
Peaceful hearts doctor, de Banksy.
E naquele fim de tarde, em pleno ocaso, o céu se vestiu com um manto vermelho vivo e o sol resplandeceu como uma lâmpada psicodélica. De repente se viu em plena festança dos finais dos anos setenta replicando imagens nostálgicas do antológico e simbólico filme: ‘Embalos de sábado à noite”, com John Travolta de protagonista. Ficou, não podia negar, embalado agora num torpor momentâneo do instante rememorado. Nisso ergueu o copo de uísque e o pôs contra a luz solar… Por alguns minutos sua mente e imaginação embarcou lépida e célere de uma inesquecível juventude e imbuído de modo ainda sóbrio desses momentos já vividos e vivenciados na alegria e balburdia juvenil, esboçou de maneira involuntária um sorriso, discreto, enigmático, mas feliz.
 
Um peculiar automatismo, o fez levar o copo à boca e ávido sorveu mais um gole, com um guardanapo branco que tinha na mesa, elegantemente o levou aos lábios e com toques leves e sutis enxugou a umidade da boca. E realmente ali poderia ter embarcado numa viagem pela quarta dimensão indo ao passado…, mas com rispidez no pensamento recusou o embarque por certo saudosista. Era muito rígido em seu pensar tirano, matutou severo. O passado já passou, de nada adiantava reviver ou se condoer. Então murmurou a estrofe inicial de um poema seu:
 
 “De nada a vida vale
 Se o que me valia
 Foi perdido no tempo
 Feito poeira ao vento…”
 
Neste momento de um último gole e, discretamente, solicitou mais uma dose ao garçom. Era um jovem sexagenário, ainda muito chegado aos jogos do amor… Voltou então seus pensamentos para sua grande paixão infelizmente ainda platônica, um pedaço de mal caminho, uma belezura só… Uma “pixotinha” de  cinquenta aninhos!  E ele mesmo gracejava e gargalhava com essa qualificação singular com que a definia.
 
 – Ê… Ê… Será que já estava senil? Impossível, afinal ainda se considerava um jovem sexagenário ainda ativo em suas atividades profissionais de professor aposentado, fazendo algumas viagens, alguns investimentos imobiliários, exercitando o físico diariamente, com uma dieta regrada, semanalmente bebericava umas doses de uísque e era só. Aqueles olhos negros o envolviam num negrume fantasmagórico de uma misteriosa paixão, uma arrasadora e inexplicável paixão queimava seu peito, ele, extremamente tímido, nunca confessou a pixotinha esse seu sentimento. Uma paixão secreta, mas sabia seu nome, endereço, mas infelizmente a jovem era casada e isso tinha cheiro de caixão. Não era timidez apenas, mas também respeito e precaução.
 
Neste momento, novamente voltou o pensamento para o lindo entardecer ouvindo entretido o ronco do mar, olhando deslumbrado o lindo ocaso vestindo o céu de um vermelho vivo. E com um sorriso enigmático novamente tomou mais um gole e permaneceu impassível talvez com o pensamento voltado para ela… A primeira lembrança dela lhe veio à mente quando num desinteressado cruzar de olhos a viu, ela estava belíssima, como sempre e vestia um diminuto biquini… Isso fora há uns quarenta anos, desde então uma paixão secreta se apossou de todo seu pensar. Em inúmeras vezes se pegara a sonhar acordado tendo-a em seus braços, beijando-a com uma avidez desmesurada de um ardor insaciável de uma infinita paixão. Uma paixão imorredoura, uma coisa que superava a própria vida, tinha algo de espiritual… Não seria apenas paixão, visto já existir há quase duas décadas. Não cansava de quando possível, olhar-lhe o rosto, o corpo todo, onde a crueldade do tempo teimava em devastar. Ainda era uma bela mulher… Uma belíssima mulher… Aquela mesma mulher que ainda trazia traços de sua meninice e um encantador sorriso brejeiro e sedutor. Por alguns instantes fechou os olhos e visualizou mentalmente sua musa a deslizar sensualmente a ponta da língua nos lábios rubros, aquele sutil ato o deixava louco de desejo de beijar-lhe os lábios, abraçar-lhe o corpo, desnudando-a e beijando-a inteira dos pés à cabeça com paciência, desvelo, amor e paixão. Será que em vida nunca realizarei esse sonho? Ele tinha certeza que ela sabia…Que ela sempre soube do ardor de sua paixão!
 
 Nisso, uma onda mais forte, o despertou de seus devaneios oníricos e num muxoxo murmurou fatídico:
 
 – Ela ainda é a mulher mais bonita que conheci em vida… Lindíssima! De uma coisa não posso negar: estou ficando obsessivo nesta paixão desenfreada, esqueço até mesmo que ela já partiu, vítima de covid 19 e que nada mais a trará de volta. Murmurou pensativo.
 
Neste momento com um lenço de fio de algodão, ergue o braço direito e de maneira sutil e discreta enxuga umas lágrimas que agora teimam em jorrar de seus olhos pequenos e negros. Após instantes sorve mais um gole de uísque e fixa seus olhos no horizonte, onde descortina-se o ocaso e compara-o ao próprio ocaso de sua vida, que devagar se despedia a cada dia que se despedia. Não se arrependia de nada que fizera em vida nem mesmo de suas loucuras juvenis, só se arrependia do que não fizera ou deixara de fazer e uma dessas era que nunca confessara sua paixão a ninguém, e cantarolou um velho fado:
 
 “ De quem eu gosto,
 Nem às paredes confesso…”
 
Nesse momento, silenciou e permaneceu imóvel por longos minutos, depois ergueu-se da cadeira, e rapidamente chamou o garçom pagou a conta e passou a perambular pelas ruas e ruelas da cidadezinha. Ele estava chorando silenciosamente e o seu caminhar constante o fazia esquecer um pouco dela… Era um homem introvertido; deu de ombros, indiferente e sofrido com uma rigidez pétrea na face embora estivesse completamente estraçalhado por dentro.

José Lucídio Castro de Mesquita, natural de Reriutaba-Ce, residente em Sobral-Ce é engenheiro civil, advogado, professor universitário, amante e cultor da última flor do Lácio, como diria Bilac. Autor do livro de crônicas: Luzídios, Lúcidos e loucos.