O Café: Lewis Medeiros Custódio

Ilustração: Felipe Khill


Sexta-feira, 3 da tarde. Em ponto. Eu nunca me atraso. Adoro toda e cada Sexta-feira. Especialmente às 3 da tarde. Ao contrário do que muitos pensam, não é por se ter todo o tempo do mundo que se tem tempo para tudo. Muito pelo contrário. A minha empresa é de proporções incomensuráveis. E de outro modo não poderia ser. Por isso — por essa falta de tempo — há muito que não vinha visitar Lisboa. Cidade linda que o Marquês de Pombal teve o bom gosto de reorganizar. «Enterrem os mortos, cuidem dos vivos.» Ou seria o contrário? Enfim… Homem prático!

Apesar de todo o meu trabalho, até eu tenho que ter um tempo só para mim. Então descanso às Sextas, uma pausa para visitar uma cidade no mundo. Talvez para a semana vá a Paris.
 
Os jovens estão muito diferentes da última vez que cá estive. Vestem-se como se não quisessem estar vestidos. As calças mostram mais do que escondem, os bonés tapam tudo menos o sol. Eu não condeno. Pelo contrário. Adoro que façam tudo o que lhes apeteça. O que seria a vida sem isso? Eu, por outro lado, gosto de passear de bengala e vestido com os mais caros fatos de sempre. Não que precise de auxílio para andar; simplesmente gosto da bengala. Nada como um visual Vitoriano. Relógio de corrente e tudo. Nunca o largo. Por falar nisso, já são 3 h 05… a minha pausa é curta e eu nunca me atraso.

Chego à Estrada de Benfica. Muitos preferem ir ver o Castelo de São Jorge ou a Praça do Comércio. E depois há aqueles que não passam por Lisboa sem ver o Mosteiro dos Jerónimos. Mas os melhores pastéis de Belém estão aqui! Toda a gente pensa que tem de ir a Belém, mas acreditem quando digo que estes são os melhores. É uma antiga pastelaria que tem passado de pais para filhos e cujo negócio prospera de geração para geração. O dono, já ancião, sorri ao ver-me e abre-me a porta de vidro. Assim que passo a porta, ele cospe para o chão pensando que eu não vejo. Não levo a mal. É só um velho costume da família dele. Vieram da Roménia para cá há mais de um século. Quando ele era pequeno nunca cuspia. Pelo contrário — ficava todo contente com os doces que lhe dava. Quem cuspia era o pai dele. E já o pai dele tinha passado pelo mesmo. Dentro do café está o neto. Dou-lhe um doce e ele fica todo contente. Não pelo doce — é uma pastelaria! — mas sim pela nota de 50 euros que acompanha o doce. Talvez um dia ele cuspa depois de eu passar a porta. Ou não. Essa é a beleza do meu negócio. Há coisas que nem eu decido.
 
Quem aqui entre pela primeira vez nunca dirá quantas gerações de clientes já aqui passaram. Vêm «tomar um café», como dizem por aqui. Chão de mármore polido, enormes espelhos e vastas vitrinas, o som de uma qualquer melodia e o cheiro a canela. O antigo funde-se com o moderno num gosto inconfundível — e por isso serei sempre o seu mecenas. Peço um café com o meu pastel de nata, o meu pedido de sempre quando estou em Lisboa. A empregada olha-me com um ar lascivo. Se pensais que é apenas pela minha carteira, garanto que a minha beleza e apelo são inextricáveis à natureza humana.
 
Dando a última dentada e tendo terminado o café, vejo um homem de meia-idade entrar na pastelaria. Tem uma gabardina que já viu melhores dias, mas dinheiro não lhe falta. Pelo menos não ainda. Foi despedido hoje de manhã e, caso chegue a casa, a esposa irá finalmente pedir o divórcio, pondo fim a um casamento que tem estado por um fio há meses. No bolso da gabardina estão dois frascos de comprimidos. Muitos mais do que ele precisaria para os nervos. Bom, são 3 h 15 em ponto. Acabou a minha pausa. Aproximo-me do homem e proponho-lhe uma bebida.
Eu nunca me atraso.


Lewis Medeiros Custódio nasceu na paradisíaca ilha de São Miguel, nos Açores, foi aluno do Conservatório de Ponta Delgada, onde aprendeu piano. É licenciado em Línguas Modernas e mestre em Ensino pela Faculdade de Letras daUniversidade de Coimbra, além de ser judoca e guitarrista. Desde cedo, desenvolveu uma paixão pelo terror e pelo macabro, mergulhando nas obras de Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e Stephen King.

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