O Unicórnio do Sul e outras lendas poéticas: 4 poemas de José Couto

 

 

 

capa de Luiza Maciel Nogueira (livro em preparo)

sabedoria

vovô, pode me dizer
onde o diabo perdeu as botas?

— nem que a vaca tussa!

vovó, por que sofrer que só cego em porta de igreja?

— menino, tu tá na idade
de ser mais faceiro que ganso em taipa de açude!

me diz me conta
é no cafundó do judas
onde o vento faz a curva?

me conta me diz
quem tá matando cachorro a grito
passou a batata quente
ou tá na capa da gaita?

titia não tem barba
por que joão pediu para tirar do molho?

jessé tem cão
por que fala onde fui amarrar meu bode?

me diz me conta
sem choro nem vela
porque pergunto
e só me respondem

— será o benedito guri!
pensa que berimbau é gaita!

 

o poeta

                                     para Wander Porto

papai, o que é poeta?

os bagunceiros e arruaceiros filho!
uns sonhadores que rasgam dinheiro
desconcertam a linguagem

na lagoa no lugar do lambari
colocam um violino nadando
no céu o pampa verdejante
na planície o mar azulante
e na lapela um girassol gigante

dizem coisas inesperadas
inventam ritmos alucinantes
às vezes até sem rima
atropelam o alexandrino
contrariam as leis dos sentidos
mais confundem que esclarecem

abusam do mistério
nas suavidades e nas asperezas
da luz sob as transparências
e do vento desenhando com nuvens
formas inexatas de bichos 

tornam coisas abstratas
em ideias concretas imprevisíveis

são capazes de transfigurar
qualquer lógica ou limite
para declarar o amor a paz
imprescindível e intransferível

e ao final ainda confessam
que o poema não serve para nada
assim como as auroras as utopias
o perfume das cigarras na hortelã
e a trilha das formigas cortadeiras
no jardim depois da chuva

 papai,
quando crescer

posso ser poeta?

 
 
se sim não se não sim
 

eu vi uma árvore zumbir pássaros
um castelo mugir suas muralhas
um livro zurrar suas letras

o pastor de nuvens
baliu seus cometas
o professor de desfazer coisas
ladrou a lição pela orelha

o eucalipto no jardim relinchou
seu aroma de romã
posso jurar
ter visto um cão sibilar alegria
e o pão com mel rugir:

– cuco cuco cuco

e sair trotando…

a lua cacarejou
o sol miou
a chuva cricrilou

se a moda pega
daqui a pouquinho
as quatros estações
estarão ululando

os objetos todos crocitando
pulando de um lado pro outro
grasnando

se sim não se não sim
onomatopaico embaralhou

minha mãe não aprovou e arulhou

– menino pra dentro!

meu pai gostou e coaxou

– menino pra fora!

meu avô atordoado rosnou

– guri xispa…vaza…pica a mula!

só vovó não emitiu som nenhum
nem sim nem não
nem antes nem depois

ofereceu o colo
e os sons trocados
desapareceram

 
 
boi barroso

                           para Eloí Elisabete Bocheco 



meu boi barroso
meu boi araçá
tua carroça de palha
tá cheia dos butiás

adeus arambaré barra do ribeiro
tapes e outras trilhas
vou pelo atalho olhar o mar
se me perder

tava relendo cobra norato
lendas do sul
grande sertão
pé de pilão
batata cozida, mingau de cará

se o minuano não assoviar
se o boi barroso da cara preta
não tropeçar na capivara

pé dentro pé fora
digo adeus e noves fora

 
 
José Couto é professor, poeta e organizador editorial. Pós-graduado em Educação Ambiental. Publicou A Impermanência Da Escrita (poesias, Editora Alcance, 2010). Participou de diversas Antologias de poesias, crônicas e contos em diversos livros e periódicos da imprensa cultural do país. Escreveu semanalmente no jornal O Alvoradense, RS, sobre poesia. Lançou recentemente O Soneto de Pandora, (poesias, Editora Penalux, 2017).

 

Respostas de 2

  1. Obrigado! Sucesso pra você também!Gratidão ter aceito o convite para fazer essa parceria.Não consigo imaginar o Unicórnio do Sul & Outras Lendas Poéticas sem a sensibilidade de teu traço!

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