O Amor Embebedou as Feras: a fauna e a flora na poética de Priscila Merizzio: Vlademir Lazo

 
 Terceiro livro que dá continuidade a uma interessante obra em progresso de Priscila Merizzio, cujo cuidado se anuncia desde os títulos, com O Amor Embebedou as Feras  [Kotter, 2019], trazendo em sua capa e lombada a beleza de um verso inteiro como nome para o volume. Ao invés das expressões únicas e sintéticas que intitulavam os dois livros anteriores (Minimoabismo, semifinalista do prêmio Oceanos de literatura, e Ardiduras).

O Amor Embebedou as Feras se manifesta um título bastante adequado levando em conta a primeira porção de poemas. Que se mostra repleta de referências à flora (“cujos sexos são mesmo vitórias-régias/impenetráveis” ou “os gestos do revólver por trás do buquê de flores”) e sobretudo a fauna (gato preto, abelhas, tigres, pata, tigresa, pássaros, pantera, cão, aves). Um convite para adentrarmos em território de uma criação de mundo de estranheza poética e intima familiaridade.

O que ocorre invocando não unicamente um processo de desumanização dos indivíduos, como que sobretudo uma procura por uma humanidade a ser resgatada ou descoberta: “receba do veneno diário que/ com seu livre-arbítrio escolheu/ para sucedâneo das veias/ desse corpo-fábrica/ d’uma existência/ que é nada”. Ou: “você se dilacera, sozinho, insistente:/ um monstro condenado à própria companhia”. E inclui ainda referências a personagens de um cinema clássico e longínquo (Carmen Miranda, Rhett e Scarlett, Blanche DuBois), reinseridos numa imaginação pertencente a nossa época. E em contexto, se romântico, então em modo personalíssimo. E um almejado ideal masculino “que se eleve, tornando-se grande:/ a própria sombra caminhando de mãos dadas com o sol”. E igualmente uma rejeição da idealização da fêmea aprisionada como musa em moldura supostamente poética (“[…] Pois as musas são xicaras/ bonitas que perdem a utilidade com o tempo”). Afinal, a idealização é o contrário do movimento, da mutação. A idealização representa a estática, o tempo parado, que deixou de ser vivido, percorrido, e o que poderia ser mais idealizado do que a imagem estática? A poesia de Priscila Merizzio, ao contrário de tudo isso, é movimento, fuga, questionamentos, procura, danação e redenção.

Muitos dos melhores momentos de O Amor Embebedou as Feras se encontram nessa primeira parte. E que são seguidos por uma sequência desigual de ‘poemas-pílulas’, como chama o autor do posfácio; por mais que este invoque a tradição de Bandeira e Oswald, algo ali deixa a desejar, oscilando entre quase aforismos ou poemas de poucos versos. E  de achados verbais e poéticos fulgurantes típicos da autora (”Aquele amor que chega de fininho como uma manada de elefantes procurando abrigos no deserto” ou “Sou incapaz de ser estrela onde me dão rifle”) com outros que poderiam ser não mais que mensagens implacavelmente breves de rede social (“É preciso impavidez para atravessar o vale dos rancorosos”). Um procedimento não necessariamente novo, mas que se mostra desgastado na poesia contemporânea, e cuja utilização em nossos tempos parece exigir comedimento, dos poemas em miniatura, da brevidade mais ou menos excessiva.

O volume não se encerra aí, prosseguindo em constantes e arriscados confrontos com a linguagem e seus ousados arrojos, algumas vezes abstrusos, entre a concentração e a fragmentação, os mistérios e os desafios aos sentidos, numa literatura avessa às tentativas de classificação. O conjunto anteriormente ameaçara enfraquecer-se, no que é desmentido com os poemas em prosa nas sessões posteriores. Alguns reverberando por páginas cheias, inteiras, vulcânicas. Poemas em transe numa profusão de palavras, em grande parte em imagens intensas, frequentemente surrealistas, com um sabor de originalíssimas. Em sessão patchwork em que a autora declara amor a poetas e versículos bíblicos e homenageia os escribas de seu santuário particular. Evocando um passado e um outro mundo ainda presente, onde moram profetas e renegados, deuses e animais, homens e feras, aos quais o amor nunca cansou de embebedar.  




Vlademir Lazo é gaúcho da Praia do Hermenegildo, na fronteira com o Uruguai, e ascendência mais ou menos próxima originada desse outro país. Gosta de escrever ficção e poemas e é autor da biografia Cardeal — O Guerreiro do Futebol (2020).

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