Regis de Moraes Marinho resenha Francisco Gomes

 

O Despertar Selvagem do Azul Cavalo Domesticado, livro-poema de Francisco Gomes, afigura-se-me como uma antiepopeia do século XXI.

Em oito atos, que vão da aurora, com o “despertar selvagem” desse “azul cavalo”, metáfora e “alter ego” do poeta, passando por uma galopada alucinada e alucinante pelas ruas da cidade, até chegar às escadarias da Igreja São Benedito, no centro de Teresina, o “azul cavalo”, em constante mutação, rompe os grilhões e arreios da “domesticação” social e parte rumo ao absoluto e ao infinito, através de seu “percurso-verbo”.

O poeta, então, conta-se entre os “fugitivos” irredentos, com seus “cascos metralhando o horizonte”. Desfazendo-se das circunstâncias que o fizeram “melífluo” e “domesticado”, o poeta-azul-cavalo vagueia no mundo, liberto de preconceitos, refletindo “sóis indecisos” e “sexos de granito”, pelas “ruas vazias” que “absurdam existências”.

Nesse passo, transitam pelos versos do livro-poema de Francisco Gomes todos esses seres que, como no verso futurista de Álvaro de Campos, compõem essa “fauna maravilhosa do fundo do mar da vida”: travestis, bêbados, putas, drogados, depressivos insones e quejandos.

Nem por isso, entretanto, o poeta quererá voltar à sua pseudozona de conforto. Ele quer continuar vagueando na crua realidade das vidas sem perspectiva, até porque “a calmaria traz desassossego” e não há como olvidar que a “vida-estratagema” nos quer “domesticados”, impondo-nos “códigos distorcidos”.

Há que abrir, pois, os olhos para a “excêntrica claridade”, fitando “a enferrujada velhice/de tantos séculos/que nos arrasa”.

E o “azul cavalo”, ora volvendo ao seu estado de natureza selvagem, segue o seu percurso na madrugada, com uma sede que não é de água, mas do absoluto, como “sobrevivente do século” e “michê de mitos”.

Ele está no “limbo do asfalto”, sob a “penumbra do sono celeste”, mas continua a percorrer o seu “itinerário instintivo”, até a chegada do “apocalíptico dia”.

Em nova noite, “a cidade clama e reclama”, enquanto o niilismo povoa “cada esquina vazia”. E o “azul cavalo” sente o peso da “solidão na estrada”, onde “ninguém leva nada” e “os bípedes tremem na base”. A cidade reclama e o poeta, com os seus grilos na cuca, reclama com a cidade…

Assim, tudo se prepara e conduz para o clímax da epifania alucinatória final, nas escadarias da Igreja São Benedito, onde as visões da carne, do osso, do sangue e do corpo se contrastam com uma religiosidade impositiva e domesticante. Com a alucinação epifânica, reafirma-se a condição humana natural – mediante um processo estilístico de confecção do poema que dialoga diretamente com a tradição mitológica greco-romana – e, portanto, essencialmente pagã e erótica, com os pés “plantados na terra”, sentindo “a alquimia da existência”.

Assumindo sua condição de “cheio de pecados”, o poeta indaga: “Como poderei ser religioso?” Ele pertence “ao rodopio diário das sensações…” Ele necessita, pois, despertar selvagemente do sono letárgico da domesticação, ainda que isso implique descobrir-se como “ser raro e solitário”, mas que consiga alcançar o “estado de graça” de expressar ideias, sensações e sentimentos, como os que nos acometem ao contemplarmos o “voo das garças”.

Eis, enfim, a antiepopeia do século XXI na logopeia poética que nos oferta Francisco Gomes, com extremo rigor estilístico e plena consciência de seu ofício de poeta como “antena da raça”, no sentido poundiano da expressão, alertando-nos para o que nos dizem os angustiados, “(à procura/da cura/do inexplicável)”, que religião alguma poderá lhes dar – senão a Poesia e seu cultivo diário – no Caos reinante atual.






Regis de Moraes Marinho é poeta e promotor de justiça, nascido em Teresina – PI, aos 31 de agosto de 1970. Publicou, em edição do autor, em 1998, o livro de poemas Inventário de Coisas Sublimadas.

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