FÍSICA, METAFÍSICA: Alexandre Arbex

Ilustração:Tom Fawls

A numerosa afluência dos condolentes à capela sob o calor de janeiro testemunhava menos o apreço que tinham pelo morto que a surpresa com a notícia do falecimento. Apressados, em virtude do aviso lacônico e madrugador, os recém-chegados atravessavam com impaciência o corredor abafadiço e entravam na sala paroquial, onde o lento revezamento em torno do caixão aberto os obrigava a uma correção de ritmo. A morte, repete-se amiúde, é a imagem do sono, ainda que em tal circunstância um despertar repentino viesse causar indizível escândalo.

Dois cavaletes de ferro, cingidos de coroas de flores, montavam guarda junto ao féretro. Sentada entre as comadres, a da direita a abaná-la com um panfleto de propaganda de uma loja de velas recebido no sinal defronte ao cemitério, e a da esquerda a impingir-lhe o copo d’água em cujo fundo se reagrupava o torrão de açúcar que uma colherzinha havia bulido pouco antes, a viúva parecia mirar perdidamente o fogo pálido de uma lembrança que se extinguia no piso de pedra. Não chorava: sentia-se aos poucos voltando a uma solidão natural, que parecia situá-la um degrau abaixo do chão. Entre os que vinham trazer-lhe ao ouvido palavras de consolo, predominavam as usuais fórmulas da resignação piedosa, adormeceu no Senhor, repousou na paz de Deus, descansou, está com os seus, está melhor que nós. Entre os que fiavam conversas à parte com parentes segundos, abundavam as expressões concisas do realismo desenganado, meus pêsames, meus sentimentos, é preciso ser forte, o tempo é o melhor remédio, para morte não há remédio. Além, entre os que trocavam cigarros nas varandas em volta do salão sem mal espiarem para dentro, já circulavam à meia-voz as anedotas pedestres que fazem rir da morte aos que ainda podem rir dela, empacotou, ficam as dívidas, abotoou o paletó, roeu a corda, bateu as botas, a caçoleta, bateu a alcatra na terra ingrata.

Os familiares não se preocuparam em estabelecer uma versão de consenso sobre a causa da morte, e os poucos interessados em obter pormenores a respeito recolhiam apenas trivialidades junto a informantes ocasionais. Era ainda jovem, para morrer, bem entendido, mas a coronária, a hipertensão, os sintomas associados. Alguns, tomando liberdade tão logo se achassem seguros da discrição do ouvinte, acrescentavam alusões ao excesso de peso, a uma alimentação desregrada, cujos efeitos se agravavam pelo sedentarismo contumaz, e concluíam, sem a intenção do trocadilho, que, no frigir dos ovos, o falecido comera dia após dia, em grandes bocados refritos no óleo, o seu próprio fim. Os médicos alertaram-no, prescreveram-lhe dietas, ginásticas; os comensais que frequentavam sua mesa recomendavam-lhe moderação; debalde. Se a morte a ninguém perdoa, disse um, a outros ademais castiga.

Esperava-se apenas pela chegada do filho mais velho para encetar as preces. Os funcionários do serviço funerário, falando entre si alto o bastante para fazer chegar seu recado aos parentes do morto, advertiam de longe que não era prudente deixar o caixão aberto por muito tempo em dia tão quente. A filha respondeu-lhes com um olhar severo e uma má palavra murmurada. Mantinha-se à parte, de pé, junto à porta do lavabo. O cabelo preso fazia sobressair o rosto que, inchado pelo tresnoite, rebatia com indiferença as orações que o noivo, um dos poucos a trajar luto, recitava. Um desconhecido abordou-a para entregar, da parte de outrem, um cartão de pêsames, de cujo teor ela reteve apenas a expressão “passamento do saudoso”, a qual, reservada ao sucinto jargão dos obituários, acabava de lhe ser apresentada. O repique de uma buzina na rua prevaleceu sobre esse atordoamento e, despertando-a, levou-a a pensar novamente no pai, cuja imagem de homem, na sua memória de menina, já não poderia encarnar na massa alva, túmida e plástica que, embrulhada num terno cinza, preenchia o caixão. De cabeça baixa, ela abraçou com força o noivo, e este, supondo pelo gesto que a jovem enfim lhe dava ouvidos, levou-a a sentar-se num banco do lado de fora. Viram dali chegar um entregador da floricultura, cuja aparição alegrara duas garotinhas debruçadas sobre uma lápide. A maior delas recebeu com palmas de satisfação a cesta de pétalas brancas que ele trazia, enquanto a outra, para ocupar as mãos, se esmerava em apertar o laço do seu vestidinho, seguindo o passo da primeira por uma alameda até as quadras do fundo do cemitério. Morrer também pode ser um ato de leveza, afinal.

O diácono, a um canto da sala, junto ao cortinado carmim que ocultava a caixa de eletricidade, andava de um lado a outro, repassando entre pigarros seu discurso. Teremos razão de recear a morte, irmãos? Ora, quem guardar a palavra do Cristo – Evangelho de São João, 8:51 – não verá jamais a morte, pois – Epístola de São Paulo aos Romanos, 6:5 –, se estamos unidos a ele na semelhança de sua morte, igualmente o seguiremos na ressurreição. Considerou, a certa altura, a vantagem de acrescentar um salmo às duas sentenças, mas não lhe ocorreu melhor desfecho que a consoladora reiteração da esperança que elas anunciavam. Não demoraria a ser chamado para dar cumprimento ao seu ofício: um rapaz calvo, de óculos escuros, vestindo uma camisa branca de linho sob cujas axilas se dilatava uma mancha de suor, mal dera entrada na capela e já a viúva, arredando de si as amigas como se tivesse de súbito descoberto nelas um par de estranhas, correu a apertá-lo contra a morna maciez dos peitos, meu filho! meu filho!, repetia, primeiro em voz alta, a olhar em volta com uma expressão de desafio que realçava suas rugas, depois com um murmúrio, de pálpebras baixas, meu filho…, meu filho…, molhando o rosto dele com o leite das lágrimas.

À notícia da chegada do rapaz seguiu-se um ligeiro alvoroço, e logo a assistência tornou a aglutinar-se na sala. Depressa capturado pelo abraço enternecido do padrinho que já vinha aliviar nele as saudades do morto, o filho forçou com os cotovelos o desaperto das espáduas e, adiante, vencendo com delicado impulso outro tio emocionado que o retinha pelo braço e recendia a loção, pôde avistar a irmã perto das flores. Contraindo o corpo, desembaraçou-se dos parentes de que não se lembrava e tomou o lugar que lhe competia junto ao caixão. Fitou por um momento o rosto hirto do seu ocupante e se recriminou secretamente por se distrair com isso sem emoção. Amparou nos braços a mãe, que viera de novo ao seu encontro solicitando sua presença de homem, mas evitou, baixando a cabeça, o olhar de sôfrega ternura que ela, como fêmea, lhe dirigiu. Sentindo afinal que recaía sobre si a decisão, acenou timidamente ao celebrante para que iniciasse a cerimônia de encomendação do corpo.

A liturgia transcorreu a gosto dos que a desejavam breve. Ao término, a mãe e seus filhos abraçaram-se em um choro quase inaudível em que escoaram dolorosamente suas recordações comuns de um homem que não lhes daria outras; depois, atarraxado o esquife, enfileiraram-se atrás dele para assinalar aos demais que o cortejo ia partir. Tão logo foi suspenso o caixão largo, os amigos que se haviam apressado a empunhar as alças se aperceberam de que mal poderiam carregá-lo até a saída da capela: o corpo dentro deitado conservava ainda o inteiro do seu peso, não era para já que começaria a definhar. Um sorriso constrangido arvorou nos lábios desses primeiros voluntários, e, reposto o esquife na mesa, um deles se incumbiu de solicitar à zeladoria um carrinho de ferro para fazer o transporte. Veio o veículo, acomodaram nele o passageiro, e os semblantes antes relaxados por esse imprevisto reassumiram depressa o ar compungido com que convém enfrentar um funeral.

A procissão percorreu em silêncio as alamedas do campo-santo. A viúva andava de cabeça baixa entre os filhos, a mão direita em continência militar para proteger os olhos do sol. Dispensara o amparo do braço de seu primogênito, e a caçula seguiu seu exemplo quando o noivo lhe ofereceu o dele. Andaram devagar, com um indeciso adiamento, até a sepultura. O carrinho onde ia o caixão foi estacionado ao lado de outro, carregado de cimento fresco, revolvido com impaciência por um coveiro de camisa azul, desabotoada na gola, e atadura no pulso. Os trajetos estreitos entre as lápides e jazigos, por onde só cabia passar uma pessoa por vez, faziam o grupo dispersar-se de pouco em pouco, mas, à chegada, a convocação de uma última prece rearrebanhou os extraviados. Entoada com a pressa típica dos que, sabendo aonde vão dar as palavras, não têm razão de se demorar nas que ficam pelo meio, a reza esmoreceu o ímpeto esportivo suscitado pela caminhada e infundiu nos recitantes uma inesperada comoção diante da vida de suas próprias vozes. Tímidos, mas insensíveis ao ritual, dois jovens serventes do cemitério ergueram do carrinho o caixão e o puseram no rebordo da cova. Um aos pés e o outro à cabeceira, enfiaram pelas alças laterais as pontas de uma corda de grossas tranças, e, passando-a sob o fundo, repuxaram-na pelas alças opostas, atando as pontas por sobre a tampa. Frente a frente, enfeixaram com mãos firmes as extremidades da corda, e, distribuindo pelas pernas retesas e bambas o peso da carga, se puseram em prontidão para efetuar o descendimento. A habilidade displicente desse balé rústico suscitara por um instante a admiração dos observadores, calados desde o último amém. O filho consultou a mãe e a irmã para saber se elas consentiam em fazer baixar o caixão. Ambas, caladas, limitaram-se a balançar a cabeça de lado a outro, mas suas fisionomias fatigadas deixavam claro que a recusa se referia antes ao caráter irrecorrível dessa etapa que a qualquer intenção de se opor a ela. A autorização transmitiu-se em duas palavras aos operários, que, sem demora, deram braços ao trabalho.

O coveiro, ao ver os subordinados em apuros com o peso excessivo que arriavam, veio em socorro deles, corrigindo a direção da cabeça do caixão, que oscilava, e juntando forças à manobra. Sua arte tornou cadenciada e cautelosa uma aterrissagem que perigava acabar em queda livre sob o colorido viçoso das pétalas que as comadres atiravam da primeira fila. Mal, porém, se dera início à deposição, sobreveio a dificuldade de fazer passar a arca oblonga pelo compartimento de terra. A obstrução forçou um içamento açodado do ataúde, ferindo de várias avarias o madeirado. Essa ascensão inesperada inspirou certo desconforto aos que já davam por certo seu soterramento e que, por um momento, indagaram se fora ouvido de última hora um gemido de socorro de dentro da caixa mortuária. Constatando que era inútil insistir na tarefa, o coveiro apressou-se a declarar, sem outras verificações, que se deveriam quebrar as alças laterais para fazer caber, no magro sepulcro, o caixão ancho.

Esse parecer ofendera a mãe e a filha, a cujos ouvidos a brutalidade da sugestão soava como uma violação do corpo morto. Era possível que se misturasse à emoção dessa recusa a estimativa do prejuízo material que decorreria da amputação das seis alças de cobre que ornavam com seu relevo foliforme a caríssima urna onde minguava o grosso recheio do de cujus. Respondendo às objeções com a mesma intuição segura com que o escravo de Menon deduzira perante Sócrates a duplicação da superfície do quadrado, o coveiro, munido do cabo de sua pá como metro, demonstrava a impossibilidade espacial de acomodar a peça funerária no polígono estreito. Entrementes, um de seus ajudantes encarregara-se de tirar do fundo da campa dois sacos de lona preta, trazendo à luz, ao abri-los, os ossos da mãe e do pai do morto, indistintos na sua nudez descomposta. Fechou-os com um só laço, unindo-os pelas bocas, e, após deixá-los com desleixo sobre a lápide ao lado, recobrou seu posto. O coveiro, a dirigir-se diretamente ao filho do morto para advertir às mulheres da família a pouca autoridade que podiam sobre ele, demonstrou com sobejas razões o contrassenso que seria, àquela altura, proceder a um meticuloso desencavilhamento das alças apenas para poupar a armadura de mogno. Atento ao raciocínio dele, o rapaz sentia-se imbuído da agradável sensação de ouvir um homem que sabe falar de seu ofício e, pondo-se de acordo em tudo, terminou por deliberar pela retirada das peças laterais mediante o arsenal disponível. Ao sinal de avante, um ajudante do coveiro correu a apanhar uma corrente, para emprego posterior, e uma marreta de pedra largada na calçada em reforma. Depois, erguendo o braço sem aguardar nova ordem, principiou a golpear as hastes de metal. A brutalidade das pancadas contra as argolas duras, tão passivamente suportada pelo corpo confinado, parecia oferecer a última e inapelável confirmação de sua morte. Repetida a operação em cada alça, o coveiro convocou seus colegas para empreender nova tentativa de baixar o esquife à terra, se não a sete palmos, ao menos a sete dedos, o bastante para recamá-la de cimento e sonegá-la do sol.

A providência revelou-se entretanto insuficiente: as laterais do tampo, tendo passado pela boca da cova, emperraram mais fundo nas paredes internas. Para eximir-se de demais trabalhos, o coveiro insinuou que pouco restava a fazer se o gordo finado, em sua embalagem de madeira, excedia a largura regular das sepulturas. A filha, livrando-se ferozmente dos braços do noivo como se ele fosse uma escolta indesejada, acorreu aos gritos para contestar essa opinião. O insulto ao seu luto e a aflição triste que a assolara rasgavam em roucos e estridentes protestos a sua voz, mas a boa razão veio assistir-lhe quando ela mostrou com toda evidência como o túmulo vizinho avançava sobre o espaço reservado ao descanso de seu pai. O tio ameaçou levar a julgamento a administração do cemitério e, adiantando-se sob o impulso dessa ideia, sacou do bolso o telefone celular como se intentasse pô-la em prática imediatamente. Entre os que coadjuvavam a cena à espera do desenlace, fez-se ouvir o parecer de que a cremação não acarretaria tais imprevistos, era processo mais ligeiro e limpo, e, com o tempo, os ossos enterrados acabavam todos por se desfazer em pó, e o pó, espalhado pelo vento e absorvido pelas ervas, cedo ou tarde vai dissipar-se por aí, não há remédio, senão inúteis protelações, para esse outro destino mais temido que a morte mesma, a saber, a desintegração.

Uma nova solução aventada pelo coveiro reacendera a controvérsia: fazer o caixão entrar de lado no túmulo, cujas dimensões, maiores em profundidade que largura, assim comportariam melhor o hóspede. Até então complacente e razoável, o filho hesitou ante esse conselho, cuja proposta, destituída de toda preocupação transcendente, feriu como uma injúria seu coração agnóstico. Não, senhor, era preciso considerar as dificuldades sob outro ponto de vista que não o da emergência prática, não se trata de fazer passar uma cômoda entre os limiares de uma porta ou embarcar um sofá no elevador de serviço. Um velho amigo da família, antecipando-se a um desfecho que se anunciava emotivo, pegou-o no braço, obtemperou que o recurso sugerido pelo coveiro era, sem dúvida, deplorável e que se deveria render mais respeito aos ausentes, mas reconheceu, enxugando com o lenço o suor da testa, que as dramáticas circunstâncias do momento não davam margem a outras manobras. Mesmo sem ter sido consultado, o diácono houve por bem ratificar que a religião nada obstava a uma adaptação da posição do caixão ao espaço, não há coisa sã em nossa carne, nem paz em nossos ossos, Salmos, 38:3. Os olhos injetados, o dedo em riste, a filha parecia prestes a blasfemar contra esse sermão, quando a mãe, interpondo-se, deu em voz alta o aval ao coveiro. Este, sorrindo com discreta satisfação, repassou uma corda por um dos flancos e, puxando as pontas, soergueu depressa o caixão pelo lado da cabeça e ordenou a um dos ajudantes que amarrasse, com um nó duplo, a extremidade dos pés, enquanto o segundo, cingindo com duas voltas de corrente o ventre, ficava encarregado de sustentar o meio. A carga deslizou com um solavanco para dentro da cova, mas os operários mal tiveram tempo de celebrar o êxito dessa estratégia: a viúva rogou-lhes que trouxessem de volta para cima o caixão e o mudassem de lado, por favor, ele dormia virado para o outro, e se afastou, chorando muito, acabara de lembrar que passaria sozinha aquela noite. 


Alexandre Arbex nasceu em Resende-RJ em 1980, cresceu no Rio de Janeiro e vive em Brasília desde 2009. E autor do livro infantil O livro (Casa da Palavra, 2001) e de Da utilidade das coisas, livro finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria “Contos”.

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