Poemas Portugueses – Raquel Naveira


AZULEJO

Neste livro ilustrado
Vejo Portugal:
Sua história,
Seu passado,
Seu imaginário
Em forma de azulejo.

Pedra polida,
Sonho mourisco,
Romântico,
Todo azul e branco.

Nesta página
Uma barra de flores,
Cestos,
Pássaros,
Crianças do vilarejo.

Na fachada desta igreja,
Uma malha xadrez,
Enxaquetada
E dentro,
No altar,
Alminhas do purgatório
Em estranho voejo.

Neste porto
Um muro
De esferas armilares
Lembram que a Portugal
Pertenceram os sete mares,
Que dali saíram esquadras,
Velas ao vento,
Num cortejo.

Neste palácio
Uma fonte em bronze,
Base de mármore,
Azulejos de aresta,
Por uma fresta
Saltam leões,
Sereias
E cisnes,
Enquanto a água borbulha
Num rumorejo.

Há ironia nestes macacos
Imitando gente,
Sedução em obeliscos
E ânforas,
Rostos de musas
Em medalhões
E grinaldas,
Anjinhos de desejo.

Quanta riqueza neste casarão
Em que poderiam viver o imperador
Ou um conde orgulhoso
Como um pavão.

Cacos e faianças
Seguiram para Olinda,
Paraty,
Porto Seguro,
Ornaram pias,
Mosteiros,
Altares,
Pois há horror ao vazio
Nessa estética de exuberância.

Vejo Portugal
Em cobalto azul
E lacrimejo.


BOCAGE
   (ao poeta português Manuel Maria de Barbosa du Bocage)

Existem dois Bocages:

O Bocage do povo,
Da língua afiada,
Das anedotas grosseiras,
Agressivo,
Impulsivo,
Cortante,
Que a tudo reage.

O Bocage poeta,
De notas agudas,
Sozinho em face da Natureza
E do Mundo,
Cobrindo sua angústia
Com estranha roupagem.

O primeiro é exagero,
Improviso certeiro,
Mítico autor
De ditos picantes
Da libertinagem.

O segundo é talento,
Espetáculo de si mesmo,
Mistura de Razão e Sentimento,
Signo de revolta
E espírito selvagem.

Dois Bocages
Formam um só Bocage:
O Bocage sensível
Das rosas vermelhas,
Dos amores infelizes,
Dos tormentos,
Das confissões,
Das alucinações e viagens.

Um só Bocage
Vivia nos dois Bocages,
Na carne lacerada,
Nas páginas íntimas,
Nos horrores noturnos,
Nos sofrimentos marcados em sua pele
Como tatuagem.

Bocage:
Medida e exemplo
De uma crença que reside
Na eternidade da mensagem.


CONFISSÃO DE MARIANA

(a  Sóror Mariana Alcoforado, que nasceu em Beja, 1640. Desde menina professou no Convento de Nossa Senhora da Conceição em sua cidade natal. Em 1663, conhece Chamilly, oficial  francês servindo em Portugal, durante as guerras da Restauração. Apaixonam-se. Ele regressa à França por ordens militares. Trocam cartas, das quais só ficaram as escritas pela freira, que falece em 1723, após dolorosa penitência)


Foi aqui,
Neste convento
Cheio de varandas
E flores perfumadas,
Perto daquela fonte,
Daquela bacia esculpida,
Que eu, freira clarissa,
Conheci o amor da minha vida:
O oficial francês Chamilly,
Paixão proibida,
Insana,
Incontrolada.

Foi aqui,
Neste convento,
Na cela e no porão
Que me entreguei a ele,
Sufocando-o com meu manto negro
Brocado de estrelas.

Depois que ele partiu,
Foi daqui,
Deste convento,
Que enviei a ele cartas
Tão tensas e dramáticas
Que estilhaçaram meus nervos
Em transes e sangrias.

Foi deste banco de mármore,
Perto do laranjal, que,
Traída e abandonada,
Escrivã sem pejo,
Expeli toda minha fúria,
Minha ânsia,
Meu ódio
De fêmea pagã
Queimando de desejo.

Escrevi:
“A esperança me proporciona prazer,
  Só quero sentir a minha dor,
  Que seria de mim sem esse amor e esse ódio
  Que enchem o meu coração?
  O que vai ser de mim?
  Morro de vergonha.”

Neste convento
Feneço
Na carne e no espírito,
Eu, amante suprema,
De doçura extrema,
Ofereci-me a um cínico,
A um ingrato
E por ele me mato
Como Cristo
Nas dores do calvário.


Ilustração: Figueira da Foz/Cunha Rocha

FIGUEIRA DA FOZ

Eram de Figueira da Foz
Os meus avós.

Figueira,
Árvore sagrada,
Leitosa,
Cujos frutos
Se abrem roxos,
Testículos do outono.

Foz,
Encontro do rio e do mar,
Lá onde a areia é cor de prata
E forma uma renda
De espuma e nata
Pela costa atlântica.

Deixaram a pesca,
O sal,
Os navios,
Os molhos de trigo
E atravessaram o oceano
Rumo à América.

O vento moderado soprava,
O relógio girava na torre,
A claridade era forte na praia
Quando meus avós
Vieram de Figueira da Foz.

Um albatroz acompanhou a viagem,
Em nenhum momento se sentiram sós,
Havia um chamado,
Uma missão,
Uma voz
E aportaram no cerrado.

O tempo passou tão veloz
Desde que meus avós
Chegaram de Figueira da Foz,
Por isso há dentro de nós
Sementes de figo
E gotas do Mondego.


FLORBELA ESPANCA

Florbela,
Fada branca,
Dolorosa,
A dor foi teu dote,
Teu embate,
Teu prazer,
Transfiguraste o mundo
Em arte.

Florbela,
Asa branca,
Amorosa,
O amor foi tua sede,
Tua loucura,
Teu vinho forte,
Choraste sempre
O ausente.

Florbela,
Égua branca,
Potranca insaciável,
Eros foi teu amante,
Bebeste fel amargo,
Na luminosa taça
De um sol agonizante.

Florbela,
Branca castelã,
Princesa de boca rubra,
Isolada numa torre de névoa,
Espalhaste sangue
Pelos cravos
Da volúpia.

Alavanca de quimeras,
Primavera na charneca,
Força demoníaca,
A poesia de Florbela Espanca.


MOSTEIRO DE ALCOBAÇA

Vem, noivo amado,
Segue-me ao mosteiro de Alcobaça,
As torres se erguem
Em meio à fumaça,
Monges brancos
Caminham pela nave
Levantando nuvens
De dourada taça.

Vem, noivo amado,
Entremos nos claustros:
O do Silêncio,
Onde a solidão nos enlaça;
O da Leitura,
Onde os livros se abrem
Como rolos de mel
E a lua entra
Pela vidraça.

Vem, noivo amado,
Pelo caminho em cruz,
Pela capela,
Pela sala dos reis;
Junto ao moinho
E ao jardim de rosas
Há um muro que nos separa do mundo,
Recoberto de tempo e argamassa.

Vem, noivo amado,
Cheguemos aos túmulos
De Pedro e Inês de Castro,
Os infelizes amantes
Que caíram em desgraça,
A que foi rainha
Depois de morta,
Vem, é aqui, perto da porta,
Façamos juras de amor eterno
Que nada nos ameaça.

Fiquemos como eles:
Frente a frente
Em seus sarcófagos,
Vem, me abraça.


LISBOA  CHOROU
                    a Amália Rodrigues

Lisboa chorou
Quando ela partiu:
Amália,
A fadista,
A artista por todos admirada
E vista.

Com sua voz,
Seus gestos,
Ela cantava
E o fado acontecia,
O público ajoelhava
Diante daquela conquista
Que era dela,
De Portugal,
Do muno jogado na pista.

Pelas ruas e vielas,
Acenos de lenços brancos,
Sinos tocando;
Das cordas dos bandolins
Saltavam fados:
O Fado da Bica,
Dos Corações,
Da Saudade,
Do Ciúme,
Do Silêncio…
Espalharam-se pelos ares
As notas aromáticas
Das rosas dos jardins.

As guitarras ficaram tristes,
Os marinheiros, distantes,
A alma de Amália
Pairou liberta,
Gaivota melodista.

Lisboa chorou
O voo de sua fadista.


 MARGARIDA
       (a Júlio Dinis)

Margarida,
Mulher-anjo,
Fada,
Capaz de conquistar
Um homem de índole empedernida.

Margarida,
Nome de flor ingênua,
Que nasce no campo
E, à noite, fecha a corola
Amarelecida

Margarida,
Plena de virtudes,
De bondade natural
Que atrai as abelhas
Como néctar,
Mágica bebida.

Nunca esqueci
De Margarida,
A pupila do senhor reitor,
Que me fez, ainda menina,
Acreditar no amor
Como supremo bem
E encher de ternura
A minha alma dolorida .

E nesse mundo
De fé corrompida,
Teimo em ser Margarida.

Fotografias de Raquel Naveira:  Felipe Vido studio

 
 

Fotografias de Raquel Naveira:  Felipe Vido studio

RAQUEL Maria Carvalho NAVEIRA nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Título de Doutor em Língua e Literatura Francesas pela Faculdade de Nancy. Deu aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), onde se aposentou. Residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo onde deu aulas na Universidade Santa Úrsula (RJ) e na Faculdade Anchieta (SP). Deu também aulas de Pós-Graduação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE)  e na ANHEMBI-MORUMBI de São Paulo. Palestras e cursos em vários aparelhos culturais como Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida, Casa Mário de Andrade. Publicou mais de trinta livros de poesia, ensaios, crônicas, romance e infantojuvenis. O mais recente é o livro de crônicas poéticas LEQUE ABERTO (Guaratinguetá/SP: Penalux). Escreve para várias revistas e jornais como Correio do Estado (MS), Jornal de Letras (RJ), Jornal Linguagem Viva (SP), Jornal da ANE (Brasília/DF), Jornal “O TREM” (MG). Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia de Ciências e Letras de Lisboa e ao PEN Clube do Brasi

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