
No caminho
parece uma coragem:
de onde volto?
[mas eles não moram mais ali]
aonde costumam ir
no que me desata?
ruas que ruídos fazem-nas
do lado oposto
atraem toda a gente
ficam desertas
por entre o escuro tombado
que vêm à flor dos domingos
— quais as ruas e quais os homens?
o molho de chaves da herança
: dos perdões
as idades
/ sons escondem nos crepúsculos seus sinos /
trago nas mãos a eternidade
esmagada & escorregadia
e não lhe tenho tempo
procuro minha família
mas não sei para o que estou pronto
o andador o velocípede o
pirocóptero
raptaram as manhãs
restou o sol nas formas das coisas
minha baladeira mais triste
que o assassinato da Rasga – mortalha
ainda esconde a dor nos melhores abraços
a cidade esconde a planície
a entrega ocupa o sonho
a vida vence a própria necessidade
o açude fica sangrando
no medo da Dominga – Doida
no ódio do Balão Mágico
entre o presépio
a Barra Circular:
pai me dava o guidão
por entre cama mesa e banho
dos céus num aceno
e afinal nossa casa
dava para os longes das conversadeiras
onde distâncias tremem
sentindo o beijo de menina
[a bicicleta rompeu nos ritos
de água e vento]
sem o arredor da alma
saúdo os cercados os transeuntes
– cheios de manhãs e livres delas?
meu amanhã
este presente que perde a hora
por minha origem poderia ter
a bonita ausência a dizer:
quem és tu que me olhas
enquanto não me vejo
e que me vês sem me olhar
quando me olho
para em vão ver-te?
mas o escuro a piscadela o touch screen
pobres são os poemas
minha família desapareceu por muitos lares
há pouco
tão próximo
abre a comunidade
mas agora não conseguimos
a porta que realizamos
partimos
era dia comum
as ruas pouco concorridas
nenhuma notícia nossa
sequer roteiros de mãe de leite
na alegria definitiva dos bêbados
numa gaveta
cartas lacradas
se abri-las
poderei jamais encontrar os meus
tento encarar a mobília
e se o medo não proteger?
e se a coragem for traição?
e se esta bebida for a Verdade?
na procura por um mundo
o sol grande de tão só
sequer lipidemia
raízes se tremendo de alegres
finco no corpo trajetos
sou atrás e defronte
de algum espaço
caminhando no vaivém das nuvens
sou a véspera de mim
certo de já ser um homem
reparo nos monóculos
o passado incerto
talvez na fome vindo
quando a comida chega à boca
pergunto por minha família
mas eles estão ocupados
de não saber
querem abraçar os seus
numa entrega que nunca descobrimos
sigo a mera iminência de uma verdade:
nos retratos nas minhas paredes
traças maquinam
novidades nossas
os rastros carcomidos pelo futuro
Traumatismo – craniano – encefálico
ação vulnerante de instrumento contundente
maracás vencidos na noite
sopro a poeira de estradas carroçáveis
— se nada penso
sei-me
se tudo sei
desconheço-me
e como se a procura revertesse em encontro
sombras de árvores deixam remota a cidade
porém o tempo presente em todo canto
os sonhos não ameaçam
atravesso fantasmas de inventário
olhos-mágicos disseminam esquinas
aonde a cidade some
procuro meus desejos
mas se me creio
não me tenho notícias
e este discurso oco esconde
neste escuro sangue
seu fingir inventado
por sua tinta
na noite
o inédito passado
por entre aves quadrúpedes répteis
na insônia mais insônia do que eu
/ o bom ao espírito pesa à acolhida
: intimidade forasteira, não tenho nervos /
meus pais meus irmãos
se não soubemos usar a alegria
enfileiro meus despojos
tenho medo do que esqueci
reproduzo um chamado
que não há mais
que nunca houve
e que não tem mais fim

G. Monteiro é poeta, contista, ensaísta e um dos editores do site Amaité Poesia & Cia. Editou, junto com o escritor João Pinto, o espaço virtual Contos entre Paisagens, de 2019 a 2022. Seus textos integram várias coletâneas e antologias através de concurso literário. Escreveu o livro de contos Paradeiro (2016), o de poesias Depois das horas (2021) e O exercício do nada (no prelo).
Respostas de 4
Feliz com o meu primeiro contato com a poética de G. Monteiro, em que testemunho um poema talhado em versos cheios de expectativa, de uma quase genealogia de ausências e procuras.
O retorno da leitura de um leitor – crítico me põe à mercê não apenas do próprio poema, mas agora do olhar analítico. Sim, sou leitor de mim mesmo ( e quem não o é?) e para isso preciso de coragem que quase nunca tenho. Agora sou leitor do breve porém certeiro juízo do poeta e ensaísta Mateus Machado, autor que ando conhecendo para minha alegria e entusiasmo de aprendizado. De fato, ‘Nossa gente’ desdobra o fio das ausências e de procuras sob uma expectativa que eu não soube dizer, não soube conduzir e, pois, a poesia ganhou espaço. A quase genealogia, arrisco dizer, deixa um quase em tudo: um quase poema, um quase poeta, um quase tempo, uma quase história, uma quase leitura. Talvez a única profundidade é me abrigar na falta de defesa de que a poesia se alimenta. Como.um cavalo que mais rumina do que é cavalo. A esse tempo, por entre a poesia boa e ruim, procuro a minha. Como procuro minha família, Nossa gente.
Belo épico íntimo e familiar, moço!
Sempre me lembro de você me afirmando sem medo e em off: “Todos escrevem por algum motivo”. Você, que assinou o prefácio do meu “O exercício do nada”, sabe amiúde dos muitos e embaralhados motivos meus de cada dia. Eis aí o lado mítico. Este meu “Nossa gente” é o mais longo que já escrevi e é narrativo. Épico pra os motivos vários e espalhados, meio perdidos na própria poesia. Será que as certezas nos fariam deixar de escrever? Não sei. Íntimo, familiar este poema acanhadamente volúvel e avultado nestes seus adjetivos e em quaisquer outros (até os bizarros). Escrever sem medo é escrever por algum motivo, eu descobri isso. Obrigado pela leitura, grande poeta e grande amigo!