Do Sentimento Geral: o Silêncio dos Conceitos Movediços.
“Meus versos
não são escritos,
são ouvidos
no anverso,
anteverso
do som.”
Luka Magalhães
Lembraram-se de mim… Ao passar pelo corredor de janelas de vidro, a bibliotecária Maria Gorete anunciou: “o autor deixou aqui um livro, são poemas, quero muito que você leia! Lembrei de você!”. Contou-me que ela se surpreendeu com a força dos poemas… Analisei a capa em “dégradé” preto com o título escrito em uma fonte rendada verde claro. A princípio não me instigou em nada porque me pareceu um simples jogo do paradoxo: eco (som) – silêncio.Eu fui procurar bibliografia que ampare o que significam “ecos” de algo inexistente, pois silêncio é a ausência de som. Não existindo “som” o ambiente está no vácuo, pelas explicações da Física, pois o som é uma onda mecânica que precisa de matéria para se propagar. Já ondas de rádio não são mecânicas, são eletromagnéticas, como a luz, por isso astronautas se comunicam conosco do vácuo do espaço!
Conforme lia os poemas, os ecos comunicavam ao meu pensamento significados e histórias do nosso tempo. Luka Magalhães me parece usar uma metáfora no título de seu livro de poemas… Uma metáfora até guiada pela Física porque, se existe matéria nas vidas, nas cidades, nas pessoas, existem átomos de matérias por toda parte, por que há silêncio? O silêncio dos humanos e para os humanos acontece ainda que seus próprios corpos sejam matéria. O som para nós ocorre é atravessando a matéria alheia, a massa anímica e impetuosa de outros seres humanos ou outros seres vivos. O silêncio nos envolve quando não se encontram outros para rebater e reverberar nossas ideias, falas, angústias e alegrias. Há silêncio quando não se apresentam ímpetos de outrem a partir de nossos comportamento e discurso, e, até, de nossa existência.
É possível “um andar solitário entre as gentes”, estar entre multidões e ser só, e haver silêncio… Quantas famílias cultivam a solidão e o silêncio em suas casas? Antigamente, culpava-se a televisão, mas hoje as telas estão disseminadas durante todo tempo em smartphones e tablets. Você emite falas, discursos, ideias, desejos e tudo isso encontra aconchego onde? As palavras precisam encontrar o discurso alheio, conhecer seja o respaldo ou a contrariedade do outro.
O diálogo está desmerecido porque precisa, sincera e necessariamente, de mais de um. O retorno a partir da reverberação de algo de nós é esperado. Uma vez não encontrado, há o silêncio, mesmo que se ouçam falas e sons. Os ecos do autor Luka são as reverberações das próprias vozes que não dialogam, pois eco é o som que chega ao ouvinte pouco tempo depois do som direto emitido…
“(…)
Faço do silêncio
um som
…
Do som,
vem o eco
que silencia.” (p.118)
O conflito marcante de nosso mundo é a dialética entre as vozes de muitos, polifonias que não se respondem e ritualizam silêncios e vazios tão normalizados nas últimas duas décadas. A história não trabalhada ou pouco conhecida de muitos é que, desde finais dos anos 50, os conceitos e as definições passaram a não dizer exatamente o que diziam antes ou ter representações no mundo real. Os versos de Luka vêm dessa anterioridade de tempo, foram motivados em momento em que a palavra e o significado dela não decisivamente correspondem a uma expressão de objeto, característica ou pessoa no Mundo. A emissão de uma palavra, de uma cadeia de sons (significantes)[1]deve corresponder a ideias (significados) e o sociólogo C. Wright Mills utiliza o termo pós-modernidade quando a palavra está solta, porque os ideais de termos da Cultura são impactados por um ‘modus vivendi’ econômico chamado neoliberalismo.O sistema econômico neoliberal afeta nossas percepções mais íntimas, ainda que não tomemos consciência dele… Tal anterioridade criou o mundo histórico conhecido hoje, esse que está frente aos nossos olhos nas ruas, nos faróis, no supermercado, nas casas, nas salas; mundo cheio de pessoas, que não, efetivamente, comunicam-se. Isso é o anverso, o anteverso propulsor, o que veio antes dos versos do livro. “Ninguém vive impunemente” diz o senso comum… As Artes, a Literatura, estes poemas nos arrefecem a dor no peito, criam redenção para nós de tantas tragédias históricas, humanitárias e econômicas, que podemos até desconhecer; porém, vivemos imersos nos ares e consequências delas…As consequências do desenvolvimento econômico em curso são a comunicação esquiva, insociável ou a falta dela e a disseminação de certezas e possibilidades. E tais efeitos foram e são catalisados pela Rede Mundial de Computadores, a Internet:
“O problema da internet é que produz muito ruído, pois há muita gente a falar ao mesmo tempo. Faz-me lembrar quando na ópera italiana é necessário imitar o ruído da multidão e o que todos pronunciam é a palavra ‘rebarbaro’. Porque imita esse som quando todos repetem ‘rebarbarorebarbarorebarbaro’ e o ruído crescente da informação faz correr o risco de se fazer ‘rebarbaro’ sobre os acontecimentos do mundo.”
Humberto Eco, entrevista à revista Época, 2011.
Quando pessoas se comunicam e dialogam de verdade, é um achado! E foi para uma amizade de diálogos que descrevi o livro, em conversa pelo whatsapp (quem vive sem wi-fi?!): “estou resenhando um livro. É um livro angustiante!”. Achei forte a palavra “angustiante”, mas saiu espontaneamente! Será que o próprio autor falaria de angústia para qualificar o livro? Isso não sei. Não sei se o escritor, conscientemente, daria ao próprio livro o adjetivo ‘angustiante’, contudo é o que se expressa: uma aflição por palavra! Ansiedade de diálogos e, quem sabe, respostas (mesmo fugazes) para algumas dúvidas.
“Só o som
pode quebrar
O silêncio
de uma vida
sem sentido.”(p.82)
O livro oferece 113 poemas para mergulhos! Sim, poemas para a gente mergulhar, pois são centrados nas páginas brancas, poucos têm mais de oitoversos, 12 poemas, se não me engano!E, após a sofreguidão, a veemência do gritodo poema, existe a página…Ah, não importa o idioma, “todo mundo é parecido quando sente dor…” (“O poeta está vivo”, música de Frejat e Dulce Quental), há sete poemas são escritos em inglês, italiano, espanhol e há um dístico singelo em francês também. Todos são seguidos de tradução.Os sentimentos e suas potências são misturados, eles exigem a nossa lembrança do sentido da audição, seja para ouvir sons ou silêncios.Enquanto leio, as palavras me coagem a saber da sensação ali posta! Um ‘adeus’ como o da morte ou, antes dele, o próprio “cadáver” de um amante que já não ama… Ou seja, os “ecos”, expressos por palavras escritas, determinam afetos na matéria de meu corpo, por isso, chamo muitos poemas de Luka “lisérgicos”.
“Teu último olhar,
gélido como a morte.
Teu silêncio
frio como a distância.
Teu corpo
sem vida, inerte.
Tua alma
sem fragrância.
Toda minha inquietude
de não mais te ver.” (p.92)
Muitas vezes o poeta fez versos usando três pontos. Em todos os poemas desta obra, as reticências são versos. Elas marcam as sensações e os afetos que o leitor pode, por fração de segundos, atribuir àquele “eco” ali apresentado. Vou exemplificar com um “metapoema” dos silêncios, os três pontos vêm após uma negativa de definição. Aparecem para, num átimo dar a chance de nós dizermos o que seria ou perguntar: “o que é você então?”
“Não sou o som
ou o eco incontido
…
Não sou o grito
na boca mantido
…
Eu sou o silêncio,
puro,
simples
e incômodo.” (p.105)
Os poemas são livres e brancos em maioria, ou seja, não são marcados por métricas e nem todos têm rimas.A força e a essência da Poesia, definitivamente não estão nesses quesitos formais! Poesia está solta por aí, está em todos os lugares para quem tem a sensibilidade de enxergar! E o livro está cheio de poesia, que é sabe o quê? Quem vai responder é o poeta Manuel Bandeira (Recife, 19/04/1886 – Rio de Janeiro, 13/10/1968):
“Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento (…)”.
In Invocação do Recife, 1925.
Poesias são os ‘alumbramentos’ da Vida com todas as suas forças e suas fraquezas! Ah, existe poesia na irmã da Vida, tão fortes, ambas: a Morte! Alumbramento é encantamento, inspiração, é o que nos tira do dia a dia e emoções rotineiras. A poesia de Luka, seus poemasprocuram por respostas. Demandam sons que não se tornem somente ‘ecos’, são buscas expressas em versos rápidos, diretos. Os espaços brancos são nossa chance de perambular em pensamento, em busca de entendimento e acolhimento do urro. Eu senti como um lugar factível para, imediatamente, gritar também! Vários temas aparecem e se tocam. Completam-se e se subtraem. Os poemas estão à guisa de sentidos para o Viver contemporâneo. Gostaria de lançar umas humildes respostas… Ah, mas este livro não é meu! É da Biblioteca João Cabral de Melo Neto. Quando eu tiver o meu, vou diminuir o mar branco da página! Os poemas estão puros na página, francos, desnudos… Eu os admiro e, por enquanto, sinto-os tematicamente assim:
Os temas se apresentam livremente, se enlaçam. Ora vêm com muita expressividade e altos; ora, comuns, em tom normal… As formas do gráfico, maiores e menores, não têm a ver com o número de poemas do assunto no livro. Não! Procurei dar a dimensão da importância do assunto, para mim, frente a outras angústias de outros temas.
O grupo da Metafísica é dos poemas que indagam os nossos “malfadados tristes périplos”, como expressa Carlos Drummond na Máquina do Mundo. A vida, os rituais de sempre da Vida. A nossa insistência e (por que não?) permanência na vida. É a luta e odisseia de todo ser consciente, é dilema atemporal. O ‘eu’ no Mundo, como resiste?
“Som
…
eco
…
silêncio
…
silencio
…
sobrevivo
sobreverso.” (p.34)
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“Boca cerrada,
Pensamento lacerante
Nenhum som,
Apenas
Refletir sobre a vida.” (p.47)
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“Gritos se tornam ecos
e a vida ecoa
na imensidão do vazio.” (p.52)
Por que vivemos? Qual o sentido da Vida? Viver é dolorido? Saibam que Arte, de verdade, nunca ‘vende’ respostas! Não há uma definitiva para toda gente e todas as Culturas… Lidemos com nossas dúvidas!
Existe outro grande eixo, Eu e os Outros. Afinal, somos seres gregários, sociais, sabiam? Nós nos construímos por outros, apesar de outros, graças a outros… Seja por amor ou por ódio, por isso nomeei Afetos, pois existem os que nos elevam, positivamente, e os que nos retraem, negativamente.
“No silêncio
da tua boca
se fez minha poesia.” (p.16)
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“Tua vida ecoa
como ondas
no mar.
Na praia espero,
Paciente,
teu amor chegar.” (p.108)
A esfera do tema Pós-modernidade cinge nossas relações com os outros indivíduos, circunstancia os afetos, mas não necessariamente repercute em minha interrogação fundamental sobre a Existência. Pode repercutir, mas não é determinante!O desconforto e o vazio, que nos constituem humanos, não é evidente só da criação desse conceito para cá… Decerto não! O marcante na pós-modernidade é nossa “sociedade de individuais” e, ao que parece, cada vez mais inaptos aos debates e aos diálogos e a qualquer forma de interação.
Isso porque os conceitos socializados e institucionais foram desdenhados pela ideia perversa de individualidades brilhantes e quase autossuficientes, que superariam conceitos do tempo historicamente chamado de Moderno. A pós-modernidade desdenha de estatutos biológicos como Velhice, Morte, Deficiência e outros, mas a vida não muda ou para de ser como sempre foi, naturalmente. Nós, nestes últimos tempos de política e vida brasileira, assistimos in loco, a premonição (?) dos últimos estágios e patamares das sociedades de capital, como elucida BAUDRILLARD (1995):
“A falência da modernidade, nesta fase que é a do estágio superior do capitalismo, representa para Baudrillard (1995), aquela em que o político e o social se dissolvem e nenhuma representação social tem sentido. Os conceitos totalizantes tornam-se fantasmagóricos, meros simulacros, na sociedade consumidora do signo, quando afirma: Bombardeada de estímulos, de mensagens e de testes, as massas não são mais do que o jazigo opaco, cego, como os amontoados de gases estelares que só são conhecidos através da análise de seu espectro luminoso – espectro de radiações equivalentes às estatísticas e às sondagens. Mais exatamente: não é mais possível se tratar de expressão e de representação, mas somente de simulação de um social para sempre inexpressível e inexprimido. Esse é o sentido de seu silêncio. Mas esse silêncio é paradoxal – não é um silêncio que fala, é um silêncio que proíbe que se fale em seu nome. E, nesse sentido, longe de ser uma forma de alienação, é uma arma absoluta.”
Baudrillard, Jean. “A sociedade de consumo”. Rio de Janeiro: Elfos, 1995
Procuramos, em totalidade (!), diálogos e sentidos. O silêncio, expresso desde o título, é imperativo deste séculoXXI, de agora! Não sabemos como nomear e, na falta, sobrou-nos afonia ou, pior, sons, barulhos agitados, nada expressivos…Restou uma “algaravia” e a ‘world wide web’ acelerou tais percepções. Amontoados de informações ajudaram, até agora, foi a nossa ‘incomunicação’:
“Entre pessoas livros e celulales.
Existe um silêncio em meio às balbúrdias individuais.” (p.49)
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“Se nos falta a reflexão,
deixa o silêncio
refletir por nós.”(p.36)
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“Gritos se tornam ecos
e a vida ecoa
na imensidão do vazio.” (p.52)
O círculo para a Linguagem Poéticaé dos poemas tradutores de som como presença e de silêncio como ausência. Não é uma obviedade, ok? Para amigos sinceros, os que dialogam, há afetividades além das palavras. Existem palavras que dizem nada e olhares silenciosos que comunicam tudo:
“Tão profundamente
me conheces,
que diferes
preciosamente
o meu falar
do meu calar.” (p.111)
Este eixo do presente e do ausente pode ser assimilado pelos meus consuetudinários e pode ser determinado pelo nosso tempo, por exemplo: atualmente quantas pessoas sofrem de sintomas de abstinência se ficarem sem o smartphone por uma semana? Quantas não se sentem preenchidas, satisfeitas com a liberdade de maratonas de séries? São ‘ausências’ e ‘presenças’ consideradas pelos meus contemporâneos.Contudo, vejo a maior força do julgamento de existências e faltas no sentimento metafísico.Isto é, em minha subjetividade,como interpreto e analiso algo comopropulsor de vazio (ausência) ou compleição (presença). Existem sons e, ainda assim, o silêncio se faz; existe o silêncio que ocupa…
“Sussurros,
gemidos, e
suspiros.
O silêncio se faz de vários sons.” (p.96)
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“Aquele silêncio
que ocupa a casa vazia
…
Indica
que algo se perdeu.” (p.66)
Estou grata à viagem de imaginações e maquinações que o livro me deu! Não sou mais a mesma, se a experiência é emotiva. Entendo que existem “ecos” os quais não tenho habilidade de escutar… Não são somente retornos do eu-lírico do Luka que eu ouço, escuto também o livro “sussurrar”: “Você vai voltar, né? Ainda precisamos conversar…”. Sim, eu volto. Poesia é infinita, conversa com o que nem existe ainda!
A edição é da CASA AMARELA,de São Miguel Paulista. O lançamento é já, já: dia 23/06, a partir das 16h, na própria editora.
[1]O significante do signo linguístico é uma “imagem acústica” (cadeia de sons). Consiste no plano da forma. O significado é o conceito, reside no plano do conteúdo. Conjuntamente, osignificante e o significado formam o signo.
Otacília Andrea Sales Graduada é em Letras, Universidade de São Paulo. Especialista em revisão e crítica textual. Moradora do Itaim Paulista. Herdeira de fé e convicção na Vida.