Lançamento e poema de “O Despertar Selvagem do Azul Cavalo Domesticado” de Francisco Gomes

Francisco Gomes inicia seu livro O Despertar Selvagem do Azul Cavalo Domesticado com a invocação a EO, ou, como compreendemos nós,“Eos”, a aurora, a Deusa do amanhecer, irmã do Sol e da Lua, cuja função era proporcionar a vinda e ida do Sol. Nesses primeiros versos, estabelece sua poética, que será desenvolvida em capítulos que evocam a passagem da semana, em Língua Latina, demonstrando um conhecimento da cultura clássica, capaz de fazer seus versos hodiernos dialogarem com a tradição.

Em princípio, a obra sugere até mesmo algo de narrativo, mas esta seria uma leitura equivocada, uma vez que seus versos, ao serem lidos, ficam ressoando até o final da obra, num efeito polifônico, que recupera o conceito de verso harmônico de Mário de Andrade. No entanto, ao contrário do despojamento estético do modernista, Gomes nos sugere um rigor e, ao mesmo tempo uma ousadia, que lembram Elizabeth Bishop.

O Despertar Selvagem do Azul Cavalo Domesticado é, sem dúvida, uma obra de um poeta já completo, capaz de nos levar por uma viagem poética solar, complexa e fascinante. Apesar da semana sugerida pela estrutura da obra, ela nos convida a ler tudo de súbito, pela maestria que os versos demonstram.

Leopoldo Comitti
Crítico literário, poeta e romancista


Conheça um poema do livro:


| DIES LUNÆ |

SOU UM D’OS QUE VAGUEIAM NO MUNDO

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: observo a opaca estrela
entristecida nos olhos da noite…
Observo a lânguida lua dolorida
nas nuas costelas das nuvens…

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

As últimas pegadas
apagaram-se sob a matilha
de querubins endiabrados.

As últimas pegadas
apagaram-se sob os pés
de virgens enlouquecidomadas.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: madrugada cúbica
in lieblicher bläue

O mundo vermelho cultivado no espelho
guarda sóis indecisos
&
sexos de granito
(esse é um dos mundos que vagueio).

Sobre rosas amarelas
, nojos descabidos
, espumas de súplicas
caminho
, todo cinza
, solstício
, solidão.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: estátua de tédio
mistério-ultra em frutas frias
natureza-morta no banquete dos deuses.

Observo a calcinação da noite
astros-epitalâmios
; harpias depilando as partes íntimas
; bêbados apregoando cismas
; travestis com seus cus a granel…

Vagando
, a volúvel infância capricorniana
invade os sonhos da insônia
(a noite é um banheiro público).

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

As portas fechadas
ladram para os noctívagos.

O beijo em chamas
serpenteia o mamilo.

Os postes estéreis
abrigam urina.

As ruas vazias
absurdam existências.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: uma navalha latina degolando semideuses
ou
hipermetropiados suicidas
no carcomido jardim das aflições
atirando-se em roseiras-kamikazes.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: gato amarelo atento ao dia
(clara noite em descoberta)
; vento quente solfejando Serge Gainsbourg.

As pernas trêmulas tensas…
Tarântulas
, túmulos
, turbilhões de signos
são produzidos pelo parfum de la nuit
(noitescarlate cingida de adagas).

Fugir?!
Tendes-me aqui.
Um urro a fórceps
rasgáspero o imprevisível da lágrima.

Desesperado
, intranquilo
, acordo aos risos
: a brutalidade ocre
agridoce no peito desperto
: mais um sonho inútil
: albinas virgens de prata em estado de musgo
apertando meus colhões improdutivos.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: de mãos dadas com Gide
atravessamos a avenida dos sonhos
rumo ao Sun City Hotel
Rimbaud nos aguarda
com doses de ópio efervescente
os manterei alucinadamente ligados”.

A sonolência persiste
; o cansaço é isca (fácil?).

Para os que acreditam
que a noite é causadora de lesões
, digo
: a noite é um cavalo indomável
, exige ser montado.

Para os que acreditam
que a noite é causadora de lesões
, digo
: cada esquina é um atalho.

Para os que acreditam
que a noite é causadora de lesões
, é porque nunca olharam
bem no fundo
do olho de um cavalo.

A noite
, somente a noite (…)
é para quem
se desliga do conforto.

A noite
, somente a noite (…)
é para
Os que vagueiam no mundo.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: mariposa hibernando
na parede descascada da sala
; saliva reimosa convertida em ELÉTRONS
; teimosa acidez altiva na uretra.

O corpo cheio de gavetas
(a face lisa sem semblante)
– minifúndio sitiado
, na indecisão a vagar
, rompe cicatrizes cristalizadas
convertidas em inúteis sons.

Sons de luz
: extravio de si
na rua obscena dos desavisados.

Tenho vulcões nos poros
&
abalos sísmicos nas veias
: sentinelas anti-sono.

Nas andanças oníricas
corro o risco do esquecimento.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

A identidade se perde
num mergulho esparso
no espaço inóspito do orgulho.

Pouco importa.
O tempo é breve.
O tempo é movediço.
Apenas sigo.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: certezas provisórias
são reentrâncias dos dias…

(colidir sempre com a esperança
: a calmaria traz desassossego).

vida-estratagema
– extensão do finito pantempo –
impõe aos cegos
códigos distorcidos.

Pre-firo (abrir) os olhos
na excêntrica claridade
&
fitar a enferrujada velhice
de tantos séculos
que nos arrasa.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…



Francisco Gomes (cor)rompeu a existência em 1982 no arcaico município de Campo Maior (PI), fixando raízes na provinciana Teresina (PI) aos 7 anos de idade. É poeta, músico, compositor  e letrista. Iniciou as faculdades de História e Letras/Português, abandonou ambas. É autor dos livros Poemas Cuaze Sobre Poezias (FCMC, 2011), Aos Ossos do Ofício o Ócio (Penalux, 2014), Face a Face ao Combate de Dentro (Kazuá, 2016) e O Despertar Selvagem do Azul Cavalo Domesticado (Multifoco, 2018). Tem poemas publicados em revistas, jornais, coletâneas nacionais, blogs, sites, muros etc. Edita o blog PULSO POESIA e a página no facebook MAL DITOS PARALOGISMOS.  Admira a carência orgulhosa dos gatos e a tranquilidade dos jabutis. Adora fígado acebolado.




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