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Ilustração: Alice Drogoreanu |
As pessoas envelhecem quando se acomodam nos bancos da rodoviária. É algo que os sete meses de experiência no guichê ajudam Vitor a reconhecer. A espera cansa, transforma as feições. Os corpos parecem tão empoeirados quanto as cabines e os bancos do terminal onde estão. Há uma resignação no ângulo formado pelas pernas esticadas entre mochilas, sacolas e malas. Vitor sempre pensa em manequins esquecidas dentro de lojas falidas. Os passageiros entram em hibernação ao receber as passagens das mãos dele e só despertam com a aproximação de uma dianteira de ônibus. Será o meu, finalmente? A pergunta se reflete nos rostos enquanto cada veículo faz a curva. Até os donos de quiosques e trabalhadores parecem sob um feitiço de letargia.
A figura de Sarita se distinguia de todos. Os modos dela exibiam uma fração de espanto, outra de expectativa, mas nunca desânimo. Mesmo no verão, Sarita aparecia com um capuz vermelho que parecia ter sido emprestado de uma boneca russa. Foi a roupa de cor viva e o estilo atemporal que chamou a atenção de Vitor desde o primeiro olhar. De longe, ele assistia a mulher encarar os passageiros com um prelúdio de sorriso desdentado. A postura denunciava que ela estava atenta a qualquer aceno de abertura.
__ Bom dia, me chamo Sarita, você gosta de poemas? Eu te vendo um pelo valor que você achar justo. Deus o abençoe! Hoje vou até almoçar bem graças a você.
As pessoas estendiam a mão com moedas e as soltavam na palma de Sarita com timidez. Era raro darem notas, mas Vitor já viu acontecer. Sarita entregava a elas um sulfite sempre muito branco, preenchido à mão. Vitor descobriu que ela ganhava resmas de folhas da dona de uma lanhouse no quarteirão de trás como pagamento por varrer a loja e a calçada.
__ Ela seria bem mais magra se passasse fome de verdade. – dizia Cibele, com uma voz carregada de óleo como as frituras que servia no bar. Ela se virava para buscar aprovação da filha Camila, que suspirava de tédio enquanto abastecia o freezer com as garrafas de guaraná feitas de vidro.
Vitor não se lembrava de haver comprado poemas antes. Ou livros de poesia. Ele deu cinco reais na primeira vez, mais porque era a nota de valor mais baixo que tinha na carteira do que por generosidade. Era desconfortável recusar. “Frêmito do meu corpo a procurar-te. A Febre das minhas mãos na tua pele”. A caligrafia era refinada como a de um cartão de casamento.
Poesia não era um dos interesses de Vitor, mas as palavras soavam tão bonitas que ele as procurou na internet. Uma curiosidade em relação à autoria fazia seus membros coçarem. Os versos do papel oferecido por Sarita foram escrito por Florbela Espanca. Vitor pagou mais um real e recebeu um poema de Hilda Hilst, transcrito na mesma letra bem traçada. “Se te pareço noturna e imperfeita olha-me de novo.”
Em um mês, Vitor leu mais poesia do que em todo o ensino médio. Adélia Prado, Sylvia Plath, Safo, Mário Quintana, Walt Whitman. Alguns dos nomes ele sequer ouvira antes. Uma vez o papel veio todo em francês. “Jadis, si je me souviens bien, ma vie était un festin où s’ouvraient tous les cœurs, où tous les vins coulaient.” Vitor digitou cada letra com cuidado para descobrir a tradução. O mecanismo de busca o apresentou a Arthur Rimbaud. Ele achou o rosto do poeta bastante bonito.
__ Da onde a senhora tira tudo isso?
Sarita apontava para a própria cabeça com um sorriso curto, sem ser ríspido.
Vitor queria ter alguém com quem dividir os poemas. Mas leria para quem? Um dos rapazes do Grindr? As folhas eram guardadas com cuidado na gaveta de documentos de Vitor. Ele tentava imaginar onde Sarita as preenchia. Seria no escuro da rodoviária? Na lanhouse decadente, enquanto um punhado de adolescentes davam tiros em militares poligonais? Vitor passou a comprar um salgado a mais no almoço para dividir com Sarita. Ela sempre aceitava.
Quando Camila se debruçou no balcão azulejado do guichê perguntando quem ele achava que tinha uma vida interessante entre os que frequentavam a rodoviária, ele esticou o dedo em direção à Sarita, sem muita pretensão.
__ Aposto que aquela ali esconde uma boa história.
Camila trabalhou por dois anos para uma revista em Bauru, cidade em que se formou em Jornalismo. Depois da demissão, ela foi obrigada a voltar para casa. Crise do impresso, era a expressão que ela usava sempre após um suspiro. Vitor percebia que ela sentia vergonha ao passar a tarde na rodoviária, ajudando a mãe no bar. Às vezes, ela era áspera com os fregueses quando estava sozinha ou mantinha os olhos fixos no celular enquanto os atendia. Ela só se acalmou quando começou as entrevistas. Camila contou a Vitor que filmaria depoimentos de pessoas para publicá-los em uma página do Facebook que chamou de “Vozes do Brasil”. A era de perder tempo na redação das empresas dos outros havia passado. Ela seria uma jornalista independente. De início, Camila passou mais tempo falando sobre o projeto e como ganharia dinheiro com ele do que na execução, mas nas duas semanas seguintes falou com um amolador de facas, com uma idosa que vendia artesanatos feitos com feltro na rodoviária e com uma sacoleira que comentou as dificuldades de se voltar do Paraguai com a mala cheia com o dólar tão alto. Camila tentou até pegar o testemunho de seu Antônio Carlos, dono da barbearia da rua de trás, a mais antiga da cidade, sobre o renascimento do interesse por aquela atividade.
__ Pra que vou querer colocar minha cara na internet? Pra qualquer um rir de mim? – ele perguntou. Antônio Carlos era um homem rude, mas ele era uma das pessoas que mais compravam poemas de Sarita. Talvez fosse por isso que Vitor sentia uma cumplicidade secreta com o homem.
Camila achava que a página ainda tinha pouca visibilidade – “só 205 curtidas, todas de amigos meus”, contava com desgosto. Ela precisava de histórias mais fortes.
__ Você vai conseguir é ser assaltada rebolando por aí com esse celular. Ou levar um soco de algum passageiro com menos paciência que for aporrinhar. – a mãe dela retrucava.
Sarita sorriu tímida quando foi abordada por Camila. Vitor viu as duas conversarem em um banco da rodoviária por minutos. Sarita levantava alguma de suas folhas enquanto era enquadrada pela câmera do celular. Dois dias depois, Camila depositou um sonho de valsa na abertura da barreira de plástico transparente sobre o balcão do guichê.
__ Um presentinho de agradecimento. Sua ideia foi boa, Vitinho. Viralizou.
O vídeo começava com a voz de Camila apresentando Sarita. Seu timbre parecia mais estudado e maduro. Sarita não recordava própria idade. Mas tinha passado dos sessenta faz tempo, dizia gesticulando um cálculo. Estava há mais de vinte anos na rua. Ela contava que andava de rodoviária em rodoviária pelos estados do Brasil. Conheceu parte de Minas Gerais, onde nasceu, Bahia, Espírito Santo, Paraná e São Paulo. Gostava em especial das cidades onde havia romaria. Para ela, nada deixava o coração mais cheio do que Juazeiro do Norte no mês de finados.
A família de Sarita estava perdida para ela – não se falavam há tanto tempo que já deviam tê-la esquecido. Mas ela tinha esperanças de que um dia sua filha Ana aparecesse em alguma rodoviária e por isso evitava dormir em albergues das cidades. Meu maior medo é o desencontro, dizia. Se havia alguém que Sarita amava no mundo, era Ana. Ela tinha receio de a filha não querer mais vê-la. Por isso, esperava o dia em que Ana tomaria a iniciativa de a procurar.
Sarita vendia poesia porque amava muito os versos, porque precisava se alimentar e porque tinha vergonha de voltar a pedir esmola. Ela jurava que tinha decorado mais de milhares de poemas desde a infância. No vídeo, Camila citava autores e Sarita declamava de imediato algum verso assinado por eles. Tive uma boa educação, contava. Sabia falar francês e tocava piano. O pai foi operário e a mãe lavadeira, mas eles estavam dispostos a comer pão com banana amassada pra dar estudos decentes para ela.
A vida na rua não era fácil, mas Sarita dizia que, pelo menos, tinha liberdade para ser apenas quem realmente era. Ela dizia gostar daquela cidade. É tranquila e pequena, já conheço boa parte das ruas, não me perco. Sarita pretendia ficar ali até ser encontrada pela filha. “Mesmo se ela não me reconhecer, de início.” Estava cansada de rodar por lugares diferentes e ter de descobrir pessoas novas pouco a pouco. Ela terminava o vídeo com um trecho de “Eu canto o corpo elétrico”, um de seus poemas favoritos.
Pouco a pouco, os moradores da cidade passavam pela rodoviária com sacos de roupas e marmitex para Sarita. Camila começou a fazer novos vídeos. Sarita contava um pouco de si ou declamava poemas. Uma manhã Vitor chegou para o trabalho e viu que os equipamentos de filmagem de uma filiada regional de um grande canal de TV. Sarita mantinha um sorriso leve enquanto era entrevistada.
Quando os ônibus vinham de cidades próximas e faziam paradas na rodoviária, alguns passageiros desciam e conversavam com Sarita. Vitor flagrou jovens com sorrisos largos fabricados para sair em selfies com ela. Até uma dos Vilellas, família tradicional da alta sociedade local, foi até o terminal para conversar com Sarita. A mulher rica lhe entregou um saco roupas usadas que seriam de uma avó já falecida. São de grife, viu?
Na internet, Camila começou uma campanha para decifrarem quem era a família de Sarita. As pessoas davam pistas, que nunca levavam a solução alguma. Quando um rapaz comentou que ela podia ter Mal de Alzheimer, um médico de um município vizinho se propôs a tratá-la de graça. Ele deixou o endereço da clínica na caixa de comentários. É só ela me procurar.
Os modos de Sarita permanecem inalterados. Ela continua com o andar tímido, sorridente e calma. Em uma noite, Vitor estava quase dormindo no sofá quando viu uma reportagem sobre ela em rede nacional. Matérias sobre ela em portais da internet se tornaram comum. Algumas delas traziam falas de Camila e fotos das duas juntas abraçadas. A artesã dos bonecos de feltro começou a fazer miniaturas de Sarita com seu capuz vermelho. Faziam sucesso entre moradores e passageiros de outras cidades.
Vitor percebeu que outros mendigos da cidade e outros lugares se tornaram numerosos nos arredores da rodoviária. Alguns iam direto até Camila. Outros esperavam ser procurados por ela. “Vozes do Brasil” atingiu a marca de doze mil seguidores em pouco tempo.
Não demorou para a presença massiva dos andarilhos na rodoviária incomodar os moradores do bairro e os passageiros. Era comum os mendigos brigarem entre si ou com os passageiros. Alguns esbravejavam com o nada enquanto davam passos incertos. Cibele reclamava que a rodoviária cheirava a urina. Mais forte do que antes. Vitor viu na banca que uma manchete do jornal local falava sobre “A Invasão da Rodoviária”. Os moradores da cidade diziam que o lugar não era mais a mesmo. As pessoas sentiam medo. A Prefeitura prometia tomar uma atitude sanitária.
Sarita continuava a vender poemas. Camila lamentava o fato de ver a mulher que tornou sua página famosa ser relegada a segundo plano.
__ Mas eu vou continuar a ajudá-la. Vou fazer um documentário sobre ela. O duro é que a narrativa precisa de uma boa conclusão. Se ao menos a filha dela aparecesse mesmo.
Vitor bebia um suco de laranja no bar de Cibele quando Pâmela, a sacoleira chegou afobada. A rodoviária foi tomada por um rumor. Um garoto havia arrancado de Sarita que ela abandonou a própria família e até já se meteu com prostituição. Bebia demais, não parava em nenhum emprego, por isso terminou nas ruas. Perguntaram a Antônio Carlos se ele sabia de algo. O barbeiro apenas bronqueava. Cuidem da vida de vocês.
A cidade se sentia enganada. Questionaram Camila sobre o assunto, e ela dizia que desconhecia o fato. Alguns começaram a chamar Sarita de “velha safada” e a acusavam de ter atraído os outros andarilhos para a rodoviária. Vitor não soube se as suposições tinham qualquer fundamento, mas percebeu que Sarita recebia menos dinheiro pelos poemas e pareceu um dia com um olho roxo. Eu caí nos degraus, bem ali, contou.
Uma ligação despertou Vitor de suas reflexões. Ele ainda concentrava suas preocupações em Sarita enquanto checava no sistema reservas para um ônibus que saía da cidade na tarde de terça-feira. Todos os bancos estavam ocupados. Vitor achou que seria um erro. Aquele horário não tinha uma demanda tão alta, mas teve de se desculpar com o cliente. Uma colega cochichou que a Prefeitura havia mesmo comprado todas as passagens, por baixo dos panos.
A terça chega e ele percebe três homens empurrarem os mendigos um a um para o interior do ônibus. O trio lança olhares intimidadores para os funcionários da empresa de transporte, que se calam. Os outros passageiros que esperam por outros veículos mantém o ar de desânimo e ignoram os movimentos. Vitor vê um dos homens seguir até Sarita. Ele sai do guichê e caminha entre os dois.
__ A Sarita está sempre aqui. É uma pessoa bem tranquila. Você deve ter visto os vídeos dela contando poemas.
__ Estou só cumprindo ordens. – o homem dá de ombros.
As câmeras da rodoviária filmam Sarita entrar no ônibus com expressão confusa. O típico sorriso curto se ausentou de seu rosto naqueles instantes.
__ Mas eu não quero ir agora. E se minha filha vier até aqui me procurar? E se ela viu os vídeos só agora?
Quando o veículo começa a se movimentar, Camila corre na direção dele com o celular na mão, deitado em uma posição horizontal. As câmeras da rodoviária não a capturaram minutos antes, mas Vitor viu que ela observava tudo de longe há um longo tempo. Ele percebe que Camila só se precipitou até o ônibus quando se sentiu segura de que era tarde demais para interferir. A história de Sarita registrada por ela ganhou uma conclusão marcante. Vitor sente um vácuo no peito de arrependimento por ter estendido a mão na direção de Sarita naquela tarde, semanas antes.
Rafaela Tavares nasceu em Araçatuba em 1987. É formada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Toledo, na mesma cidade. Ainda na condição de estudante, foi finalista do “Prêmio Santander Jovem Jornalista”, realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 2014. Cresceu no Japão, onde passou 12 anos e habitou diferentes regiões do arquipélago. Enterrando Gatos, composto por sete contos e publicado pela Editora Pátua, é seu primeiro livro.