Qual é o nome do lugar que ocupa o meio de uma antítese? “O corpo almeja/ perder-se de vez/ no silêncio das ruas.” Talvez seja a explosão da invisibilidade do flanêur que se perde dentro da ação do olhar, para se tornar tudo aquilo que vê; a experiência do avesso como via, nas palavras do poeta de Cristina.
Como manter sensibilidade social sem soar panfletário? “ Acordar para lutar/ pacto sem fim/ acordo firmado/ com tempestade/ que chove em mim.” Num diálogo entre a filósofa Márcia Tiburi e o fotógrafo Luiz Eduardo Achutti surge a seguinte questão: Acha que seria possível uma pedagogia do olhar fotográfico? Lendo Repleta Ausência, o segundo livro de poemas do fotógrafo e poeta Ninil Gonçalves, podemos responder com um SIM esta questão e ampliar o seu alcance, não só para o olhar fotográfico, mas para um campo maior: a educação dos sentidos praticada pelo artista.
Ninil é professor e um leitor voraz, suas reflexões sobre o ato da leitura aparecem como tema de alguns dos poemas, tal como “Texto”: “A escuta atenta ao mundo/ renova-se em pensamento.” A interação com a obra do fotógrafo Sebastião Salgado, possível influência estética para as fotografias em preto e branco que ele realiza, está presente na sua poesia, pois há luzes que mostram e outras que revelam: “a cada novo êxodo sofrido pelo corpo/ na gênese reconstruída pela luz”.
No poema “Balbúrdia”, uma aula mostrada por um outro ângulo, nele há a convergência entre a visão e a audição que captam e interpretam o mundo: o som: “O som das canetas deslizando no papel/ A fala percorrendo as paredes da sala”; a imagem: “Os olhos encantados pelas palavras na lousa”, a parte que revela o todo: “ O canto da boca sorrindo pela descoberta”
A pele o maior órgão do corpo humano nos ajuda a entender a temperatura por meio do sentir, “Frio” e “Calor” poemas sem verbo, construído com substantivos encadeados que desaguam em ação erótica: “pés/ ancas/ braços/ peles/ corações”.
Aqueles que puderam observar um retrato de Gabriel, no livro de fotografias “Cristinidades”, com “Repleta ausência”, podem por meio do poema encontrado na página 90, ampliar o acesso ao sentir da figura do homem mestre das coisas pequenas: “Veste-se de si/ despido de qualquer indumentária que afugente/ a admirável transparência colorida da vida.”
Em Démodé aparece um possível diálogo com outro mineiro, só que de Itabira, no clássico “Eu etiqueta”: “ A moda muda o modo/ de ser do Ser”.
Na poética de Ninil a parte é o todo, o ilusório pertencimento a quase tudo, do qual nos fala o escritor em “Desendereçado”
As palavras de Robert Walser parecem descrever a missão sinestésica do poeta: “Quem foi pobre e solitário compreende melhor outros pobres e solitários”, em “Monalisa da rua” “Monalisa envelhecida/ deslizando pela rua/ olhar enviesado ao nada/ ou tudo que não olhamos.”
A gente fecha o livro de poemas, conhecendo melhor o nome dos vazios que carregamos dentro de nossos próprios peitos fracos e potentes máquinas de respirar, substâncias sentidas, mas nem sempre identificadas, por isso precisamos de educação e o rastro deixado pelo sentir do mestre Ninil Gonçalves.
Fernando Rocha é paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, professor na rede municipal de São Paulo, autor do livro de contos Sujeito sem verbo(Confraria do vento), da novela Os laços da fita (Penalux) e Afetos (Penalux). Tem um conto na antologia“Descontos de fadas (Alink) e Pouca Pele (Alink). Possui textos publicados nos portais: Mallarmagens, Amaité Poesias & Cia, Diversos e afins, Revista Gueto, Incomunidade, Letras Inacabadas e Letras et Cetera.
Uma resposta
Adoro ler textos concisos assim. Um dia chego lá. Parabéns…