“Dá para presumir, sentir os pés tocando esse frescor que só os lajedos no inverno”. Quem a visse e lhe soubesse o caminhar aéreo e o sorriso luminoso a perpetuar a beatitude, o instante em que participava equilibradamente, o que a tornava única na forma, no estado que os teares divinos lhe dedicavam. A vida a evidenciava, pois via, nela, longitude, incompreensibilidade.
Mesmo quando as migalhas fingem não existir. “Sei das crucialidades, o quanto há que escavar até alcançar todas as demãos da criação. E também o contrário.” Khanti mais parecia um livro milenar, um cacto, espinho a espinho. “As boas coisas trafegam em lugares inusitados. O enigma não tem chaves, determinismos ou premunições, talvez pedras no dentro, ou aldravas brancas”.
Não há como condescender sobre algo ainda não experimentado, nem como saber as extensões de um rio sem antes atravessá-lo ou medir-lhe, no mergulho, a fundura. “Estou onde vive a canção, de todo e de tudo vista, retilínea ou tortuosa; seguem-me, ouvem-me os que, por bem, decidirem chegar às margens. Sempre haverá calor ainda que numa estrela apagada”.
E o vento roubou-lhe alguns pensamentos, dirigidos não se sabe a quem ou em que direção – porque sem direção o próprio vento, cúmplice do tempo, de Khanti:
“Vê a lua que navega no teu casco escuro, o cais em que teu barco não mais. Não verás e, por não veres, declinado o desejo, virão outros no lugar. Ao não veres, saberás que não é por cegueira, mas por distração, erro maior.
Há solidões que andam de braços dados. Após alguns dias no deserto entenderás mais sobre a umidificação. O tempo não muda quando não mudam os homens. Na verdade, o tempo é inocente; o homem mente quase sempre.
E, dessa febre que separa lua e sol, a seiva se esvai. O vazio fala enquanto se apagam as flores heliotrópicas. Enquanto é marcado o desencontrar que, mesmo não acontecido, é raridade a segredar. À tarde, quando a tarde finda, fim da tarde.
Respeita o mutismo, revolve o silêncio e cerca-te de incógnitas, molha-te de esperar tão fundo e, de esperar tão fundo esperar, molha-te, fixos os poros, num verde ponto apagado.
Parece-te que o mar troca de lugar com o céu, e a areia é verde. Tua criança interna ainda vive a infância que não teve. Plenilúnio. Domingos. E, no final deles, sempre aquela sensação estranha de algo que ficou para trás.
Nem em pensamento nem em ideologia nada. É na tentativa de ocultar que tudo se mostra. No silêncio, encontras uma boa casca para guardar-te: incolor, sem culpa ou expectativas. Todos os brilhos colorem o céu. É noite. Chove. Que as chuvas te higienizem!
Há tulipas na sala dizendo o frio altissonante. Confessa o teu branco sem te importares. Tudo é sofrimento e, também, o contrário. As permissões que dizes nunca ter tido não estariam amainadas debaixo dos teus temores?
O que ponderar nessa ausência que se lê no marejar da ternura: a única cuja sede te disseca por não te conter e revelar-te que poderias, querias que, mesmo perdida, ela te alcançasse para além do mundo. Isso é mais do que aparenta ser. É o teu mistério que sobra na cintilação do pântano, o ângulo indiviso e visível do rosto cuja maçã é fratura. Vê. Costumo viciar-te das belas coisas – o que é bem mais virtude que vício. Vê? Não te vejo mais. Logo serás tu a interpretação, o estudo da verdade, não vindo, não visto, lembrado, entretanto, no tanto que foste quando um dia.
Vê. Que as mãos já não dormem como antes sobre a cútis. Que a insônia é a não floração do toque. Que as mãos sempre querem ser acesas e loquazes nos quases e nos sempres que são. Brilha, que hoje as estrelas são somente tuas.
Vê. Esses elos são quase secretos. E te observam à distância. Ou, quem sabe, te espiam. Eles entendem bem o que tu somente intuis.
Esse penar de não ter a voz. Nasce no sonoro arbusto dos betumes. Não especules sobre o que te ignora. Aceita que te seja dado somente o que tens. O impossível já diz tudo. A tua preocupação não tem razão de ser. Cada um é para o que nasce. Não quiseste nascer para o que de ti se evade. E te vês fugir: Avalovara. "O criador mantém cuidadosamente o mundo em sua órbita”. E não terás o que não honras nem estimas – porque finges, porque, quando sentes, não sentes – porque mentes. Foge. Nada há para alcançar a covardia. Houve um chamado, e um chamado ouve. Não há mais. Seja sinas ou finais. O desbotamento. Somes. A seguir, sentes falta. Depois, estranheza. Tristeza. Apareces por fim. E nem percebes que sequer houve um início.
Não há o que temer ou prestar contas. Conta apenas que não tens créditos ou débitos ou restos. Os grandes economistas ensinam como fechar balanços [com e sem saldos]. Sem terem sequer sido crianças.
TempHorário. O tempo exato que te assoma à subtração que te lê. A ignara fuga que teu olhar ignora, ingloriamente. A geografia humana é tátil. Lê esse silêncio que faz eco no branco das linhas, lê nessas linhas o que não grafaste com a língua. Vê baços os olhos como se não fossem duplos, como se fossem fios que adentram a causa sem flores.
Vê os teus cílios levemente suspensos no olhar triplicado à luz da madrugada, a morna tez que se amacia de luas, as casas alvas e os pomares limpos, não sonhados, as modulações sob o lenço úmido do dia que não há e que não há no dia.
Vê, na cauda dos cometas, o quanto temes o que te fita. Vê, na íris que te contempla o que não tens, a falta que te prova a vida. Vê, nas pupilas cuja cor o sol revela, afastadas as purezas incertas da noite não dormida pelos olhos descidos do rosto no teu rastro sem caminho – compreende o quanto de luz molha e bendiz o olhar que te esculpe a rota.
Vê o entristecer da figura alheia aos lábios férteis e distintos, vê que ausente é o sol que banhou os dias de sorrir. Vê, na lucidez apenas imaginada, toda a realeza que brota das portas hígidas e hirtas, diz o quanto de espera reténs depois de calcinar teus olhos com o afago da distância. Vê, não importa se dormes ou finges dormir, o que te acorda é a vigília dos olhos. Sempre.
Vê para além da distância que te alveja e te deixa e te faz arco e dardo. Vê o que em ti é venda e te funde e te afunda naturalmente e que é natural a fundura depois da morte e antes.
Vê. Sente em ti que ainda dormes na manhã já alta, espreguiças a noite em que adentraste e é dia no meio-dia dormido dentro de ti que tarde levantas e te perdes dos fios luminosos que aquecem e fustigam a rotina dos amanheceres. O sono te fechará as pálpebras para que as possas abrir assim que o sol te beije, de manhã, no céu vermelho e velho de esperar-te e de seguir-te inutilmente novo – não estaciones na tua estação de verão crendo na eternidade das andorinhas – sê ave antes das penas que não choras – ainda sem embaçar a vista.
Vê, antes de perscrutar, procura os afazeres que te detestam. E os detestados afazeres. Cala onde o círculo é abscissa: coordenada cartesiana correspondente ao eixo horizontal, no plano. O teu tempo é de olhos. Vê então. Que o pensado passado protela o devir e não te protege do agora não inaugurado.
Vê o que o olhar te infunde. E, se vier a lágrima, e ela sempre vem, desprende-te no rio que de ti nasce. Vê por onde descamba o teu medo e restitui o rosto a quem viu antes de ti e não sofreu nenhum arranhão que já não adivinhasse no calafrio das tuas retinas. Vê. A chuva castigou as flores esse ano. Fotografa-te nas flores tardias. São lindas.
Deixa, numa caixa vazia, a marca sem perfume algum. Temes o esgotamento. Talvez seja isso que te deixa opaco porque não te cabem as cores que somente a sinceridade de um arco-íris absoluto pode doar. Tens sede da tua probidade insustentável, chove dentro de ti a fúria. O desalento te fere os pés, o dia pranteia a falta do prato repleto, a chama faminta que flui como húmus na noturna clarificação do raio, desfeita a beleza, rotas as vestes, puídas as vistas e as sobras, o rosto antigo de um fenômeno não vindo, pálido como as amêndoas que doas à boca intacta da Terra. O leão ainda vivo. O teu halo nos olhos”.
Tere Tavares nasceu em São Valentim/RS, é poeta, contista, ensaísta e artista visual. Reside no Paraná desde 1996 em Cascavel, PR, Brasil. É autora de doze livros publicados, dentre eles, Flor essência,Meus Outros, Entre as águas, A linguagem dos pássaros, Vozes & Recortes, A licitude dos olhos,Na ternura das horas, Campos errantes, Folhas dos dias, Destinos desdobrados, Diário dos inícios e Luz. A autora participa de diversas coletâneas e antologias pelo país e exterior, algumas resultados de concursos literários. Os livros Campos errantes e Folhas dos dias foram contemplados pela lei Aldir Blanc, Edital Arte em toda Parte, 2020. Integra a Academia Cascavelense de Letras, ocupando a cadeira de número 26, patrono Tulio Vargas. Blog pessoal: http://m-eusoutros.blogspot.com/ Facebook: https://www.facebook.com/tere.tavares.1/