Nada Originais – Cristina Judar

Ilustração: Andreaa

[Cristo geme espinhos enquanto eu, vítrea capelã, oro ao olho de deus, ouro. Vital é aquilo que me transparece, longilíneo monge, num átimo, eis você, Victor, num palco, num pódio, mais alto, ao. Vejo, crucifixo, falo, dedo o que é a deus dado, rasgo, consagro, crucifico. Eu, sântica, sânscrita, satírica, prego-o, veludo meu, amor, tecido, a morte, sidosantosafosarrafo, sinto, quero, me abro tanto, Victor, sequer viu].

Me chamo Encarnación Rodrigues. Virada na noite, acabo de sair do culto dominical, dolorida nos joelhos, stripper de profissão, de coração poeta, mais de 100 sapatos na dispensa, mais de 100 textos salvos na pasta “originais para editoras”, rodada nas altas rodas, festas privé em especial, políticos, artistas cabeças, ricos velhos, cantora de axé lésbica sem coragem de se assumir, tem de tudo, e nada, nada mesmo me abala, a não ser aquele cara pra quem escrevi essas palavras aí acima. Os iniciados nos ritos masô são bem isso o que se vê no altar: eles se chicoteiam, se queimam, giletam, estapeiam, socam, esmurram, milagreiam ao enfiar punhos ou braços inteiros em cus que medem centímetros. Gozam, repetem o gozo, se escorrem, lambuzam e ficam nessa por horas. Sexo puro, divino pra eles. Digno, eu digo. Por Victor, não faço ideia de quantas hóstias já engoli. É preciso fazer força com a língua pra destacar do céu da boca aquela massinha de brancura e saliva, e tudo isso sem que ninguém ao redor se dê conta, pra, então, deglutir na elegância, os olhos fixos nas luzes que atravessam os vitrais. É coisa para profissional fazer o resíduo de um corpo deificado entrar em si. Nesse meio tempo, Victor engole olhares.

E exorcisa eus. Os meus, os da audiência encadeirada em mogno, não canso de pensar que toda essa mise em scène de trajes e gestuais é uma representação para acalmar essas mentes de mogno, respectivamente. Por tudo isso, somos una sola carne, sangue do mesmo sangue, irmãos não-incestuosos apenas por um triz, nossas expressões faciais como as dos anjos, e nos exibimos à frente do mastro principal. Confessionária, Victor me viu, pela primeira vez, pixelada atrás das grades, em aroma dulcíssimo, sotaque entre castelhano e argentino, a modulação de contralto a soprano, ele supunha inventadas as festas e as taras, o negro e o vermelho em detalhes do tamanho de unhas, de um trecho de lábio, de um risco de olho. Enquanto uma palavra era dita, eu contava casos em que não havia Virgens Marias que bastassem, nem Pais Nossos. Daí que eu tive uma ideia, cansada de ir ao confessionário olhar para as treliças e cheirar o mogno característico delas, esperando cruzar com Victor algo mais do que sílabas de silêncio, expiração, saliva, resíduo, sombra, veludo.

Tudo bem que os iniciados nos ritos nagô são bem isso, celebram o silêncio, a expiração, a saliva, o resíduo, a sombra, o veludo, mas no avesso da negação em que Victor vive. Os nagôs são virtuosos, não vis, eu digo. Comecei a escrever poemas, cartas, contos, frases ou até uma só palavra em um pedaço de papel que eu deixava sobre o altar, à vista dos olhares diagonais dos santos. A cada semana, sob um julgamento de gesso e cimento, a tentativa de revelar, e dele me aproximar. Criava minha obra para um único leitor. Recebi uma ligação durante a missa, eu vibrava na frequência do toque até perceber que era apenas o celular que ditava minhas descomposturas físicas. Saquei o aparelho entre o caderno de orações e o consolo made in china no formato de batom, era Miguel, velho Miguel, como vai, não posso falar agora, um minuto e já retorno, ok, beijo. Victor, conectado a mim que era, pareceu perceber a intervenção de Miguel, aumentou o tom da voz ao glorificar, hosana nas alturas, os céus e a terra proclamam a vossa glória, santo, santo, santo é o senhor, braços e dedos esticados aos céus. Desci as escadas da igreja com uns saltos já rodados de tanto amassar peitinhos, sofrer lambidas, saltos de enfiar em furinhos mil. Quase escorreguei, obra do sereno matinal, oi Miguel, posso falar agora. Tá tudo certo, pode ser, sexta, Rosa Deluxe, claro, é mais radical, eu tenho tudo, levo sim, pra quantos é, ah, tá bom, preto, vermelho, não vai ficar tão barato, é, vou ter que procurar, sei sim, aquele que esquenta, se não tiver eu dou um jeito, ligo hoje mesmo, o fornecedor tava viajando mas ia voltar essa semana, acho que vai dar certo, qualquer problema te aviso, fica tranquilo, isso, tá, depósito em conta corrente, beijo. Ia ser pauleira, a semana estava puxada, naquelas noites quase não escrevi, quer dizer, escrevi mesmo foi no corpo dos outros, histórias que ninguém quer contar mas faz questão de viver entre quatro paredes, quatro pernas, quatro quartos, de quatro. Mas essa não dava para negar, Miguel e a sua fidelidade eram importantes, fundamentais eu diria, tábua da salvação em tempos amargos, pena ele ser louco demais para representar qualquer possibilidade de perigo, de assunto relacionado a este meu sagrado coração. Chegou o dia da festa, digo, do encontro-radical-masô-anarco-fetichista-sado-grupal. Pouco de mim, fisicamente, era exigido nessas ocasiões especiais, que, por outro lado, eram as mais desgastantes.

Seja pela necessidade de fazer tudo correr bem, por ter que pensar na segurança dos outros enquanto eu representava papéis das mais diversas ordens, por visitar os terrenos imprevistos do desejo humano e suas irracionalidades, por testemunhar quem dói porque quer doer e, depois de tudo, ainda e, se possível, me divertir. Seis palavras ditas na sequência eram a chave de entrada para o apartamento no centrão velho de São Paulo, uma senhora iugoslava aluga o imóvel só para isso. Cortinas pretas pesadas bloqueiam a visão de quem olha de fora: no apartamento de Yushka é sempre meia noite, 24 horas por dia. Nas paredes vermelhas e roxas há luminárias e candelabros somente em alguns pontos; em lugares como esse, a única função da luz é deixar o clima obscuro, em uma espécie de inversão de princípios. Miguel já estava por lá com os rapazes submissos, todos vestidos com collants de látex negro que cobriam o corpo inteiro, havia apenas uma cava com zíper para o sexo exposto, mais três orifícios diminutos nos capuzes; um na frente da boca, um pra cada olho. Era impossível reconhecer o que havia no interior daquela jaula em formato de indumentária. Miguel regalava-se como dono e senhor de cinco sombras lustrosas. Fui eleita dominatrix-assistente, meu cliente me deixou com um de seus escravos preferidos. Segundo ele, o mais louco e perverso, adorava as dores, mas também era mestre em tentar reverter o jogo. Tive grande trabalho pra domar essa figura bestial rosnante, condensada em uma silhueta negra. Ordens não eram suficientes, apenas comandos altamente restritos acompanhados de punições. Ele ria, desafiador. Ria da dor, o desgraçado. Miguel veio tirá-lo de mim depois de duas horas. Levou a sombra envolvida em correntes. Tinha sido uma noite longa, especialmente para Miguel, diretor-presidente de uma editora internacional com negócios em expansão na América Latina, a quem, aliás, eu jamais tive coragem de contar que escrevia ficção. Eu sempre passava perto, ensaiava frases mentalmente, mas desistia ao pensar em tudo o que ele já havia lido na vida e nos grandes nomes da literatura com quem trabalhava. Miguel era um cara poderoso, com grana solta e serviçais às pencas, mas isso não bastava. Precisava exercer a figura do rei, e pra isso praticava o masoquismo. O nobre das esferas subterrâneas dos instintos era mesmo surpreendente e me convidou pra um café da manhã executivo a fim de recuperar as energias, no dia seguinte, era umas 6 da manhã. Tá inteira? / Tô quebrada. / Ele te deu muito trabalho? / Demais, insiste na desobediência / Um absurdo, sim / Eu gosto de todos eles. É a quinta vez já / Você criou um séquito / Gosto de você pela capacidade de dizer séquito / E você ainda consegue ser gentil depois de uma noitada / Por isso a gente se entende / Ovos mexidos, uma média / Salada de frutas, queijo branco no pão integral, um expresso / Como eu falava, adoro esses meus mocinhos pagos / Você os conhece bem? / Relativamente. Sei que um é aspirante a ator, outro estuda direito, outro não conta de jeito nenhum, mas sei que veio do interior. Tem também um escritor que promete bastante. / Mentira. Sobre o que ele escreve? / Ele é muito, muito bom, uma máquina de sexo e de boa prosa / Que viagem / Tenho certeza que pratica SM só pra alimentar a escrita / Eu preciso ler o que esse cara escreve / O que você viu essa noite não é nada perto do que ele faz com as palavras / Não diga que é o escravo que ficou comigo / Justamente ele / Porra! / E tem mais, a família é ultraconservadora, pelo teor dos textos ele prefere não se mostrar, utiliza um heterônimo / Manda o livro pra mim / Fechado. Nos dias seguintes, voltei para o trivial. Muito trabalho e missas pós-foda, numa época em que meu platonismo sacrossanto mobilizador da escrita de caráter quase automático estava às alturas. Encontrei o pacote com o livro na portaria do meu prédio, era uma sexta feira exausta, uns quinze dias depois do encontro com Miguel e seus eleitos. Pra ser sincera, eu nem pensava mais no feito, só lembrei do combinado quando rasguei o papel de embrulho. Na capa, a informação: uma compilação de textos em prosa poética de Arthur G. Villens.

Dados da editora, Ficha Catalográfica, Índice, Introdução. Primeiro conto. Segundo. Passei rápido por umas folhas. Pulei para o meio. Fui para o final. A última página. Voltei para o começo. Definitivamente, não estava diante de um livro. Mas de uma estrutura circular na parede à minha frente com minha imagem transposta bem no centro, com exatidão. Traço por traço. Linha por linha. A cada palavra. Um extrato meu. Minha tentativa frustrada. Todas as frases entregues ao vigário, a reprodução de cada respiração estilística. Sem ao menos uma paráfrase, a tentativa de um disfarce, o uso de máscara ou capuz. Tudo o que dei vazão no romantismo da escrita à mão e no afã do momento, sem a mínima prova de que a autoria da iluminação repentina, condensada no traço à caneta, era minha. Era só minha a fricção da esfera metálica que gerava faíscas no papel e que fascinou o editor. Para quem liguei imediatamente, fazendo-me agradecida pelo presente. Foi um papo amigável. A ponto de marcarmos uma nova festa com os escravos de aluguel. Dessa vez, tudo seria por minha conta, pelo prazer da companhia, por retorno à gentileza, pelos anos de fidelidade do meu melhor cliente. Miguel aceitou de pronto, inclusive com a nova condição imposta. Novamente, ficaríamos só eu e o escritor, que, nessa noite, teria uma surpresa: ao entrar no quarto, seria obrigado a ficar totalmente nu e a tirar o capuz. A justificativa? O meu prazer seria incalculável ao conhecer o rosto e a alma de tamanho talento da literatura, de quem eu, imediatamente, havia virado fã. Desliguei o fone, já pensando em como seria a minha miseenscène e corri para a igreja. Não perderia a missa das seis por nada desse mundo.


*O conto “Nada Originais”foi originalmente publicado no livro “Roteiros para uma Vida Curta” (Editora Reformatório), de Cristina Judar.


Cristina Judar é escritora e jornalista, autora das HQs Lina (Editora Estação Liberdade) Vermelho, Vivo (Devir), do livro de contos Roteiros para uma Vida Curta (Finalista e Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014) e do romance “Oito do Sete” (contemplado pelo ProAC de Prosa) – ambos publicados pela editora Reformatório. É coautora do livro-arte “Luminescências” e criadora do “Questions For a Live Writing”, projeto de prosa poética desenvolvido na Queen Mary Universityof London. É uma das editoras da revista de arte e cultura LGBT “Reversa Magazine”, além de integrante do conselho editorial da revista de literatura e artes visuais “Theodora”.


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