Nove Poemas de Cláudia Iara Vetter

Entrebraços. Xilogravura de Nestor Jr.
 
Ao cinza que renasce vida

Ando pelas ruas,
reconheço cada
falha nas calçadas
e nas vias

Mas
não ouço
o que de dentro
predomina

A luz se espreita
entre os prédios
A razão se perde
entre as buzinas

Enquanto o coração
sobrevive
à própria
(ar)ritmia

Os relógios
não apontam
o que n’alma
se desperta

Pois o instante
é a única constante
que entre o aqui
e o agora se revela

Assim que a
vontade de vida
Não cabe
na rotina

Ouve o dia em outra frequência,
quebra a casca do concreto
E sente subir da terra,
 o sumo da existência

Celebrando o mistério
e a essência
Que da vida e da morte
nos inquieta e acalenta.


…………


Sectio Divina

A poesia, assim
como alquimia
É de pequeno frasco
e imensa valia

Suprassumo
dos dias
Sintetiza anos
em instantes sublimes

Conduzindo
a essência
antes da rima

Eleva a consciência
acima dos prédios
E organiza a beleza
polinizando ao ar sua incerteza

É miragem?
Olhar prestado ao desconhecido?
Tanto faz!

É luz entre os ombros dos homens,
narrando em voz de sonho
o encantamento do desconhecido.


…………


A eternidade do ser efêmero

Um manto
de nuvens negras
se cobre
sobre os dias azuis

Embaça aos olhos,
mas atenta aos sentidos
O desejo de desvendar
um motivo

Desliza os dedos
nos ladrilhos
que resistem
empoeirados

Persiste
e um tanto de paisagem
e outro tanto de rosto
se refletem

Para veres que não é só no espelho
que a fronte se reflete
Não quando a alma
é límpida.


…………


Um campanário ao olhar

O tempo não percorre as estradas
pelas mãos humanas construídas
Ele se entranha nos poros
que o desejo às beiradas lapida

Acampa no olhar
a ternura que uma constelação não finda
E acerta como um milagre
– da mesma matéria partida

Mal sabe, que numa despedida
espalma o amor
em premissa

Condensando milhas
percorridas ao ar
Até o instante
que nos aproxima.


…………


Celebração Lunar #1

A vida fina
como água viva
Escorre dos dedos
e percorre

Ao orquestral som
das veias
Pulsando uma melodia
traduzível à luz

Do olhar,
ao aceitar
a grandeza vislumbrada
de um sorriso à um grão de areia

O todo é tão cabível,
que o instante
é um poema.


…………


O amadurecer de um sorriso

Esse sorriso de infância
é atemporal lembrança
da essência preservada
em rosto

Presente do tempo
e suas descobertas,
é carregado de sutilezas que andam com o vento
e se apropriam do corpo como enfrentamento

Cultivando amizades com as formigas
preservei o melhor dos sentidos em presença
E toda matéria de cuidado
mal sabia que regava o tema do poema

Florindo a sensibilidade
com o poder de rasgar o tempo,
lavrar a terra de histórias,
e conduzir os dias brincando com palavras

Foi-se tecendo um baú de preciosidades inapreensíveis
que a folha branca e a tez unificam
Do sonho aos caminhos,
o sublime alimento é do engenho de dentro.


…………


O carvão da rotina
escreve sua poesia no asfalto
Seu pretérito participativo
é nuvem e fumaça

Desapercebe sentidos
no insight que é luz rara
Não se reflete em postes,
mas contorna vias

Faz da próxima chegada
um porto de descobertas
Como os dias que passam
e nossos passos que revelam

Nada além do perímetro
da própria margem
do desconhecido

Assim a inspiração
silenciosa se entranha
Caminhando despretensiosa
como melodiosa sombra que acompanha.


…………


Fundo de tinteiro

Doce ironia essa do poeta
poder declarar-se louco 
a partir do seu intelecto 
pelos sentidos provido

Poder ousar-se público
a usar seu nó da garganta
em discurso, hino

Uivar uma onomatopeia
e dizer futuro
Compilar um cheiro
ao pertencer de vento

Evaporando flores,
brincando em contrastar as letras
Frente ao nossos olhos
Como um espelho tatuado em livro

Traduz até
uma preguiça amanhecida,
embalada ao marulhar do ônibus

Jorrando no piche,
sua condição:
é simples.


…………


O silêncio brinca 
de apalpar os meus ouvidos
Ele continua a não-dizer,
mas instiga os ecos 

Rompe a nuvem-casca
como forma de anunciar
O recurso da verdade, da viagem
que se reproduz como um sonho


Ele diz que tenho
uma voz de trovão 
a cortar o deserto

Mas hoje é a areia
que dissolve
o gosto da explicação
entre os dentes.


…………


O ser translúcido

O amor sobrevoa
a companhia,
os atos em tentativa,
a lascívia arreganhando os dentes

as pernas bambas
que chamam a atenção
antes da direção

Se resvala no ar,
penetra num aceno,
no sabor, na vontade

de fazê-lo
antes de
sabê-lo

Por isso e com isso te alcanço
Amando até as pernas soltas
do tempo passado

Pela lembrança que valsa
a essência etérea
do teu riso que conspira
a minha paz em rosto e poesia

Assim como só o amor
é capaz de dedilhar
No que parece invisível
e se tem por incomensurável.


…………





Cláudia Iara Vetter nasceu em Blumenau, Santa Catarina, em agosto de 1990. Lançou o primeiro livro O Retrato da Nudez Eólica pelas editoras CBJE/RJ (2009) e Liquidificador Produtos Culturais/SC (2011). Seu segundo livro de poesias, chamado Desata nós (2018), foi publicado pela editora 3 de Maio/SC (2018).

Acompanhe as notícias e as novidades da autora pelo http://linhaepoesia.blogspot.com

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *