Imprecisões palimpsestas: Geovane Fernandes Monteiro para J. L. Rocha do Nascimento

Escrever em tempos de (in)tensa polarização ideológica? Publicar poesias em demorada época de guerra cultural, de paixões partidárias em si? Nessa era, vale estender, de midiática desqualificação do outro e de crise identitária consequente, luzes reacendem o itinerário pessoano quando a busca do existir tece a própria existência. Afinal surge Ontologia do ser
(Penalux, 2024), de João Luiz Rocha do Nascimento. Essa coletânea de poemas reage a um repertório social em que a vida é “organizada” por instituições, a ponto de o indivíduo ser recepcionado em tábula rasa. Os versos percorrem planos
mentais de possibilidades sartreanas. Ou melhor, quando a essência não é um privilégio. A partir de então, o autor concebe o indivíduo escorregadio ao se atravessar bem.  Logo no primeiro poema, Eu e os vários de mim, nos versos não sou eu e nem qualquer outro que poderia ter sido e que /ainda me habita tem-se a expressão com que se constrói todo o livro: o humano em crise existencial atraente, o outro de si: mais percurso do que verdade.   

Lendo a obra desde o título, é flagrante, pois, a voltagem existencialista. Flagrante fluídico versos no vazio que se quer atingir. Noutros termos, a poesia, crônica deste tempo estruturalmente utópico, conflui verso e prosa frente à experiência superando qualquer verdade. Para tanto, estar-no-mundo jaz na imaginação criadora, em incursões filosóficas em crise, a exemplo do poema Borges: não há nada que é ou que será / que [eu] já não tenha sido / agora sei do outro [que é] o mesmo / ser Borges duplo de si mesmo.  A propósito, J.L. Rocha do Nascimento, um leitor do referido poeta argentino, projeta na alteridade a marca dominante em Ontologia do ser. O duplo de si mesmo e então o humano atravessa o espaço-tempo e convive com o impreenchível. Desse modo, o sujeito conhece a angústia inspiradora, esta liberdade de se experimentar, gestando simplesmente, este além da dor a romper a fronteira da solidão. Dessa sorte, longe dos ditames da lógica, a condição da existência tem morada na especulativa linguagem poética. O eu rentável de não o ser é codificado na feliz estreia do autor neste livro solo de poesia. Para citar um dos quarenta poemas, Rota de fuga – como os demais – nos escapa e nos reside porquanto: Escrevo pra chegar perto de mim. / Nem sempre consigo. / Às vezes, quando acho que estou perto, escapo entrelinhas.

Assim como Albert Camus, Dostoievsky e Simone de Beauvoir, para mencionar alguns dos mais festejados, João Luiz também se introduz entre os pensadores / literários inclinados à tônica existencial. Quanto ao poeta, o exame filosófico aventura-se na transcendência-ambiguidade humana. Difícil direcioná-lo a este ou àquele autor. Mas afinal, quais as perguntas fundamentais da filosofia? No poema Tudo outra vez nunca mais lê-se vários de mim foram, outros vieram., e eis uma amostra do que a falta de resposta pode alimentar. Assim, sem linguagem empolada, Ontologia do ser transfere os clichês de quem eu sou para a consciência da oscilação, das fontes controversas, visto toda tese revelar-se irrisória a Rilke, porque posterior e secundária. Ora, o poeta atravessa o monoteísmo, o ateísmo, o absurdismo e todos os ismos ao sentir o sentido da vida no esforço de viver a busca desse sentido. Veja-se em Angústia heideggeriana o não limite entre o que não é e o que não é mais. Veja-se em Da passagem do tempo: quando um dualismo metafísico me assombra e provoca sobressaltos entre Heráclito e Parmênides. Veja-se, de ponta a ponta da obra, o adâmico paradoxismo humano, já que nos move o abismo entre a verdade de cada época e as perguntas fundamentais das filosofia: 

Mar, sereno mar, deixa eu te revelar o meu segredo:

Eu que não sou o único grão dessa infinita areia, me vejo

 antepassado e para além de ti.


(Elegia)

 Mas então fazer versos em tempos de ultraprocessadas soluções? Escrever arredio a toda sorte de provérbios em sistemas digitais? João Luiz Rocha do Nascimento, autor de cinco livros de contos também comprometidos com a interioridade, publica Ontologia do ser, livro sem medo e sem arrogância de não se situar em protagonismos sazonais. Ao largo de meras distrações das massas, há a estetização da coautoria de si mesmo, o que desaponta a procura por consumo rápido. Como dito, o autor se revela cambiante quanto a influências. Esse aspecto lhe rende o caráter universal; salvo de fáceis delineações bibliográficas (o homem específico e vário, o rio de Heráclito). Sua gramática, com achados aparentemente cristalizados, não abriga processos mentais de simples identificação. A esse respeito, a contrariedade e o estranhamento de páginas com procedimentos verbais moderados e não menos ambíguos. João Luiz Rocha secundariza os requintes e concentra o punho nos braços de Scheherazade.  Em todos os quesitos, a lavra dos quarenta poemas convidam o leitor à autolibertação em toda sua espontânea complexidade. A alteridade do ser existencial que me habita não ofusca o palmilhar da formação da alma. Ao contrário, convida o leitor a viver o palmilhar – o sentido da vida na Balada do inatingível cam(r)inho.

  G. Monteiro

 

 

G. Monteiro, natural de Água Branca / PI, tem formação em Letras – Português e Pós – graduação em Linguística Aplicada, ambas pela UESPI. É autor do livro de contos Paradeiro (2016) e de poesias O exercício do nada (no prelo). Integra várias coletâneas, como Poesia Tremembé (2021), Cacuá – Antologia de Contos Piauienses (2020) e Antologia de contos bilíngue
(português e espanhol) Palavras sem Fronteiras (2016). Junto com o contista e romancista João Pinto, foi fundador do espaço literário virtual Contos entre paisagens (2020 a 2023).

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