ainda no ano de 1998, edita o livro de poesia Terratreme. Durante nove anos dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. É Doutor em Literatura pela UnB. Publicou os seguintes livros de poesia: Andarilho (2000, SetteLetras), Eterno Passageiro (Ed. Varanda, 2004). Em 2005, pela Ed. LGE, lança o romance O viúvo. Em 2009, sai A máquina das mãos, poemas, publicado pela 7Letras. No final de 2010, saiu seu romance Um homem é muito pouco, da Editora Nankin. O livro de poesia Memória dos Porcos, da editora carioca 7Letras, foi lançado em 2012. Pela mesma editora, publica O difícil exercício das cinzas (2014), Matadouro de vozes (2018), A invenção do passado (2022) e A trama do avesso (2024). Em 2019, publica o romance Vieira na ilha do Maranhão (7Letras). A Academia de Maranhense de Letras publica em 2024 o ensaio Narrativas da vida: o personagem do romance.
 

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