Mosaico absurdo: Leopoldo Comitti

Capa: Bruno Palma e Silva

 

Acordo em meu quarto com o sopro assustador
do velho vento das assombrosas noites.
Tudo gira, das paredes para o centro, pondo-me
em uma perspectiva insólita de sustos e deleites.
Como que partida em coloridas pedras, a parede
zomba de meu assombro e brinca, briga com o ar
que a serve de escada para algo ainda a flutuar.


Meço com cuidado as peças, como que joga
xadrez. Cada pastilha interroga suas divisas,
como a procurar os cruéis caracteres que as farão
colidir numa planilha divina, à qual não temos acesso.
No fino traço sobre o papel tento , meio tonto,
a delinear cerâmicas cerâmicas muito antigas,
policromadas. Cobre-se de poeira o chão
e algo brilha no espaço do nada. Aos poucos,
sob a mão do operário, criterioso, mas simples,
ergue-se um quadro que sobe pelo edifício
inteiro. Nos desvãos da noite, o vento canta
na cantaria e sopra, expele o pó. Um raio desliza
pelo céu absurdo, em pesadelos.  Sobra, de lógico,
a cena que cresce na vertical, em desenhos
                                               múltiplos.


Finalmente, meu cenho se ergue. Observo,
como um servo diante de um muro ainda novo,
a ser construído. Com a delicadeza de quem carrega
um frágil ovo em sua cápsula rachada.
Tonto a tanto, tento divisar, logicamente,
sobre a fachada inteira da construção febril,
uma ordem que me acalme pelo entendimento.
Mas a difícil arte está pronta e acabada. Curiosamente,
não há uma imagem viva, de algo em si próprio,
significativo. Há resquícios do vento, do trabalho e,
principalmente, do raio escuro que parece uma ressaca.
Em pastilhas de barro, cimento e a cola da arte,
criou-se o abstrato significativo e múltiplo e bruto,
ainda que muito esquivo. Como espelho, devolve e retoca
a realidade em cenas existentes unicamente na cerâmica
louca, a multiplicar riscos e confundir amenas imagens
com cruéis notas de música inexistente. Fiéis espelhos
colam-se à imagem já pronta e refletem-se mutuamente.


Finalmente a pena, antes pétrea, volta a riscar novamente.
Mas não desenho,  não copio, não registro. Apenas
faço do mosaico o ponto primeiro, até primevo, de uma sintaxe
nova, capaz de reunir o irredutível. Imagens laceram pastagens
entre altos edifícios. A calçada, antes inexistente, passeia
por fachadas brancas e delineia uma imagem indizível:
mas a palavra diz, e diz coisas que parecem não fazer sentido,
mas que nos levam a um prazer extremo, como vertigem
de linguagem que não fala, mas reflete aquele corpo lido.



Leopoldo Comitti

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