PÉRICLES PRADE: UM POETA QUE SABE QUE A POESIA É O OURO SUPREMO DA PALAVRA

                                          Péricles Prade e eu

Jurista renomado, político bissexto, ator, contista, ensaísta, tradutor, editor, professor, historiador, filósofo, crítico de arte e poeta. Eis aí, em resumo, as atividades de Péricles Prade, este velho amigo que mais parece um homem da renascença do que um medievalista –como ele gosta de se identificar.
Autor de 15 livros de poesia, fora os inéditos, Péricles considera a poesia a verdadeira pedra filosofal, o ouro supremo da palavra, a quintessência do verbo-vida. E é a partir desse entendimento que ele se dedica ao corpo das sombras e aos limites da água e do fogo. Alias, Nos Limites do Fogo é título de um de seus excelentes livros de poemas. E, segundo alguns críticos, o fogo e a água são os dois elementos fundadores de sua poesia.
Uma poesia que desde o seu aparecimento, em 1963,vem inscrevendo-se entre as mais originais feitas no Brasil, distanciando-se do discurso e da tradição para demarcar seu diferencial poético. Segundo Mirian de Carvalho, já àquela época Péricles Prade distancia-se da linearidade por meio de imagística destituída de qualquer verossimilhança externa, transcendendo aos sentidos da metáfora e da similitude.
Batizado como poeta surreal, Péricles nega aquilo que é uma das características preponderantes do surrealismo: o automatismo psíquico. Ele se acha mais próximo de um cubismo poético, “a minha poesia está muito ligada a fragmentos, tem muita quebra, muita superposição.” Segundo Luz e Silva, no cerne de seus poemas encontra-se uma tendência à configuração de rituais ocultistas que se revelam como um dos sintomas da concepção metafísica do poeta.
De fato, Péricles sempre demonstrou interesse especial pela mitologia, pelo ocultismo, pela alquimia e pela cabala. Ele acha que toda a lógica é um falso caminho para chegar-se à verdade: a lógica corrompe a imaginação. É nas entrelinhas que se oculta a sabedoria. E como o mito é atemporal, não me preocupo com o tempo exterior.
Aproveito as palavras do poeta para tentar esclarecer uma questão importante, sempre vinculada à linguagem poética. Trata-se do fato –aparentemente estranho—da transfiguração que as palavras sofrem no poema. E isso se dá pela simples razão de que as palavras no poema não funcionam como sinais, ou etiquetas, mas como substitutos de alguma coisa que permanece por trás delas.
E é isso que qualquer leitor vai encontrar em qualquer poema legítimo. Aliás, já foi notado e anotado o caráter inaugural e alquímico do poema. O próprio Péricles não fez referência ao ouro supremo da palavra? Pois bem: eu também já meti minha colher no assunto ao reafirmar que a poesia é uma forma de comunicação à margem das formas utilitárias da linguagem.
Lembro-me de que em palestra, feita em encontro literário, tentei mostrar que não dá para ignorar que a palavra está associada à vida, à experiência, à vivência e à convivência. E disse mais: não se esqueçam que a palavra é um objeto perigoso que pode induzir à subversão e ao encantamento. E ao pensamento, é claro. A palavra é a melhor e mais imprecisa forma de representar o real. Nada é tão único, direto e simples quanto à palavra –e nada é tão pantanoso, nada é tão areia movediça.
Portanto, convido vocês para uma leitura dos poemas de Péricles Prade, poeta de um fazer poético vigoroso, impactante, que mistura erudição e criatividade no trato da língua– e comunicação abrangente e complexa com o leitor.

VÃ PROCURA
Em vão procurei a Tabacaria.
Em vão procurei o Esteves sem metafísica.
Queria, como Álvaro de Campos, dizer-lhe adeus.
Por toda a parte procurei
a Tabacaria & seu dono
olhando tabuletas diurnas e noturnas
em várias direções.
Mas nas tabacarias de hoje
(nas que entrei ou vi de relance)
não há Esteves, ainda que defronte
haja donos, metafísica de todo gênero,
sorrisos, máscaras mouras, jogadores
de xadrez, trovadores convencidos, fumadores,
marqueses, mendigos, lagartos decadentes,
línguas, temores, Amálias,
pombas, mistérios e contradições
(De Além dos símbolos, 2003)

CAVALINHOS TOSCANOS
Ao carrossel
retornei,
encantado
com a disciplina dos cavalinhos toscanos.
Tanto faz montar
o primeiro,
o segundo,
o quinto ou
o oitavo,
essas criaturas simétricas
como o tigre experiente.
O que vale,
Aqui
&
Agora,
além do vento circular,
é o caminho da luz perdida
refeito pelo tempo.

Quantas voltas eu dei
só o meu amor saberá.
(De Tríplice viagem ao interior da bota, 2007)

O ESCORPIÃO SONOLENTO
(fragmentos)
Os rios não se partem, partem a mim
que apenas os conheço como afogado
em suas entranhas, sábio ou despido
entre vegetais, oh cobertor marinho

O olho não vê a carruagem da morte
que conduz no liquido o corpo azul
Sem rede o prisioneiro laçou o sol
Assim pôde o herói salvar o menino

O mergulho é passageiro, uma viagem
ao interior da água para conquista
da estrela farsante entre espinhos

Na volta o ar não surpreende,soprei
outra vez mantendo o passo contido
pelo relógio que não quer as horas

———

O tesouro é procurado nos centros
das metrópoles, mas é nos infernos
que ele esta, guardado nos altares
que cobrem o rosto do desesperado

Não quero as moedas, as espalhadas
pelos errantes círculos, as doidas
construtoras,as pesadas, as fartas
que na cor já revelaram os tempos

No bolso ha o estranho ritmo, sede
do ouro; nem se quisesse o demônio
ele saltaria para o viciado corpo

Faca é de prata, a morte vale mais
assim, mais respeitada, pois morrer
é bom se presente a nobre matéria
(De Nos Limites do Fogo, 2003)

O QUE ME RESTA
Resta-me o tambor.
Aonde foram parar
os outros instrumentos?

Se no couro bato,
bato até doer
o que nos dedos resta.

E agora, Senhor,
por que diante do altar
ainda minto?
(De Sob a Faca Giratória, 2010)

NÃO SÓ O CORPO PRENDI
Nas raízes dos sonhos,
não só o corpo prendi.
Também minh´alma, em quatro
separada comos as Estações de Vivaldi.

Nas raízes dos sonhos,
não só o corpo prendi.
Também o desejo, como o dos pardais
nas rendas do amanhecer.

E nelas por favor
não me enforque
com esses fios quase invisíveis.
(De Sob a Faca Giratória, 2010)

ANTÍDOTO
No bebedouro a serpente
com seu beijo envenenava
toda a água corrente
que dele então brotava

Os animais o chamaram
para o líquido sujo beber
E se o Unicórnio invocaram
é porque queriam viver

Ele anula o veneno
ao entrar na fonte impura,
transformando-o a gole pleno
novamente em água pura
(De Em Forma de Chama, Variações sobre o Unicórnio, 2005)

PERDIÇÃO
Perco-me na selva doce
desses pêlos.
E se me perco,
levito
entre um gozo e outro.
Vê-la,
revê-la,
muda caverna
que às vezes canta.
(De Pantera em Movimento, breves poemas de muito amor,2006)

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