Outra história de Brasília: André Giusti

 
 
 
Joanir apoia as mãos cruzadas na ponta do cabo de vassoura. Deixa o pensamento escapar pelos olhos e seu rosto pende para baixo, pesado de uma preocupação ainda maior que aquele corredor que ele não esfregou nem metade. Toda hora interrompe e fica olhando o final do corredor, mas não espera nada dali. O problema é a arma que o primo pediu para ele guardar em casa, e por isso a mulher enche a cabeça de Joanir há quatro dias. Mas hoje ela ameaçou chamar a polícia, jogar a arma na vala, ir embora com as crianças. Não quer arma em casa, aquele é um lar de Deus nosso senhor Jesus Cristo.  Joanir sem jeito de falar pro primo, um chegado de tantos anos. E sem coragem também. O primo é parente, mas é bandido, transa crack pros fodidos e cocaína pros ricaços. Já matou quatro ou cinco, ele nunca disse, mas sabe que Joanir sabe. E que tem medo, o pior.

Tem também Estéfane, a filha do meio, que voltou com as crises de epilepsia. A mulher há quatro dias – o mesmo tempo em que fala da arma – chega no hospital, espera, espera e volta. Não tem médico, não tem remédio, e a menina se torcendo toda. Joanir olha o corredor, mas não espera nada dali, sacode a cabeça como quem sacode uma caixa para confirmar que está vazia. E diz “tudo se ajeita, tudo”, bem na hora em que dobra lá no fundo o desembargador Antero Pimentel da Mota, que vem desviando do balde, do rodo, do esfregão cinza esticado no chão de mármore, de um vidro de limpa tudo e qualquer coisa. Não vem satisfeito da vida, nunca vem satisfeito o desembargador, ainda mais topando com gente da laia de Joanir, que em silêncio ou assobiando sambas tímidos vai tirando do caminho guimbas de cigarro e copos descartáveis. No primeiro dia ali Joanir bem que cumprimentou o desembargador, recolheu a vassoura com as duas mãos postas junto ao peito, sorriu envergonhado e deu bom dia mais ainda, como achou que fosse o certo. Antero Pimentel da Mota passou apressado com seus sapatos pesados, mas até que olhou Joanir do alto de seu pra lá de um metro e 90, por trás dos óculos dourados, e crispou o rosto achando mesmo um achincalhe aquele mulato manchado de micose, magro que nunca pôs gravata, querendo parecer civilizado e se dirigindo a ele, presidente da corte especial do tribunal pleno, a mais alta instância da justiça no país.

Também, parou por ali: Joanir nunca mais deu bom dia; Era feio, mas não sem vergonha. Agora, quando o desembargador aponta no fim do corredor, Joanir abaixa a cabeça, não olha, é como se fosse vento passando. Aproveita e dobra a força de esfregar aquele chão, mais um pouco e arranca uma placa de granito.

 Antero Pimentel da Mota vem em direção ao gabinete, carrega seu azedume e faz barulho com seus sapatos de defunto. Passa cada vez mais depressa e pesado, truculento, no fundo querendo que aquele quase crioulo entre em sua frente para poder esmagá-lo com seus pés sem proporção.

Na porta do gabinete, bem próximo a Joanir, o desembargador estaciona aquele esqueleto paleolítico e descansa a respiração ofegante de arrastar o corpanzil. Fica ali parado, aguardando que a respiração se acalme. Joanir pressente que o homem olha para ele e por isso inclina de vez o rosto ao contrário, dá mais força no braço, ainda acaba transformando esse chão em espelho. Joanir se imagina um pássaro na gaiola espiado pelo gato da casa. Joanir sabe que o gato não está ali à toa, o gato é mau e não gosta de pássaros feios, pardais escuros que dão em qualquer fio de alta tensão.

Escute – e parece que é aberto um calabouço quente e úmido quando fala Antero Pimentel da Mota com sua voz amarga de antipatias e repugnâncias -, o senhor trate de terminar essa limpeza antes das oito e meia, que não quero mais chegar aqui e ter que desviar do senhor e de seus baldes e panos imundos. Levante mais cedo da cama, chegue antes ao serviço. E o desembargador desaparece gabinete adentro, deixando Joanir mastigando os próprios dentes, sentindo raiva da mulher em casa que não se cala, das tremedeiras da filha, do primo que é do bicho, do dia escuro quando sai, das pernas cansadas no ponto de ônibus.

  Não dá cinco minutos e lá vem Dona Wanda, a secretária de peitos gordos contidos num vestido de seda, a maquiagem acentuando as fendas da velhice. Não é pessoa ruim, mas se o desembargador mandar, anda de quadro pelo tribunal, latindo e sacodindo um chocalho enfiado no rabo. Pede compreensão, o desembargador anda nervoso, são decisões que precisam ser tomadas por uma pessoa do tope dele e que o senhor, seu Joanir, não tem capacidade de avaliar, fora o que aconteceu com a filha do outro desembargador, doutor Osório, amicíssimo do doutor Antero, o senhor leu no jornal, estuprada e morta, ele anda abalado, a esposa com trauma foi pro estrangeiro, as pessoas de bem estão apavoradas.

Joanir deixa escapar que tem seis meses também estupraram e mataram a filhinha do compadre. Apóia as mãos cruzadas outra vez na ponta do cabo da vassoura. E ainda deixaram o corpo no quintal da casa. Ah, mas não é a mesma coisa seu Joanir, não é a mesma coisa, e Dona Wanda sorri certa de que não é mesmo, dá as costas com seu traseiro de máquina de lavar e também some gabinete adentro.

Joanir descruza as mãos e a vassoura livre vai perdendo o equilíbrio aos poucos até estalar no chão. O desânimo dobra o tamanho daquele corredor.  Deu uma vontade de ir até em casa, e sair de novo dizendo pra mulher olha, tô sumindo com isso. Se o primo perguntasse, ele não esconderia nada: usei, sim, primo. Quis mostrar prum sujeito que debaixo da terra os bichos comem a carne sem saber se é de rico ou se é de pobre.



André Giusti nasceu no Rio em 1968 e mora em Brasília desde o fim dos anos 1990. A Maturidade Angustiada (Contos, Penalux) e Os Filmes em que Morremos de Amor (Poesia, Patuá)são seus livros mais recentes. Também é jornalista e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br

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