
Um antigo colega de estudos vai ao meu lado, estamos caminhando em direção ao cemitério, não sei para quê. Faz um dia claro, mas sem sol. Talvez nublado. Não sei.
“Estou pensando em escrever um livro”, ele diz, enquanto seguimos por uma rua e outra.
Um livro? Por que escrever um livro? Por que ele quer fazer isso? – tudo isso são perguntas que me permito em silêncio.
“Eu nunca pensei em escrever um livro”, digo a ele. “Você entende? Entende isso?”
“Não sei se entendo.”
“Isso aconteceu comigo. Está me ouvindo? Não lembro como começou. Mas eu não pensava em escrever livros. Não mesmo. Isso aconteceu. Não sei como. Pelo menos, acredita que eu estou dizendo a verdade?”
“Acredito. E os nossos velhos amigos continuam falando de você. Que você… sumiu.”
E os nossos velhos amigos… O que são amigos? O que são velhos amigos?
Chegamos ao cemitério. Nem vi por onde entramos, mas já estamos dentro dele, entre os muros, seguindo por uma alameda estreita, orientada pela pedra, quase nada de flor. Não, meu colega não está mais ao meu lado. Perto de mim, pouco mais à frente, move-se um homem magro e velho, curvando-se, fazendo coisas, entretido com pequenas tarefas, tarefas próprias de chão. Tem asas saindo das costas, penas encardidas. Agora, estamos de frente, e vejo que ele se parece comigo, de alguma forma: pequenas rugas se cruzando, antes só horizontais, agora desenhando-se na diagonal, lembrando as plaquetas de um elefante.
“Onde estão os elefantes?”, ocorre-me perguntar.
Sinto vergonha de minha estupidez. Mas já fiz a pergunta, não posso desfazê-la. Tenho a impressão de que converso longamente com o velho funcionário, mas não consigo identificar o tema da conversa. Estamos conversando há algum tempo, pelo que sinto. Vejo na superfície horizontal de uma sepultura, bem ao nosso lado, um relevo gigantesco imitando um livro aberto, inscrição em língua desconhecida.
“Seu amigo disse que vai escrever um livro”, o velho anjo anuncia, calmo. E passa a manga pela testa, limpando o suor.
“Então…?”, eu lhe pergunto com voz neutra, tranquilo também, só um pouco triste. “Não havia nenhum valor em mim?”
O anjo me olha, cansado. Demora a responder.

Perce Polegatto é um escritor nascido em Ribeirão Preto, formado em Letras, com especialização em Estudos Literários. Lecionou matérias da área de Letras, como Gramática, Literatura, Adaptações literárias para o cinema, Produção de textos e Semiótica em diversas escolas, principalmente no Ensino Médio, e em três instituições universitárias. É autor de 5 romances (Os últimos dias de agosto, A seta de Verena, Marcas de gentis predadores, Projeto esvanecendo-se e Teus olhos na escuridão), 4 volumes de contos (A canção de pedra, A conspiração dos felizes, Lisette Maris em seu endereço de inverno e Inconsistência dos retratos) e um de poesia (Diário contra o destino). A metalinguagem, a busca da identidade humana e o questionamento existencial são algumas das principais marcas de seus textos, divulgados também no site “Aventura do dia comum” (www.percepolegatto.com.br).
Uma resposta
Perce Polegatto sempre surpreendendo com narrativas aparentemente simplificadas. Porém, os sentidos vão num crescendo excitando o leitor a voltar do início porque já está envolvido com “as aparências que enganam”. Em “O velho anjo” temos possibilidades demoradas, verossimilhanças a escrevermos pelo autor, preencher, com alguma insegurança, a trama que aguarda. O homem que leva o outro ao cemitério seria o alter ego deste outro? O desejo inexplicável de escrever livros permite que simbologia com a morte ? O que os mortos nos diriam a respeito da aspiração a escritor? A morte reage no conto como noção de mistério, de nada, de uma vida inteira adormecida?O velho anjo seria o alter ego do outro já caminhando para uma maturidade de inspiração? O encardido das asas traduz a liberdade criativa longa e desconhecidamente alcançada? Um rio subterrâneo na expressões do silêncio? O livro em fria lápide de túmulo sinaliza um reencontro, uma vida já vivida em páginas em branco? As interrogações não param enquanto o conto nem se avoluma, nem se apequena. O conto não diz, nem reprime; precisamos ter nossa velha liberdade. E não deixemos nosso velho anjo ir embora. E não partirmos de nós mesmos, como túmulos? O velho anjo, as ruas, o “mestre dos magos”, o conto: nossa vontade de saber o que vivemos. Continue, escritor, a nos fazer pensar, aproximar, errar, devaneiar, prolixicar, confundir, buscar. Nós também queremos o corpo vivo do silêncio.