EXTRAS
embaçada a flor da impermanência
sugerida, em seus canteiros violáceos,
de verdura e dor, como possante passageira
dessa tormenta de fados e
cânticos e nados nadados com o vigor
dos solfejos, breves, abreviados
compostos em dias de luz esmaecida
– permanência branca –
de um primeiro sonho,
tão decomposto nas manhãs verdes
de vidraças e surdos/abençoados momentos
que quase o elevo a títere
mago magoado musical ente
enteado de extras e estrelas
por sobre esse novo acorde.”
Todo esse poema apresenta uma linguagem baseada na sugestão, vocabulário musical, figuras de linguagem como aliteração, presença de sonho e cores. Retrata palavras, sensações e variadas expressões que poderíamos colocá-lo como um dos poemas do simbolismo brasileiro do início do século XX. Mas ele é do livro “Luas de Maçã”, da poeta Jandira Zanchi, lançado em 2020, durante a Pandemia da Covid-19.
O Simbolismo nasceu do descontentamento ao Naturalismo e Realismo, que tinham uma visão materialista da vida; por isso, os primeiros simbolistas apresentavam temas marcados pela subjetividade e sugestão sensorial. Ao longo do século XX até os dias atuais o Simbolismo segue influenciando poetas, como veremos com a Jandira, que traz questões sobre o tempo, a dor, a morte, a alma, a vida, etc.,
A frequência do místico no Simbolismo explora os temas do consciente, subconsciente e elementos do mundo espiritual. Como exemplo nesse trecho do poema INDIVÍDUO:
“um vaso de flores
é quase a imagem de todo o projeto
de indivíduo e ente e alma”
Questionando a vida e os sonhos em TENTATIVA:
“a vida me cabe em pílulas lascivas e sem carne
estremecidas no sol que se esconde emagrecido nos
ventos senis (embranquecidos)
marejados dos meus sonhos”
O tempo em CONTAGENS:
“boquiabertos frente ao nulo espetáculo
das pequenas contagens de tempo”
No século XX, os simbolistas passaram a usar um vocabulário mais rico para tratar os temas, pois a musicalidade ocupava lugar de destaque. Ela ditava o ritmo ao poema, aliada a recursos como as figuras de linguagem, dentre as principais: aliteração, reiteração, sinestesia, assonância e onomatopeia.
Musicalidade
A musicalidade evoca uma imagem auditiva; como mostra a primeira estrofe do poema ORTODOXO:
“posso ouvir o solo – tão agudo –
violino em decrescente ponto de ebulição
levantado no arco e na arca
sonâmbulo e seco”
E no poema ÓVULO:
“o silêncio é o óvulo e a gema
dessa partitura de figueiras livres”
Outros exemplos:
“é o estribilho, doce, de um silêncio longo e langoroso”
“madrinha de cânticos e estribilhos”
“serenatas de grilo em noite amarela”
“sonetos de pianos desacordados espiam minhas paredes”
“dinâmica escaldante em oitava de escala”
Aliteração
Ocorre na repetição de sílabas com sonoridades parecidas ou iguais. Nesse trecho do poema INSTANTE, temos a repetição dos fonemas consonantais d/t/p/f.
“rasgado o dia
diáfano
transpira
transparência
onipotência
fugaz e
formoso”
Outros exemplos de aliteração:
As fagulhas e suas faces fáceis, pequenos frascos fósseis, multidões metrificadas, flocos e fadas, níveis e nevadas, fases factuais, virgem vigoroso, flores ou fósseis, veios e vernáculos, metal e metano, planícies planas, faísca ferida, espanto e esperanto.
Reiteração
A repetição da palavra gota, no poema CONFINS transmite a ideia de água gotejando. Poderia estar em onomatopeia ou aliteração, mas a esse tipo de repetição de palavras também chamamos de reiteração: “gotas, gotas escorrem da pedra nua”.
Também no poema LAICAS: “quase, quase redimidas”
E no poema BREVÊ: “ – graves, sempre graves – ”; “ – esse, sempre esse, …”
Sinestesia
A sinestesia refere-se à associação de palavras relacionadas ao sistema sensorial: visão, audição, paladar, olfato e tato. Além de enfeitar o texto, a nova combinação de palavras é ampliada.
Exemplos retirados dos poemas:
“doce sândalo”, paladar (doce) + olfato (sândalo, perfume)
“estribilho doce”, audição (estribilho) + paladar (doce)
“perfume das estrelas”, olfato (perfume) + visão (estrelas) “lisas calçadas”, tato (lisas) + visão (calçadas)
“mar gelado”, visão (mar) + tato (gelado)
“noites ardidas”, visão (noite) + tato (ardidas)
“crua maciez”, paladar (crua) + tato (maciez)
Assonância
As vogais organizadas no interior do poema transmitem a melodia nos versos. Pode-se ver a repetição dos fonemas vocálicos A/O em um trecho do poema VITÓRIA:
“formosas e vagarosas as etapas, as vagas
as marcas maceradas”
É até possível haver rimas com a harmonização. É o que se vê no trecho do poema PRESUMIDO, com a repetição dos fonemas vocálicos E/O nos finais dos versos:
“a brisa que corre
é o fio do esquecimento
pois se escreve como serve
no sussurro do entendimento”
Onomatopeia
Trata-se da reprodução aproximada de sons que não são possíveis de reproduzir naturalmente. O poema NA TRAVE mostra o som do relógio com o tempo acelerando durante uma partida de futebol:
“tictactictactictactictactictactictactictactictactictactictactictac
tactictactictactictactictactictactictactictactictactictactictactic
teus segundos aceleram
… é gol na trave.”
As cores no Simbolismo
No Impressionismo havia sombras e luzes. Os quadros eram pintados com pinceladas sem contornos nítidos, mas as cores se misturavam na tela. Os simbolistas aproveitaram dessa arte a sombra, a luz e as cores.
O poema MOVIMENTOS exemplifica esse uso. O vitral é o objeto máximo colorido de cores complementares e jogo de luz e sombras. Ele não é totalmente transparente, deixa passar sombra e luz. E tem muitas cores nessa tarde dourada:
“permeio de rosas
os vitrais multicoloridos
desses anjos ambivalentes
movimentos na laje dourada da tarde”
Acima, as cores eternizam as realidades dos dias. Abaixo, no poema EXCLAMAÇÕES, a questão da luz/sombra parece ter a ver com o estado de alma/humor. Na primeira estrofe a “sombra”:
“não sei se foi de uma síntese
que imprimi ao meu desejo e à minha sombra”
Na segunda estrofe, a luz aparece na cor em “estrela branca”:
“A alma floresceu em uma dessas
tardes de agosto de inesperado calor e pouca umidade
(…) e supõem na ausência de suas estrelas brancas”
No poema EXTENSÃO, a cor associada é tão importante quanto a paisagem, por isso as características impressionistas de captar a fugaz impressão de luz e cor nos ambientes e objetos:
“na encruzilhada intuo o porto e o azul
de um mar eterno retorno e a imagem”
Em CONSCIÊNCIA, a outra face da lua, quando não está:
“branca e nua
sem o diáfano azul de suas sombras”
Em ACEITAÇÃO:
“vaga vaga-lume lento aspirado nessa noite suprema
próximo a um vagido aéreo e fugaz/permanente
tua sombra é quase luz”
Outros exemplos:
noite amarela, branca e nua, arcos azuis de horizontes, distâncias brancas e afins, estrelas brancas, coloridas dos vermelhos e brancos, odaliscas azuis de desesperança, amargo amarelo, azul profundo fosco, ventos senis (embranquecidos).
Sedentos sedentários no tempo
A evasão do tempo presente foi uma das principais características do Romantismo e não do Simbolismo. Aliás, qualquer poeta, em qualquer época, normalmente escreve sobre o tempo, a seu modo.
Em ACEITAÇÃO percebemos que o sujeito busca o mistério a sua volta. E acha que não há futuro nesse tempo.
“profiro minhas aves em um tempo sem futuro e interrogado
por todos os seus lados”
Mas passado, presente e futuro são definições subjetivas construídas de dentro para fora. Esperamos que a sociedade ajeite para nós e nos conformamos com as respostas. E nos angustiamos quando não dá certo:
“cada cristo crucificado
é visível na verdade oca e sem nexo
lado localizado ângulo ordenado
a quem conferir a palma e o desejo?”
Percebemos nos versos do último poema do livro, CIRCULAÇÃO, a projeção para o futuro. E parece não haver muita esperança para os “sedentos no deserto”, “almejando nirvanas e conhecimento”:
“1000 anos vão se passar e outros 1000 e outros e outros nesse
oneroso processo de simplificação que oprime em seus
círculos de ventos e ventarolas para um caminho duende
– venenoso e esperançoso –”
Enfim, como poeta e leitora, eu digo para aproveitarmos que “quase sempre recomeça o dia”. Mesmo quem achar que a “vida oblíqua” não tem esperança! Afinal, já chegamos até aqui. Resistamos!
Solange Firmino é graduada em Português/Literatura, com experiência em Sala de Leitura, Ensino Fundamental e Ensino Médio. Participou em publicações de contos, poemas e ensaios. Tem 4 livros de poesia publicados; foi 1º lugar na Fundação Cultural do Estado do Pará, com o livro Alguns haicais e mínimos poemas.
Respostas de 3
Muito obrigada pela oportunidade, Jandira. Seu livro é muito bom. Pode concorrer a um prêmio, se não ganhar, tem marmelada. :-))
Grata eu, amiga, se você pensa assim fico muito lisonjeada, beijo!
Você sabe que é boa… ;-*