Os materiais com os quais os filhos do povo de Ar erguem suas casas: Nuno Gonçalves

Ilustração: Vitor Campanella
 

Qué queréis que se haga con estos materiales.

Nada. Sino escribir poesia melancólica.

Stella Díaz Varín

 

metálicos, arenosos, plásticos, ruidosos

   – silenciosamente ruidosos –

ainda quando sob os efeitos do rugido do sol

ainda quando baixo o fatal encantamento lunar 

entre argila e argila, magma obtuso magma

ainda quando em meio ao insondável escárnio e à ironia das hienas

tempo, gás, concreto

óxido, suspiros e ervas aromáticas

ainda quando embriagado de Divindade

ainda quando em êxtase e silêncio

ainda quando ruído em espécie

manuseado por apressados transeuntes

arrastando às coleiras

suas fomes impávidas e colossais

também as células e os órgãos internos e toda uma desnecessária e prolixa

anatomia da burocracia

sêmen, fluxo vaginal, saliva, lágrimas, suor e sangue

e sangue

sangue

 

as flores secas, ressequidas, esfarinhando no varal

expostas às intempéries insanáveis

recolhidas com um amor indecifrável e pleno

as flores, já sem cor, já sem vida

levadas num cesto de palha trançada

as flores e seus espinhos fálicos

arrastadas numa procissão inclemente

ante os olhos dos cegos / ante os olhos dos cegos

ante a esclerose múltipla de uma manada estúpida

que pisa com desagrado o chão

em seu caminhar trôpego em direção ao cadafalso

as flores, depositadas sobre a roca impenetrável

como uma oferenda ao nada / como uma reverência à tempestade

delimitam a estreita fronteira entre o centro e o centro do mundo

e, certamente, só o olhar mais puro pode tocá-las sem ser incinerado

 

ante esta terra

calcinada / infértil

ante esta cratera

o deleite de se sentir ainda vivo

e capaz de se camuflar de réptil / de árvore

ou mesmo de ave de rapina ou pequenino e subterrâneo dromedário

ante este espanto que não se desfaz

                                  que não se rende

e que não comove ninguém além

do ébrio que tropeça ou da senhora que estende a cuia

solicitando cuspidas moedas

ante estes edifícios

e seus porcos que se criam como porcos e que se vendem como porcos e

que são em tudo incapazes de amar os porcos como a si mesmo

o que resta? – a túnica, a ética, o fígado

ante esses automóveis e todo esse pânico e essa histeria

ante o fantasma que é senhor e vassalo

ao pagar a si mesmo a corveia

dentro do círculo sacrossanto de urina e fezes

onde repousa o que não pode descansar

onde trabalha o que não pode se negar o atributo de infinito

sem misericórdia / só o louco não se rende

só nele se vê a pupila arder

e a fome e o esterco na mochila e a sede

/ ópera bufa / caminha sorrateiro e contente

e deixa para trás os que não são feras

já / já / já

até que espedaçada sua lucidez torna a devorar asfalto e alpiste

e abandona o picadeiro carmim

 

entes que sabem que a lógica é só um jogo triste

e que a realidade é só um utensílio doméstico onde não entra

o desdobrável / e toda a fauna e toda a flora que se recusam

a ser ornamento de corredores com cheiro detestável de

detergentes / ações das bolsas de valores / saltos

altos de madames edulcoradas

/ insetos que vivem nas rugas / e a avalanche

de antenas que entre os escombros grita / sussurra / a palidez

inevitável

 

atrás dos espelhos as acinzentadas e bestiais mais-sombras

e a miserável cumplicidade com a história sentimental da criminalidade

e ainda / atrás dos ombros / a mesquinharia

a torpeza / a finitude / a decrepitude / o sem-sabor

e tudo o que é capaz de se erguer de si e clamar ao leito esturricado do rio

atrás dos espelhos / atrás dos danos irrecuperáveis

só o amalgama do vento da morte ao suor dos hereges

é capaz de fazer nascer asas e asas e asas e asas e asas

nos muros dos becos onde todas as faces se reduzem à face

que tinham antes de nascer

 

o poema é uma guerra

onde convivem canhões fuzis e ogivas nucleares

onde coabitam todas as esperanças e todos os sofrimentos

de todos os seres da terra

o poema é um homem nu no deserto

andando em direção à uma mulher nua no deserto

que também anda em sua direção

o poema é uma oração

onde convivem nuvens divindades e tudo o que é mais atroz

o poema é uma chuva sobre mãos que se amam

o poema é um feitiço que nos toca os lábios e derrete toda violência

o poema é uma dor

que cava tão fundo quanto um tatu que escapa ao faro do cão

e à enxada do caçador

o poema é uma longa e sedutora madrugada

onde nada se perde e tudo se percebe transtornado

o poema é uma febre / uma conjunção de planetas em desespero

o poema é a paz feérica que se apossa de tudo quanto goza

de tudo quando morre / de tudo que

reencarna

 

sobre as retinas / e a obsessão peculiar por cílios e sintomas

/ grave / gravíssima / misteriosa e dona de si /

como quem guarda no peito todos os punhais que lhe atravessaram

nas noites de Andrômeda e também todos os soluços

e todos os piolhos e toda verve e toda consumação

escrita em latim no parapeito de fórmica e gelo

onde dorme o felino dependurado como uma estrela um morcego ou

um mamão no cais de um porto / no cais de um rio

num cais chamado Santa Rita / onde navega a cabeça de uma suicida

/ onde navega /

sobre o amor das mãos e a estação das chuvas / a poesia

/ ossos esfarinhados da saudade / breve

lição de anatomia / sem escândalo /

mas com hidrófobos dentes arreganhados /

parindo o amanhã / parindo / parindo / parindo

o uivo azul e impecável com que se veste a sinfonia da morte /

a poesia é uma obsessão à qual não se escapa

 

a poesia é a arte de extrair da palavra tudo que não é palavra

de sangrar o capote até o entardecer

de amar e em silêncio amar outra vez até que no amor pereça tudo que jamais

poderá ser amor outra vez / a poesia é um indício / um sintoma / um vestígio

um canto que retrata a si mesmo sem vergonha ou pudor

de exibir a poeira junto ao corpo incandescente /

a poesia é uma vagina enorme que me engole / que me vomita / que

transita dentro de cada órgão que trago dentro /

a poesia é a abóbada celeste irrepresentável /

é a carícia é os cabelos desalinhados é o estalar kamikaze da lenha crepitando

/ a poesia é o que está sempre em outro lugar e o mais leve roçar em seus lábios

queima / incendeia / faz cinzas de quem a flerta sem coragem

quem semeia sabe que a carne é feita de estremecimentos

 

ferrenha tosse entre os eucaliptos / patrulhas rodoviárias e

incensos / aroma de sexo / vertigem de sexo / sexo /

no dorso da cidade inscreve-se o pária que daqui há mil anos

será sua única recordação

/ homens de terno / homens enforcados nas próprias gravatas /

crianças queimando extratos bancários e contas vencidas /

o barulho do ventilador girando e botando em movimento o mar /

o mar que ainda quando azul é verde /

o mar que ainda quando morto é verde /

o mar que vemos nos olhos de quem amamos /

o mar que escrevemos quando abandonamos as âncoras /

o mar que é uma onça de água ou

o mistério da insônia

ou

 

o pêndulo acrobata e esférico rodopiando como um pião bailarino

nas mãos da infância / no sonho da infância

como um amuleto / como uma figa / como uma jurema ou

um juazeiro que toma de assalto o ar seco e sopra e sopra e

/ hálito / bafo / blues / ou quando a escuridão é ninho e

na recusa se guarda o que é horizonte e não desaba e

/ o pêndulo anti / o pós-arcaico-recusa-e-fertilidade /

mil janelas concêntricas, nenhuma parede de barro

separando os mortos da morte e o amor da traição e a mentira

do amanhã / o poema é sujo / o poema é exílio / o poema é escola

e teia – aranha que arranha os tecidos / os

tapetes e o chão

zumbido fraternal e pequenos insetos domésticos ou

quando

 

o medo / matéria-prima do êxtase / o medo /

arqueja à sombra de sua própria sombra / alimentando-se

do que não pode ser visto / do que não deve ser visto / do

que é algo à espera contrita de forma e que abraçado à sua mais

insignificante devassidãozinha não se curva / oblíqua / dissimulada /

como uma égua do século XIX puxando uma carroça de fogo saída de um engenho

e os segredos do que não é o medo ou aquilo que ele é quando

já não estamos mais aqui

aqui

 

o estado de graça /o estado larvar de graça / a graça vulcão em erupção / a

bendição em mim reza / o que não é daqui manifestado / incorporado à

cabeça do cavalo que dança e ao dançar é todo ele oração e seu êxtase é meu na

unidade de todos os versos do mundo reunidos em volta do mesmo

fogo / do mesmo pêndulo sem arestas / sem vértices / sem temor

o estado beatífico se arrasta na ladeira do Horto como serpente em

procissão regada à luz de lamparinas vivas / ao som de rojões e

própolis / e própolis / e própolis / e

a passageira sensação de ver aqui Ernesto sorrindo em seu caminho amarelo /

em seu caminho presépio / em seu caminho-caminho sorriso /

ebó / um prato de comida / farofa / farofa / farofa /

baião-de-dois e um lírio supostamente

branco  

 

sim, é também toda uma cartografia do que é sujo o poema /

é também a travessia de um rio que não pode ser atravessado /

é a travessia de um rio que não se pode deixar de tentar atravessar /

sim, é uma cartografia das esferas inalcançáveis o poema /

é também um inventário das coisas que se dizem / das coisas que se fazem /

das coisas que só podem existir depois da meia-noite /

o poema é a língua obsoleta dos sinos do campanário /

o poema é amor e fardo / é o escuro depois da luz que clareia o túnel /

e quando os anjos se recolhem só o silêncio sem-cor cobre o mundo

/ e essa voz / úmida / abafada / liberta de toda torpeza /

e essa voz de tigresa / insistindo /

vem

 

dentro da noite veloz / dentro da noite escura / dentro da oxidada noite /

dentro da noite imóvel e imensa / dentro do útero / dentro do óvulo /

dentro da couraça de múltiplas e inúteis habilidades /

dentro do tabuleiro de xadrez / dentro da frieza que se abate sobre o soldado

na trincheira / dentro do fátuo fogo que assassina a primavera /

dentro do grito da poeta que pede ao rio que lhe conceda o asilo da morte /

dentro do que por ser tão opaco se abre repentinamente

como as cortinas de um teatro russo do século XIX

dentro do que é chamado de dentro pelos homens e mulheres e crianças

de fora – hoje, uma flor às águas

e o monopólio do segredo fraturado / roto joelho de javali em festa /

piropo, solidão, descanso

tigela de sombra e neve onde nunca / inferno

/ como se do outro lado o insustentável encontrasse as ferramentas para forjar

alicerce / estável alicerce da impermanência

 

a senda da justiça / as virtudes de esmeralda / o sorriso dos não-nomeados /

quem pensa quando se forma um pensamento?

até quando balançará a rede na varanda esse vento?

de onde essa voz que não cessa de subir esse rio

como quem perdeu qualquer tino ou bússola?

variações sobre o sal / vasto repertório à disposição do engenheiro /

arbítrio que se distancia de qualquer pragmatismo /

variações sobre o sal / variações / e quando nos meus dedos a memória de

outros dedos se ancoram / mamulengos / insensatos mamulengos transbordando

fúrias e amores intransitivos e que volvem a se reunir após o que os dispersa

ter soado / essas trombetas que alumiam / essas trombetas que /

improviso / é no corpo que a guerra cessa / é na matéria que se assina a trégua /

é na sebe erguida nas várzeas do gozo que serena o orvalho que

apascenta a fera / fera / fera / fera /

ferocidade da fé que o jangadeiro sabe quando se perde olhando as

estrelas na

risca

 

ainda o tema dos nomes

esses precipícios que os outros colam ao nosso corpo quando nascemos

ainda o tema do amor

essa força que se cola ao nosso corpo quando estamos fora de si

ainda a história da consciência

esses morcegos que gotejam entre as frestas das telhas quando nos abraça a insônia

ainda o corpo ainda

e a estrada assombrada com seus seres andrajosos

carregando às costas feixes de plástico e solidão

ainda a vertigem / ainda /

a vertigem e a dança com que saltamos a floresta de espinhos

ainda / ainda

ainda

 

o dia amanhece / o sol queima os últimos trapos da noite

desfaço-me das lembranças e caminho em direção ao semblante do Éden no horizonte…

 

nuno g.

Toróró, 07 de fevereiro 2021.



Nasci na cidade do Recife e com a idade de um ano e meio fui viver na cidade de Russas, às margens do rio Jaguaribe. De muito criança sonhei ser jogador de futebol e graças à inabilidade total com a bola passei a me dedicar à vida poética. Graduei-me em história pela UECE. Conclui um mestrado nesta mesma disciplina pela UFC. Doutorei-me em estudos latino-americanos na UNAM. Publiquei os livros Cacos de CristoO sol e a maldiçãoO canto das onçasCartas de navegaçãoCalabouço de reticências ou a aridez do oceano Álbum de família & outros negativos: poemas pós-apocalipse. Recebi os prêmios Moreira Campos Antônio Girão Barroso nas categorias conto e poesia, respectivamente. Escrevo no blog  http://insensatanau.blogspot.com/ e em revistas, sites, fanzines e outras publicações voltadas à literatura. Leciono História da América na UFRB. Sou diuturnamente assombrado pela presença de Augusto dos Anjos, Álvares de Azevedo e Cruz & Sousa. Desejaria muito dizer que o fascismo que vigora no país onde nasci e vivo não é real. Tenho uma filha e dois abikús. Rezo. E só escrevo por estar certo de que se não o fizesse morreria.

 


 

 

Respostas de 4

  1. O poema de Nuno Gonçalves é uma obra densa, visceral e profundamente imagética, que explora a construção das casas do “povo de Ar” a partir de materiais brutos, orgânicos e metafóricos. Com uma linguagem fragmentada, mas intensamente evocativa, o texto transcende a materialidade para abordar a condição humana, a espiritualidade e a resistência diante do caos. A epígrafe de Díaz Varín — “Qué queréis que se haga con estos materiales. Nada. Sino escribir poesia melancólica” — estabelece o tom: os materiais, sejam metálicos, arenosos ou biológicos (sangue, sêmen, lágrimas), não se destinam a construções práticas, mas a uma poesia que abraça a melancolia como forma de expressão. O poema, assim, transforma o ordinário em sagrado, o descartável em eterno. Nuno Gonçalves utiliza uma linguagem sensorial e contrastante, alternando entre o ruidoso e o silencioso, o divino e o profano. Imagens como “flores secas, ressequidas, esfarinhando no varal” e “sangue / sangue / sangue” criam uma tensão entre delicadeza e brutalidade, sugerindo um ciclo de vida, morte e oferenda. A repetição de “ainda quando” reforça a persistência da existência em meio a adversidades, como o “rugido do sol” ou o “encantamento lunar”. O poema também critica a sociedade, com referências à “burocracia”, “automóveis” e “porcos que se criam como porcos”. Há uma denúncia da alienação e da perda de humanidade, contrastada pela exaltação da poesia como resistência e transcendência: “o poema é uma guerra / onde convivem canhões fuzis e ogivas nucleares”. A poesia, aqui, é um ato de criação e destruição, um espaço onde o humano e o divino se encontram. Em suma, Nuno Gonçalves constrói um texto que é, ao mesmo tempo, lamento e celebração, um mosaico de materiais frágeis e indestrutíveis que compõem a essência do povo de Ar — e, por extensão, da humanidade.

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