FORA DE PAUTA: JANDIRA ZANCHI

– Ainda ensaiando, Mariana… – a voz ácida da instrutora não trazia ternura. Novamente Mariana espiou alguma hostilidade. Ritmo, enfado, cansaço, a repetição monocórdia dos professores? Sorriu, a figura era chata mesmo, olheiras, os cílios muito pintados, o batom cor de carne, o inevitável coque, vincos ao redor dos lábios, aquele arquear de sobrancelhas fixo na tua sapatilha, vez em quando percebia-a olhando para a janela, consultando o relógio, um suspiro ou outro de enfado.

Sabia que ela tinha feito alguns solos em apresentações no palco B, participado de mais de um ballet no A, enfim, tivera uma carreira, algumas homenagens, talvez alguns sonhos, viajara com o ballet principal, dizia-se que estudara em Nova York, uma bolsa, que estrelara peças de ballet moderno ali no Ópera, enfim, bailarina de carreira.

Como eu, suspirou Mariana, não fui para o exterior, mas, já fiz tudo isso. E como ela ensino dança, vivo disso também, o salário não é suficiente para alguns luxos, sempre vale a pena investir em roupas, aparecer em festas, os homens gostam das bailarinas… talvez os produtores e os diretores de arte um pouco menos… sorriu. Trinta anos, jovem, mas não para uma bailarina.

Ela até se casou duas vezes, pensou, tinha duas filhas, uma delas bailarina, a outra modelo… pescoço de garça, os braços longos e finos, boa genética considerou. O último marido vez em quando dava as caras, de olho nas meninas, e as gurias, ah, davam uma corda sim. Raiva da mestra, talvez, não eram escaladas, a culpa ia para quem estivesse mais perto, o convívio constante gera mais ressentimento do que agradecimento, sabia.
Já Mariana, um namorado ou outro, nem noiva ficara, só o ballet, o teatro, os ensaios, os espetáculos, o trabalho, uma nóia. Para que? Para ser tanto quanto a mal humorada da instrutora, uma quase, ou um membro de orquestra, lembrou-se dos músicos, quase tão neuróticos e sacrificados quanto elas. Fazia seus solos, sempre muito técnicos, eram esses os comentários que ouvia, uma bailarina técnica, daquelas de música fria de fundo, luzes pálidas, cenários minimalistas. Moderna, ouvia também, tradicional vez em quando, ou confiável, pontual, dedicada.

Usava o mesmo coque sempre, o nariz operado, traços quase delicados, harmonizavam com o corpo, rijo, tronco mais longo, ombros salientes, pernas fortes. Não tinha o biótipo ideal, mas não desarmonizava, mantinha-se muito magra para não engrossar os braços, sempre muito tempo no alongamento. Dir-se-ia que era uma parte do cenário do teatro. Pareço uma operária da dança, lastimava-se, meus movimentos são corretos, todos os músculos de meu corpo acompanham o deslizar da dança, mas, não me destaco.
Descansou, era sábado, começara a entardecer. Fora escalada para a apresentação no Rio, faria um solo, curto, mas, faria, a peça era belíssima, pela primeira vez lhe davam uma cena mais criativa, sensível. É tão técnica repetiam, mais envolvimento, ouvira mais de uma vez de uma diretora chata, de uma professora idem. Os homens nunca a comentavam, tratavam-na como parte de um mundo que não era o deles, o dessas mulheres muito certinhas, cabelo e roupa no lugar certo, postura impassível, atitudes politicamente corretas, fala e senso pertencentes a um mundo meio frouxo, de um branco estático. Percebia que preferiam as musas, jeito de estrela, olhar aéreo, entregues ao sonho do cisne, ou das mais avulsas, feéricas, indomáveis, com mais músculos e peito do que deveria se encontrar em uma clássica, mas, dominantes e entusiastas nos palcos. Também das boas trágicas, lembrou. Corrigiam os seus  erros, davam-lhes papéis de mais destaque ou ênfase.  
Muita marcação e você fica na pauta. Sentou-se com a instrutora, ofereceu-lhe um chá, a cozinha à meia luz, os bancos vazios, rua deserta.

– E tuas filhas?
– Bem, Laís foi para São Paulo como sabe.
– Uma bela bailarina, dança e figura, aqueles cabelos pretos…
– São do pai, meu primeiro marido era lindo.
– Bailarino?
– Não, homem – e gargalhou.
– Existem homens no ballet…
– Alguns sim.
– Eu gostaria de me casar com um bailarino.
– Porque nunca casou, Mariana? Moça bonita, inteligente, com talento… o que faltou?
– Sorte e talvez foco, né, só me voltei para o ballet.
– Abra esse peito menina, até na tua dança a gente percebe essa tua trava.
Mariana, suspirou, que flechada…
– Acha é?
– Não falo por mal. Você dança melhor do que a maioria das meninas, tem uma técnica perfeita. Quer acabar como eu, mulher de um galinha, ensaiando gente mimada?
– Não sabia que se ressentia.
– Não me ressinto, fui boa, mas, fui mais uma. Quis viver e vivi. Já você não vive, observo isso.
– Verdade, quero o ballet, o que fazer?
– Abrir esse corpo.
– Como, sou assim!!!
– Guria, o que destrava o corpo de uma mulher?
– Sexo?
– Pois zé…
– Parece que teus muitos amores não te levaram ao estrelato e as louquinhas geralmente são as louquinhas.
– Existem estrelas natas, elas usam a técnica para dar vida a uma deusa, de ar, de água ou de fogo.
– Isso, jogue na minha cara que não sou assim.
– Você não é narcisista o suficiente para achar que é a encarnação do belo, você é uma fã do belo.
– Pois zé, está ficando tarde.
– Para você? quase… mas, você pode abrir esse teu corpo, essa vontade!
– Sei, dando segundo você.
– Dê melhor, sempre vale a pena, mas, tem exercícios, rituais, religiões, meditações, vivências, experiências que podem ajudar entende? E ser um tipo de deusa mais palpável, etérea e fria. Você já viu algum filme da Nicole Kidman?
– De fato, entendo, porém, ela é bem mazinha. Sou toda certinha.
– É mesmo- a outra riu. Mas, tem estrelas palpáveis, dessas do mundo real, cuja cabeça funciona nas dimensões usuais e que são estrelas.
– Até lembrei de algumas – Mariana ficou pensando. Olha, me surpreendi com você, parece ter razão.
– Pinte esse cabelo de loiro, por exemplo, se maquie mais, você se veste bem, um pouco mais de luxo. Vai para o Rio na quarta, né? Tem olheiros lá.
– Ah, é? Bela dica
– Coragem garota, você já fez a lição de casa.


JANDIRA ZANCHI

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