Coluna Luís Palma Gomes -O mendigo da  esquina


Parece improvável, mas não é. O único vizinho com quem converso sobre literatura é um mendigo que pede esmola na esquina.

Talvez seja por ter tempo para ler — e, claro, por precisar de umas moedinhas.
Talvez sejamos, os dois, variações da mesma carência: a solidão.

Sempre achei que a solidão nasce da ilusão da autossuficiência.

Lembro-me de que, certa vez, os Franciscanos ponderaram abdicar do voto de pobreza.
Mas um dos monges, mais lúcido ou apenas mais atento, recordou aos confrades:
se deixarmos de precisar dos outros, deixamos também de os tratar bem.

Lisboa, 23 de maio de 2025.


Ilustração: Manuel Adrianzen


Luís Palma Gomes nasceu em Lisboa, em 1967, e cresceu na periferia, em Queluz — entre linhas de comboio, pequenos quintais e o rumor longínquo da cidade. Engenheiro informático de formação, é hoje professor de Informática no ensino secundário. A escrita, porém, sempre lhe correu em paralelo, como um rio subterrâneo. Começou a publicar nos anos 90 no suplemento DN Jovem, onde os primeiros poemas encontraram lugar. Poeta do intervalo e da fricção, escreve a partir do quotidiano, da contemplação das pequenas coisas, dos gestos que passam despercebidos.  Publicou Fronteira em 2022, e O Cálculo das Improbabilidades em 2025, onde aprofunda uma linguagem feita de tensão entre o visível e o indizível, entre a matéria e o símbolo, entre a casa e o mundo. É também autor de peças de teatro, como A Moura e O Último Castro Antes de Roma, onde a memória histórica se cruza com as inquietações humanas. Escreve e ensina jovens, porque precisa de ver crescer alguma coisa — nem que seja uma imagem, uma ideia, uma manhã, uma vontade. Não tem medo da água fria do mar.






Respostas de 11

  1. Uma situação muito parecida passou-se em minha frente. Os primeiros tempos eu vivi no Monte Abraão tive um vizinho chamava se sr. Fernando. Sempre com um chapeu na cabeça a roupa toda com muito uso mas sempre bem limpa e passada ao ferro. Falamos de literatura e dos livros. Mas o homem acabou em hospital psiquiatrica, tive um probleme mental que estragou a vida toda d ele. Triste.

  2. Luís Palma Gomes explora aqui a relação entre o quotidiano e o transcendental, entre a melancolia e a complexidade humana. Quando leio os seus textos parece que ouço uma voz humana. Fico à espera das próximas crónicas. Bjs

  3. Na literatura, diga-se, na inspiração e afinal no texto ficcional, quem assume o papel de quem, quem é o papel, o que é o papel são indagações afirmativas que nos levam a lugar algum: ao lugar da escrita ficcional. O escritor português Luís Palma Gomes nos convida a pensar o que é o criar, senão estar criando, puro voto de pobreza criativa a ter em si o franciscano da escrita literária nos limites do humano. E logo já é tarde fechar embasamentos sobre quem é da caridade à realização estética, inventiva. Somos todos inocentes. Que o agora colunista da Amaté Poesia & Cia, Luís Palma Gomes continue a nos trazer as coatoras palavras, como este O mendigo da esquina. Quando pedir é dar e dar é pedir, para escrita inventando o que se troca. (G. Monteiro)

  4. Lindo,as coisas mais simples da vida nunca são coisas, são momentos e sentimentos que não têm preço mas sim valor.

  5. O Luís Miguel Gomes é, é continuará a ser, O observador da vida! Os seus escritos são realmente demonstrativos de grande sensibilidade, de quem consegue tirar o “sumo” das suas formas de observar e sentir o que o (nos) rodeia. Quantas vezes nos faz ver o que nos escapa através da sua maneira de, sem dúvidas, nos chamar ao sentido da vida. Bem hajas, amigo, e continua com a tua missão. Se, porventura, o que deixo dito soar a “lugar comum” peço desculpas, mas por vezes é difícil encontrar outras formas de, ao fim e ao cabo, dizer à mesma coisa!
    Obrigada, Luís Miguel!

  6. Um mendigo que discute literatura. Não me parece que seja para ganhar mais umas moedas, mas porque lê, porque ama as palavras que o ajudam a pensar menos na solidão e a ter a posse de si mesmo. A conclusão da sua história é cheia de humanidade e muito fraterna.
    Quando saímos de dentro de nós para olhar os outros nunca os esqueceremos. Assim nunca queimaremos uma espécie de incenso a qualquer ídolo resultante dos nossos medos. Excelente e inspirador, meu Amigo Luís.
    Um abraço.

  7. Acho sempre interessantes e profundos os poemas do Luís Miguel, que têm para mim um certo cunho de Transfiguração da realidade. Obrigada por seguir a sua inspiração e difundir esse perfume bom à nossa volta.

  8. Excelente poema!! Olhar o mendigo falar com ele revela um olhar atento sempre aos mais carentes . Aqueles marginalizados por motivos talvez psiquiatricos.

  9. O mais improvável é sempre mais vivido. O mais provável de uma forma ou de outra, já esperamos. Eu sempre espero de ti o Poema, com a reflexão que toca a todos. Gostei muito Luís. Sabedoria e simplicidade andam sempre juntas.

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