Não se pode consertar pó: Rafael Zoehler

Ilustração: Erika Martins

Algumas coisas são quebradas em pedaços tão pequenos que viram pó. Não se pode consertar pó. Moído e moído e moído e passado na peneira. Fino de escorrer por debaixo das portas fechadas e pelos cantos das janelas de vidro. Tão insignificante que deixa de existir. Minha família é esse pó. Impossível montar de novo. O pó nunca volta a ser o que era. A única coisa que sobra é aquilo que se acumula em cima das coisas velhas. Velhas como essa casa. Parei com o carro em frente ao portão e não sei o que vim buscar aqui.
A rua está vazia, é o que se espera de uma cidade de praia fora da temporada. A casa também. É o que se espera de um lugar abandonado. Fiquei com ela depois da morte dos meus avós e nunca vendi . Não consigo. Coloco o preço baixo ou a falta de interessados como desculpa. Minha tia pede pra vir de vez em quando, mas não deixo. Ela não merece. Ainda acredito que tudo pode voltar ao normal. Há dez anos acredito. 
Escorrego o portão para a direita e entro com o carro. A piscina ao lado da entrada está vazia, só um pouco de água no fundo por causa da chuva. A rede ficava pendurada ali perto. A mesinha branca de ferro, com tampo de vidro e quatro cadeiras desconfortáveis, está no mesmo lugar. Ninguém vai roubar, não vale o trabalho. Ao lado, o balanço de três lugares feito do mesmo ferro branco. Minha mãe me fazia dormir ali quando eu era bem pequeno. A casa tinha um pinheiro alemão bem na frente, e minha mãe costumava dizer que, quando o pinheiro ficasse maior que a casa, alguém da família morreria. Foi ela, acidente de carro. Eu tinha dois anos e agora tenho um cateter  por causa da hidrocefalia. Meu pai tem uma prótese de fêmur. Nós dois temos um buraco.
Levo o carro pelo corredor lateral que funciona como  garagem. No verão, todos os carros se enfileiravam e pequenas brigas pra ver quem ficava na frente aconteciam. Brigar por ordem na garagem nunca foi o problema. Foi dinheiro mesmo. Dinheiro mata mais que qualquer coisa, e mata mais fundo. Desligo o motor e abro uma fresta no vidro, apenas pra não morrer asfixiado. Não vou entrar na casa hoje. 
Acordo cedo com o desconforto da cama improvisada. Procuro no molho de chaves aquela que abre a cozinha. A entrada fica nos fundos, perto de onde estacionei o carro. A grama, cinza como todo o resto, cresce onde não devia. Invade o espaço. Minha boca tem o gosto pegajoso da saliva velha. Preciso de um banheiro. De muitas coisas, na verdade, mas um banheiro é o mais imediato. Não sei quanto tempo vou ficar.
Caminho até a porta, passando pela casa dos fundos, onde ficavam minhas tias. A mais velha no andar de baixo e a mais nova no andar de cima. Em frente à porta da cozinha, ainda fora da casa, uma mesa posta, com café e mamão, pão integral e Becel . Um senhor careca, de olheiras fundas e sobrancelhas revoltadas, com as pernas elegantemente cruzadas, lê o jornal.
– Vô?
– Relógio grego à base de água, começa com “C”.
O vô conta os quadradinhos das palavras cruzadas.
– Tem nove letras.
Ele toma um gole de café com leite.
– O senhor morreu.
Ele conta os quadradinhos de novo.
– “O senhor morreu” tem treze letras. E não começa com “C”.
Sento na cadeira mais próxima. Seguro as coisas pra  sentir o seu peso. O mamão com farelo de linhaça é real. O pão, o mel, a margarina. Tudo verdadeiro. Nesse espaço ao redor da mesa, a grama está bem cuidada, a toalha tem cor. As coisas têm cheiro.
– O senhor gosta de farelo de linhaça?
– Não.
– Então por que come?
– Tem que comer, dizem que faz bem.
Pego um pedaço de mamão cortado com linhaça. Horrível.
– Clepsidra.
– Como?
– Relógio grego à base de água. Clepsidra.
– Clepsidra…
Ele conta os quadradinhos.
– E não é que cabe?
Ele desenha as letras no jornal.
– O que o senhor tá fazendo aqui?
– Tomando café.
Chico, o passarinho, canta. O vô fica de pé, tira um talo de rúcula do bolso da camisa, sempre gostou de camisas com bolso,  e coloca na gaiola do canário.
– O senhor pagou por essa rúcula?
– Não. Peguei só esse pedacinho na feira, ninguém vai reclamar.
– O senhor é ladrão?
– Só de rúcula em pequenas quantidades.
Pego o jornal. As palavras cruzadas estão quase completas, ele usou inclusive aquelas dicas que ficam abaixo da tabela. Fazia palavras cruzadas porque morria de medo do Alzheimer, queria exercitar o cérebro de qualquer jeito. Corro para a data. O dia é o mesmo de hoje, o ano não. É o jornal de dez anos atrás.
– A Raquel não veio?
– Raquel? Não, não.
– E o Vitor?
– Também não, vim sozinho.
– Pena, o Vitor gosta da piscina.
– É.
– Bom, licença. Se eu não for no super tua vó me mata.
            O vô se vira e entra pela porta da cozinha. Tudo some como fumaça. A mesa, o mamão, o pão, o mel, a Becel, até o Chico deixa de existir. A porta volta a estar fechada. A grama volta a ser intrometida. Fico sentado na cadeira, agora suja, sem entender o que aconteceu. Meus dedos ainda estão melados de mamão e linhaça.
            Entro pela mesma porta, ligo a chave geral, avanço pelo corredor e abro o primeiro quarto, o quarto dos meus avós. Acendo a luz. Puro mofo. A cama sem colchão, uma das tias deve ter levado, os armários sem nada dentro. Abro o quarto da minha prima, o quarto de hóspedes, a sala, a porta da frente, os armários dos banheiros, a tampa do motor da piscina. Encontro sabonetes rachados de velhice e muitas lembranças. Na casa dos fundos, nem os móveis, só uma geladeira enferrujada, fora da tomada, e rastros de cupins. Deixo todas as janelas abertas.
Tomo um banho, pego o carro e compro o básico no supermercado. Água, refrigerante, pão, frios, bolachas, maionese, pizza congelada, hambúrguer congelado, lasanha congelada, o-que-mais-tiver-aí-de-congelado e miojo. Ligo pro homem do gás e acerto o corte da grama com ele também. Passo na banca, compro um livrinho de palavras cruzadas Coquetel. 
– Tradicional corrida de rua disputada no final do ano.
O vô engole o pão integral.
– Quantas letras?
– Doze.
– Tem alguma?
– A terceira é “O”.
– São Silvestre.
Conto os quadradinhos no papel.
– São Silvestre cabe.
Escrevo as letras nos respectivos quadradinhos.
– Área fechada por quatro ruas, dez letras.
– Quarteirão.
– Quarteirão…
Anoto a resposta.
– Preparado medicinal pastoso, oito letras.
– Começa com o quê?
– Começa com “U” e termina com “TO”.
O vô assobia para o Chico, que responde.
– Unguento.
Conto os quadrados.
– Unguento cabe.
Mastigo pão com mel esperando Chico terminar de cantar. 
– Cadê a vó?
– Dormindo.
– E cadê todo mundo?
– A Tize não vem mais, a Dinda vem de vez em quando.
– E a Bruna e a Bianca?
– Ficam na casa da Tize.
– Vocês ficam sozinhos aqui? Só tu e a vó?
– É.
– É perigoso dois velhinhos sozinhos assim.
– Ah, no máximo a gente morre.
O vô levanta da mesa.
– Vou dar água pras plantas.
Some.
O livrinho de palavras cruzadas passa rápido. Todo dia, das seis da manhã às sete e quinze, o vô aparece. Não só ele, a mesa, as cadeiras, a rede, o canário Chico, o café, a grama e a pitangueira de dez anos atrás vêm junto. O jornal sempre acerta o dia e sempre erra o ano. Vivemos dias em sequência com dez anos de diferença. Ele nunca pergunta nada de mim, e eu nunca tento entender com ele o que acontece. Vim procurar respostas, não quero mais perguntas.
– Hoje de tarde voltamos pra Porto Alegre.
– Já?
– Já, a vó anda ruim da coluna.
– Sempre essas costas.
– Tá bom de praia já.
– Aproveitaram as férias?
– Ah, sim.
– Transaram muito?
– Palhaço.
Ele arruma o talo de rúcula na gaiola do Chico.
– Não fica triste que não vem mais ninguém?
– Fico.
– E não faz nada? 
– Não tenho nada pra fazer.
– Podia ligar pras duas, pra Tize e pra Dinda, e mandar elas fazerem as pazes.
– Elas já são velhas demais pra eu mudar alguma coisa.
– E isso não te deixa triste?
– Deixa.
– E então?
– Brigar vai me deixar mais triste.
Devagar, o vô descasca uma maçã e corta em cubinhos. Pega a caixa de palitos de dente e espeta um palitinho em cada pedaço de fruta. Empurra o prato pela mesa para me oferecer.
– Eu não tenho mais idade pra isso.
– Então não quer?
– Quero.
Como um pedacinho espetado de maçã. O velho coqueiro cresce torto mirando o céu, as palhas secas se penduram de cabeça pra baixo esperando a hora de cair.
– Eu gosto dessa casa.
– Eu sei.
– Contava os dias só pra vir pra cá no verão.
– Vocês aprontaram bastante.
– Lembra quando a gente explodiu o formigueiro com bombinha?
– Lembro. Eu que comprei as bombinhas.
– Lembra quando o senhor caiu do coqueiro?
– Olha, isso eu esqueci.
– Ha. Até parece.
Sentado na cadeira, o vô balança a perna cruzada.
– Quem sabe eu deixe ela pra você.
– Ela?
– A casa.
– É. Quem sabe, vô.
Ele levanta.
– Vô.  
– Quê?
– Antes de ir, o senhor pode chamar a vó?
Ele para na porta e vira o rosto pra mim.
– Rafa, tu sabe que ela gosta de dormir.
Tudo some como fumaça.
Descongelo a geladeira e tiro da tomada, fecho a válvula do botijão de gás, desligo a chave geral. Passo o cadeado na porta da frente e nas janelas maiores. Tranco a porta da cozinha. Coloco o que sobrou, miojo, bolachas e meia garrafa de Coca-Cola, no carro.
Pego um livrinho novo de palavras cruzadas e largo em cima da mesa.
Deixo pro vô responder.




Rafael Zoehler nasceu em Porto Alegre e passou a maior parte da infância e da adolescência em Manaus. Formado em Engenharia de Produção, trabalha como redator publicitário em São Paulo. Em 2020, lançou pela Editora Patuá o livro de contos Testado em animais, seu livro de estreia.


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