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Ilustração: Yves Tanguy |
As únicas lembranças foram fragmentos dessa carta deixada dias depois do acontecimento:
Prometo ler aqueles olhos devoradores de arco-íris, mesmo sem nenhuma chuva ou contraste climático. Prometo ler os cabelos da montanha feiticeira, que se move através da lábia carregada de palavras cheias de batons. Leitura que deixou meu rosto borrado pela emoção opaca do beijo amargo e insignificante, contaminado pelo riso circense do respeitável público acostumado com velórios em série ligados no circuito da vida. Curto-circuito. Choque de realidade. O mesmo sentimento do palhaço de brinquedo pulando fora da caixa de surpresa, para causar a mesmice do espanto no espetáculo circense torturador de animais selvagens. Na estrada do coração festivo tinha uma árvore de sombras e antimatéria, árvore sem frutos, apenas escrevia naquela estrada raízes de um coração desprovido de dias claros.
A carta continuou confeccionando o verbo dilacerado em palavras desconjuntadas na caligrafia do circo repleto de aberrações sentimentais, dizendo exatamente o que faltava na estrada do coração escuro…
Olhos de pedra. Olhos estáticos no espanto da lenta mudança climática dos sentimentos do mundo. Foi um verbo conjugado no amor, no sonho, em outras palavras, na promessa de construir laços indestrutíveis. Na verdade, a promessa é uma embarcação renovável, feita de madeiras e memórias velhas, que se deterioram com a lágrima do sol obscurecido pelo inverno alegre, matador da felicidade com lâminas de morte branca. O curriculum vitae do mórbido gelo trabalhador é impresso no crematório adubador da flor de cinzas humanas, com as estatísticas supérfluas que não abalam mais a opinião pública. Aqueles olhos falaram a verdade, devo me recolher e mirar na lua menstruada, nas marés grávidas, que banham árvores e maçãs cortadas em forma de úteros.
A saudade riscava a carta. Era o conteúdo marcante, como não poderia deixar de ser. Saudade. A palavra sem tradução, apenas saudade…
Contemplação para olhos atônitos e selvagens, ambíguos na hora da promessa lacrimejante, que carrega o barqueiro da morte com as memórias mortas prontas para o despejo no mar esquecido e perdido no dodecaedro das Bermudas, o mar contaminado de notícias repetidas, de sangue que ninguém se comove. Os milésimos de segundos no piscar dos olhos são séculos, dias, eras e décadas, não há diferença. O amor é o mesmo que engravidou o tempo, com nossas saudades gêmeas geradas pelo mesmo beijo engravidado naquele crematório, que fabricava flores humanas em forma de cinza. Tudo foi jogado no mar. Lembranças viraram sal e areia, elas formaram pirâmides deslumbrantes de memórias umbráticas, onde jazem as mudanças da vida. Restou a arquitetura de um castelo de areia fotografado e guardado nas entrelinhas dessa carta. Apenas mais uma coleção de entulho fragmentado em areia. Castelo metafórico de entulho despreocupado no meio do mar retratado pela calmaria e beleza do cartão postal
“Momentos felizes são areias, momentos difíceis são montanhas”. Esse foi o axioma causado pela morte das células embrionárias da felicidade. Dias difíceis são predominantes e Sísifo continua escalando a montanha com aquela pedra. Dias felizes são escassos. Eles existem na arquitetura do castelo de areia. Na descrição de algo entorpecentemente belo. A descrição da moça dos cabelos de primavera foi a grande marca da carta. Eu realmente fiquei impressionado. A moça que recalcitra contra os aguilhões. A moça feita da matéria fora da carne do verbo…
Quando vi seus olhos de talvez, enxerguei a maquiagem do seu rosto feita de argamassa constituída de sentimentos ausentes. A geometria de sua face continha a suavidade daqueles afagos simples, que não suportam o tato dos olhos mudos. A nuance dos seus cabelos ao vento reverberava melodias de beijos ontológicos cheios de esperanças engaioladas, com o canto e o estorvo da arte enclausurada nas cordas vocais vestidas de freiras apaixonadas.
Foi o meu olhar profano, frequentador do índex dos desejos ocultos, que imprimiu palavras vertiginosas no meio do caos cósmico entre nós. Minha verdade absoluta é um corpo desconhecido naquela guerra, que possui a lógica da selvageria e da barbárie. É como atrasar o relógio humano, voltar no tempo em que tudo se parece com os dias atuais. Nosso beijo de remédios tarja-preta sempre nos lembra desses aspectos.
Descobri depois de algum tempo o autor da carta. Um admirador de palavras convulsas, de textos vazios preenchidos de significados imperceptíveis. Palavras no meio de notas musicais de cânfora na sinfonia constipada cantando despedida.
Eu li minha promessa na página do jornal corriqueiro. Parece que o dialogismo é um espírito do tempo, do espaço e de nossas existências intrínsecas. Minha promessa de ler seus olhos de vinagre me causou uma patologia discursiva no desencontro das palavras e seus respectivos significados.
Na verdade eu terminara a maratona do passar dos minutos em busca das palavras perdidas, escorridas no esquecimento instintivo nascido na fronteira entre a loucura e a razão. Eu vi o beijo impossível do olhar do talvez vestido nas lágrimas de vinagre no meio de nossas ilusões e distâncias, que foram devoradas pelos mesmos olhos trituradores do equilíbrio para os dias que ainda estão presos no cordão umbilical industrial fabricador de corações artificiais.
A carta depois sumiu. Foi parar na lareira das chamas esquecidas. As cinzas revoaram o ambiente e retornaram para o ponto de partida primordial da inércia. Nada se perde. Tudo já existe para escrever a assinatura de participação em alguma vida por aí. Essa carta estava escrita antes do desterro das palavras.
Conto de Paraboloide elíptico cheio de palavras embalsamadas, publicado pela editora Penalux em 2018.

George Ayres nasceu em Tucuruí-PA em 1979, formou-se no curso de Letras pela Universidade Federal do Pará no ano de 2010. Lançou seu primeiro livro de contos Pedaço sem Metonímia (2016), depois veio Prosopopeias do Absurdo (2017) e o terceiro livro Paraboloide elíptico cheio de palavras embalsamadas (2018) obra intimista, cuja ação se passa na memória de um narrador quase não figurativo, que se apresenta por meio de traços de lembranças “embalsamadas”, salvas da decomposição por meio do lirismo de aromas e sensações sinestésicas que evocam.