Fernando Campos: 2 poemas



O QUÊ
hemingway escreveu sua obra em
literalmente
livros que paravam em pé
longas narrativas de batalhas e lutas
(há diferença entre elas?)
hemingway escreveu romances que
paravam em pé
e por isso foi contemplado
agraciado
nem sei se nobel ficou sabendo
hemingway escreveu em
por muito tempo
depois chegou o tempo de partir
e hemingway morreu deitado
estirado
porque o estampido o
derrubou
ah, o baque foi deveras forte
sobre isso
bukowski escreveu
‘o cérebro de hemingway dentro do
suco de laranja’
e depois ainda houve quem escrevesse sobre
o fim de bukowski deitado num leito
de hospital aos 73 anos
agora
num fim de mundo
considero essas coisas todas
sem muito alarde
agora
neste fim de mundo
posso ler a obra de
ambos
e pensar sobre essas coisas todas
sem grande alarde
agora mesmo posso escrever
sobre essas coisas todas
e depois ler a obra de
ambos deitado confortavelmente
sozinho
no velho sofá da sala
acho até mesmo que
nenhuma de minhas putas tristes se importaria
somente o ronronar de um gato aziago
que nunca tive
o que tem de ser
por inevitável
não precisa de alarde
SOB LÁGRIMAS SINCERAS
Hoje falei de poesia com um Anjo.
Foi um diálogo insólito, como é de se esperar
de tão Sagrada Criatura.
Beatíssimo,
empregou a deleitosa língua dos anjos,
toda em metáforas e versos.
(Oh mistérios gozosos, etéreas delícias!)

Discorreu sobre o Verbo e, dádiva para um mortal,
contou-me segredos de sua condição angélica.

Disse sentir um misto de admiração
e inveja de outras criaturas: os semideuses
e os humanos com suas veleidades, amores
e ingênuas crenças.

Com feições élficas  pois a um elfo
se assemelhava 
, pediu-me que o ouvisse,
por um momento, entoar um salmo.

Não era de Davi
e muito menos se inspirava em Salomão,
o sábio dos haréns e mil palácios.

No salmo confessou (Melodia das melodias,
pungente, doída e harmônica!) o quanto
se sentia só, morando no Céu, apesar de lá existirem
tantos espíritos, como os que chegam todos os dias
da Eternidade  vindos em romaria, de outras esferas
com lanches e esperas 
 para ver Deus
e sua Sagrada Face.

Em certo momento,
ocorreu-me perguntar sobre a escritora
Emily Dickinson, para ter notícias dela
em seus dias de Paraíso.

Como demonstrasse algum desconforto
ante a pergunta, quis saber

se conhecia ao menos o poema
“There is no Frigate like a Book”,
de Dickinson, e sua mensagem relativa
ao transporte proporcionado pela leitura.

O Anjo disse um ‘Não!’
que revelou mais surpresa do que

desconhecimento, estacando-se diante de mim,
à espera de que eu o recitasse.

Fez um silêncio respeitoso
e,

em sua atitude beatífica,
exalava um doce perfume de jasmim.

Declamei, então, em meu inglês com sotaque,
mineiramente como soaria uma oração
na voz de Adélia Prado em dias de parturiente
ou de João Guimarães Rosa proferindo mensagens

plenas de veredas e travessias.

Mas isto não impediu de maneira alguma
que, de repente, rolasse uma lágrima
de seus santos olhos e que Ele, ao mesmo tempo
levitasse,

pondo-se a uma boa altura de mim,
contemplativamente.

Como por encanto ou milagre, epifania,
o líquido brotado, a lágrima
desceu sobre mim
e veio ter em meus próprios olhos.

Foi aí que Ele transmutou-se
e eu,
por minha vez, olhei em sua mais humana,
mais Sagrada Face.

O Anjo desgarrado era ela em pessoa
e espírito.
O Anjo, meu Deus, era a Bela de Amherst,
Emily Dickinson,
e assim permaneceu eternamente.    

Fernando Campos, poeta de Caratinga – MG, tem dois livros publicados: Insolvência – fragmentos de amor e morte e um esboço de despedida (2015) e Desjejum (2016).

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