Neste século, sendo você um apreciador ou não, um dos fatos mais provocantes na literatura são os saraus, que acontecem nas periferias de São Paulo, ressignificando os espaços urbanos como praças, parques e bares, colocando na boca dos jovens versos de poemas escritos pelos seus pares, reproduzindo em menor escala, mas com maior sinceridade o canto em coro das canções populares em shows musicais, possibilitando assim momentos de comunhão entre os presentes.
No bairro de São Miguel Paulista, Rafael Carnevalli, 29 anos, é uma voz singular na cena cultural, ele é um dos líderes do Movimento Aliança da Praça (MAP), evento que ocorre uma vez por mês, em um domingo, na Praça do Forró. Rafael também integra o grupo Filhos de Ururaí, o qual realiza intervenções poéticas nos trens da CPTM.
Em 2015, o jovem poeta lançou seu primeiro livro intitulado Amador, com mais de mil exemplares vendidos, um dos muitos casos de sucesso invisibilizado pelos cadernos culturais,realizado de forma independente. Em maio deste ano, ele lançou Maloca, um trabalho onde a voz de Rafael está mais amadurecida, mais afiada, mais lírica.
Iniciando cada capítulo com uma narrativa que dá o mote para os poemas, o livro é dividido em três partes: Moleque, Moloch e Maloca. O primeiro poema tenta compreender a violência policial, divagando sobre o que pensam alguns oficiais e propondo outro cenário mental aos opressores: Se eles imaginassem…
A crítica à sociedade de consumo, que percorre alguns poemas aparece já no segundo texto, meditando sobre a celebração do Natal: Deus é dentro da gente/ natal é cobrança/ na vida de muitos/ não é presente.
Muitos escritores se alimentam em suas memórias da infância para criar suas obras, este é outro traço presente nesta segunda obra do autor, onde as brincadeiras e cenários comuns a uma criança periférica estão espalhados em alguns versos que o autor pegou emprestado de suas memórias: felicidade/ eu e minha criança de mãos dadas.
Rafael bota o bairro onde nasceu e vive no mapa, dialogando com a história do lugar, os indígenas, povo ancestral, o povo local de antes da invasão, os movimentos contemporâneos de cultura como o já citado MAP e o precursor MPA :a santa terra em que cresci. Sobre São Miguel Paulista.
O escritor não excluiu a chamada literatura erudita das suas referências, ele dialoga com ela, do famoso poema de Drummond, ele recria: tinha um livro no meio do caminho, versando sobre seu contato com o suporte e a importância deste em sua trajetória.
Ainda sobre o seu bairro, aparece a escola estadual Carlos Gomes, que possui destacado trabalho nas atividades culturais, Rafael, graduado em Letras, professor de Língua Portuguesa, reflete sobre a educação, o espaço escolar e os jovens:jovens são pássaros/ quebrando gaiolas/ alçando novos ares.
O trabalhador não é mera ficção ou figura exótica, aparece como protagonista, um humano em toda complexidade que cabe no termo: tô atrasado/ e na pressa/ esqueci meu alguém.
O rapaz não se furta de temas espinhosos de nossos dias como a volta dos cidadãos de bem, redução da maioridade penal, torcidas organizadas e racismo: me diz qual é o emprego/ de quem entra menos/ e sai Zé Ninguém.
Em carta aos meus iguais, num tom de mea-culpa, o artista faz uma autoanálise: quando emanamos mal ao mundo/ amaldiçoamos nós mesmos.
O tom prosaico aparece em Elano, a história de um home pobre e o destino das personagens que o cercam, cada um com seus desenganos: o que lhe incomoda é se sentir sozinho.
Rafael acerta bastante em poemas curtos, os quais parecem dialogar com poemas produzidos por Oswald de Andrade, nos quais ele realiza bons deslocamentos de sentido de expressões corriqueiras, como os dias e a gaiola semanal: só queria ficar em casa domingo/ sonhando com a segunda vinda.
Dentro da chamada pós-modernidade, os poetas periféricos parecem encarnar em certa medida o papel vivido pelos trovadores ao longo de parte da idade média, ao lermos Maloca, sentimos automaticamente a necessidade de realizar a leitura em voz alta, para quem lê e já pôde presenciar as declamações de Rafael nos saraus, sente que cada palavra cravada na página, está acompanhada da voz do filho da rainha Gisele, do seu tom, do seu ritmo de fala, leia com olhos e ouvidos atentos e com certeza vai encontrar um cantinho dentro deste livro.
fotografia de Rafael Carevalli : Sterfane Estime
Fernando Rocha é paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, professor de Língua Inglesa na rede municipal de São Paulo. Fotógrafo amador, autor do livro de contos Sujeito sem verbo (Confraria do vento) e da novela Oslaços da fita (Penalux), Possui um conto na coletânea Descontos de fadas (Alink editora). Colabora com as páginas Letras inacabadas e Letras et cetera. Tem textos publicados nas páginas Musa rara, Cronópios, Jornal O Relevo, Meleca-chiclete.
Uma resposta
muita boa resenha, nos dá um panorama do livro de Rafael, e no caso como o conheço as imagens surgem na nossa frente conforme discorre o texto. Nos instiga a conferir, no meu caso que tenho o livro e está na fila para leitura, já me sinto animada para o que posso encontrar nas páginas! Abraços aos dois!!
Ligia Regina