Fez-se a luz, luz mais densa, luz dos lírios, tímida luz de outrora, teus pés iluminados sobre a relva, espáduas abertas a derramar a luz dos girassóis, saber de cor a luz de tua saliva, desnudar-te até a íntima luz, espelho estilhaçado pela luz das flores… Esses são alguns trechos de poemas que parecem em honra ao deus da Luz, Apolo, que pregava o equilíbrio e a sabedoria, mas são do livro NOITE DE DIONISO, de Alexandre Bonafim.
O “nada em demasia” é lição que atesta a influência moderadora de Apolo. Porém, o sujeito lírico não parece buscar a quietude. O título do livro denuncia. Em “NOITE DE DIONISO”, os poemas são dirigidos ao deus da transgressão. O sujeito lírico escolhe Dioniso ‘seu’ deus libertador, o único que poderá livrar seu corpo da prisão, já que ‘um corpo é um cárcere’, como vemos neste trecho do poema “GRITO”:
Um cárcere onde
nos debatemos
contra o sangue
contra os ossos
Segundo os mistérios órficos, o primeiro Dioniso, chamado Zagreu, nasceu de Zeus e Perséfone. Para que a ciumenta esposa Hera não fizesse nada contra o menino, Zeus o deixou aos cuidados de Apolo na região do monte Parnaso. Contudo, Hera descobriu o esconderijo e ordenou aos Titãs que o capturassem. Zagreu tentou fugir metamorfoseado em touro, mas foi pego pelos Titãs, que o cortaram em pedaços, cozinharam as carnes e o devoraram.
No poema “JOVEM DESNUDO” é explícita a referência a Zagreu em “touro decepado”, “ímpeto selvagem”, “animal”, “apunhala” e “agonia”:
No mais secreto íntimo
de teu corpo respira
um touro decepado
Com ímpeto selvagem
esse animal apunhala
meu corpo
meus sonhos
os nomes todos
de minha agonia
O gesto dos Titãs foi incorporado aos rituais relacionados a Zagreu. Nas festas comemorativas, seu dilaceramento era relembrado com animais sacrificados. A ingestão da carne simbolizava a junção com o deus, como se a própria divindade penetrasse no ser do indivíduo. Esse ‘despedaçar’ aparece em vários poemas, em palavras como “talhar”, “sangue”, “arder”, “âmago”, no poema “AMÁLGAMA”:
Talhar teu corpo no meu sangue
até arder no âmago do fogo
a delicada luz do vinho
Outras palavras que simbolizam o dilaceramento de Zagreu no poema “ARTE DE AMAR” são “mastiga”, “carne crua”, “tritura”, “sem piedade”, “dentes”, “lâmina” e “atroz”:
Gosto de amar assim
como quem mastiga
carne crua
como quem tritura
sem piedade nem dentes
uma lâmina atroz
O título do poema acima é homônimo ao da obra de Ovídio, que escreveu um livro com orientações sobre o contato físico. O poeta foi exilado no ano 8, em Roma, talvez por motivos políticos. Quem sabe a “Arte de amar” foi uma obra muito ousada para a época? Um dos conselhos foi que o vinho inflama ainda mais os corações apaixonados.
Dioniso descobriu a videira quando adolescente. Colheu cachos, espremeu e bebeu do novo néctar, o vinho. Pôs as ninfas e os sátiros dançando à sua volta em consequência do estado provocado pela bebida. E muitos poemas no livro falam sobre vinho. Em “NOITE DE DIONISO”:
Banho-me
nesse vinho
até ferir-me
inteiro
no desejo
O homem, arrebatado pelo deus por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo cotidiano. Seus devotos, sagradamente embriagados, cantavam, dançavam energicamente à luz dos archotes, ao som das flautas e címbalos e, após a dança vertiginosa, caíam desfalecidos. Acreditavam que saíam de si pelo processo de ékstasis e mergulhavam no deus pelo processo de enthusiasmós. No poema principal, “NOITE DE DIONISO” é claro o processo de ‘mergulhar’ no deus sob o efeito do vinho:
A taça já está
repleta de êxtase
(…)
É no meu corpo
que ele soletra
a doçura
selvagem
do vinho
(…)
Quem alcançava o estado de êxtase e entusiasmo concretizava a comunhão com o deus. A loucura sagrada e a orgia possuíam o valor de uma experiência religiosa. Lembrando que os versos não fazem referência a Dioniso diretamente, são parte da experiência do sujeito lírico. A comunhão (entranhando-te) no poema “EPIFANIA”:
Abrir teu corpo
entranhando-te
no que em mim
é árdua pedra
é a verdade da areia
e do sangue
O culto a Dioniso estava relacionado aos ciclos da natureza e realizado na época da colheita da uva, para agradecer a abundância da vegetação. O vinho, o canto e a dança animavam os participantes mascarados, que relembravam o deus menino correndo pelos bosques acompanhado das ninfas, sátiros e outros seres.
No poema “NOITE DE DIONISO” temos a presença da máscara. Não a máscara do teatro do qual Dioniso é deus, mas a humana, como o ator nas suas origens. Alguém fingindo ser o que não é, um hypocrités, hipócrita, com o processo dionisíaco do êxtase e entusiasmo auxiliando sua representação:
(…)
A beleza fere-nos
apunhala-nos
onde existimos
em tudo
onde somos
somente
o avesso
de nossas máscaras
e cicatrizes
(…)
Zeus fulminou os Titãs pelos seus atos e das cinzas nasceram os homens. Com esse fato, os órficos pregavam a reencarnação e a origem divina da alma, explicando que os homens descendem dos deuses. O mito também explica a natureza humana, composta de bem e mal: cada ser humano traz em si uma faísca do divino, sinônimo do bem, e uma parte titânica, que é má.
A participação do homem na natureza divina no poema “VERTICAL”:
Nítido e preciso
caminhas
desnudo
vertical como um deus
A parte titânica e má dos homens no metapoema “NOITE DE DIONISO”:
A beleza
vinho absoluto
nossa humanidade
mais frágil
Solange Firmino
Alexandre Bonafim é poeta e ensaísta. Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor de pós-graduação na Universidade Estadual de Goiás. Publicou 8 livros de poesia, entre eles: Noite de Dioniso (2019), O Secreto Nome do Sol (2013), Sob o Silêncio do Anjo (2009) e Biografia do Deserto (2006).
Solange Firmino é poeta, tem 4 livros de poesia publicados. Graduada em Português/Literatura (UERJ).