Semana passada, reencontrei um amigo de infância que não via há anos.Quase não o reconheci devido à devastação capilar, ainda mais severa do que a minha. Foi ele quem me abordou na calçada. Trocamos poucas palavras, pois me dissera atrasado para certo compromisso. Dei−lhe meu cartão e o convidei para jantar em casa, no dia seguinte. Ele aceitou, entrou no porsche panamera turbo, e foi embora.
Confesso que me arrependi de tê−lo convidado. Por quê? A julgar pelo automóvel, minha casa devia ser mansarda perto da dele, e eu não queria causar má impressão.Enfim, convite feito deve ser honrado.
Naquela noite não dormi. Apenas no fim da madrugada consegui me apaziguar conjecturando que talvez ele declinasse o convite. Não declinou.
Estava almoçando quando me ligou pedindo o endereço. Entrei em pânico. Às pressas, deixei o escritório e fui sacar da minguada poupança destinada à substituição de móveis. Ao deixar a agência, fui procurar avizinha, ex-cozinheira do restaurante Fasano. Somente consegui convencê-la de cozinhar naquela noite, quando ofereci algumas cédulas de cinquenta. Tudo resolvido? Não! Era preciso deixar a casa impecável, e a diarista só viria na semana seguinte. Sem alternativa, eu mesmo inspecionei e asseei cada pedacinho do imóvel. Em algumas horas deixei tudo com um pouco de dignidade. Para isso, precisei ocultar tijolos debaixo do sofá avariado para corrigir o desnível, colar os pés cambaleantes da mesinha de centro, e retirar alguns livros da estante que ameaçava tombar.
Ele chegou no horário marcado. Chegou com o filho que parecia ter uns oito anos, não mais. Menino impertinente, bichinho indomesticável. “Precisei trazê-lo. Minha esposa está com enxaqueca”.
Após o jantar, com breves interrupções para censuras ao filho, fomos para a sala de estar. Sentamo-nos no sofá sem defeito. O moleque, aproveitando o descuido do pai, subiu no avariado, pois vira – graças a minha miopia − teias de aranha num canto do teto.Pulando sucessivas vezes,na tentativa de pegá−las, provocou o deslocamento dos tijolos. Por isso, perdeu o equilíbrio e, para não cair, saltou sobre a mesinha que não suportou o peso. Só não enfiou a cara no chão, porque se agarrou na estante de livros. Adivinhe o que aconteceu? A estante tombou. Por sorte (ou azar), não caiu sobre o pestinha.
Meu amigo, após inúmeras desculpas, agarrou o filho pelas orelhas, dizendo que iria pô-lo no carro e que voltaria para pagar o prejuízo. Pediu-me para relacionar os objetos danificados. Assim que saiu, lembrei que a TV estava estragada havia anos.
No dia seguinte, minha sala possuía nova mobília e eu, após muitos anos pude, finalmente, assistir ao campeonato de futebol.
Ilustração:DeviantART
Maurício Cavalheiro, natural de Pindamonhangaba/SP, é membro da Academia Pindamonhangabense de Letras e da UBT-Seção Pindamonhangaba. Assina a coluna “PROSEANDO” no jornal Tribuna do Norte, de Pindamonhangaba. Livros publicados: Lágrimas de Amor (1987 – poesia), O Sapinho Jogador de Futebol (1991 – infantil), O Estuprador de Velhinhas & Outros Casos (2011 – Contos), Histórias de Uma Índia Puri (2015 – infanto-juvenil),O Casamento do Conde Fá com a Princesa do Norte (2015 – cordel), Um Caso de Amor na Parada Vovó Laurinda (2015 – cordel), Zé Ruela e a Capela de Sant’Ana (2016 – cordel), Vestígios de um Grão de Areia (2017 – poesia)