Pietá: Claudia Manzolillo

Não sabia quando começara a verter lágrimas grossas, compridas, pesadas. Sabia que de seus olhos antigos brotava um líquido contínuo e doce, e, às vezes, salgado como se fosse água do mar. Chorava ou destilava dor? Se parasse esse fluxo, explodiria ou incharia como um balão de gás e se perderia entre as nuvens num voo sem rumo? Não sabia dizer e por isso continuava sua missão: chorar e secar até que o algodão ensopasse e a vida lhe desse uma trégua. Pensava ser impossível ter tanta água em seu corpo esmirrado. Seria um desígnio de Deus condensar em seus olhos essa água sem fim? Deveria pagar alguma promessa esquecida? Reparar algum erro ancestral? Um crime, traição, algo inominável? Por que chorava a mulher? Nenhum parto a fizera chorar assim, algum aborto teria rasgado sua alma a ponto de chorar a vida arrancada? Ou um amor afogado na taça egoísta de um orgasmo solitário? Mentiras são lavadas na água corrente? Um passo mal dado, um decote mais ousado, alguma rasura no caderno, algum deslize na cozinha? Não sabia dizer, o choro não era visto por mais ninguém além dela. Saía pelas ruas, os conhecidos a cumprimentavam normalmente. Aos amigos, ao padre não tinha coragem de confessar. Era uma coisa tão sua! Travesseiro, colchão, lençol, esses eram testemunhas do choro noturno. Um filho poderia entendê-la, mas eles estavam longe… Um marido, um amante, mas eles seguiram outro caminho quando o viço secou no seu rosto… Seu rosto seco no espelho. Ali ela via as lágrimas escorrerem, ali ela lavava o choro e secava o caminho sulcado na pele flácida. No espelho, procurava respostas e engolia as perguntas confundidas com o choro. Por quê? No espelho, via uma escrava amamentando o filho do senhor, ela também chorava, chorava leite e lágrimas, seu filho lhe fora tirado para servir na casa grande. Via a judia no campo de concentração que chorava a separação de seus filhos e o extermínio de seus irmãos. Via Maria que chorava seu Filho Crucificado. Mulheres choravam à porta das fábricas. Ofícios perdidos. Mulheres choravam nos escombros dos terremotos. Filhos perdidos. Mulheres mortas por serem bonitas demais, inocentes demais, frágeis ou fortes demais. Vidas perdidas. Todas no espelho. Ela ficara para chorar por todas elas. Nesse momento, as mulheres tomavam seu rosto e choravam no espelho. Do lado de cá, pela primeira vez, seus olhos secos se iluminaram. Ela entendera sua missão.



Claudia Manzolillo é nascida no Rio de Janeiro, licenciada em Letras (Português-Literaturas) pela Ufrj, especialista em Educação pela Fahupe, mestra em Literatura Brasileira, pela Ufrj, com dissertação intitulada Perfis femininos na ficçãode Lygia FagundesTelles. Professora de Língua e Literatura do magistério estadual e federal, lecionou na Escola Normal Carmela Dutra, no Colégio Estadual Visconde de Cairu e no Colégio Pedro II. Revisora de textos. Escreve contos, poemas e ensaios. Posta seus textos no Facebook. Publicou A dona das palavras (Penalux, 2015), livro de contos premiado pela UBE-RJ, em 2016.

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